terça-feira, 29 de setembro de 2020

Congeladas no Tempo - Três estações abandonadas e preservadas há décadas


Despontando diante de uma interminável paisagem congelada, três cabanas abandonadas se mantém como alguns dos únicos monumentos duradouros celebrando a habilidade humana de estender as fronteiras de sua exploração aos cantos mais distantes do planeta. 

Erguidas no início do século passado, cada uma dessas cabanas foi usada como o refúgio contra o clima severo e a temperatura inclemente da Antártida. Exploradores e cientistas as ergueram como abrigo, mas hoje, elas permanecem preservadas como verdadeiras máquinas do tempo que conservaram em seu interior detalhes de vidas que há muito se foram. Nelas, tudo permaneceu exatamente como era quando o último ser humano deixou o local, como uma cápsula intocada e imune ao decurso das décadas.

Feita com material pré-fabricado, a cabana localizada no Cabo Royd foi projetada na Nova Zelândia à pedido da Expedição Ninrod, liderada por Ernest Shackleton em 1908. Ela é a mais antiga. As peças transportadas à bordo dos navios quebra gelo, foram desembarcadas no solo do continente gelado e montadas em menos de dez dias. A tarefa mais dura foi insular  o abrigo contra o frio e construir uma parede de neve para melhorar esse isolamento usando para isso caixas e pedras vulcânicas.



Como resultado, a cabana se converteu em um lar para os homens da expedição. O espaço exíguo, apertado, abarrotado e com nenhuma privacidade era essencial para garantir a sobrevivência de seus ocupantes. Enquanto a temperatura externa podia despencar para absurdos -40 graus C, no lado de dentro, ela não baixava de +18 C, o que para os padrões da Antártida é uma temperatura confortável. Com instalações para cozinha, um enorme fogão de ferro e aquecimento através de lareira, a temperatura no interior da cabana podia ser modulada. O espaço era suficientemente grande para comportar até 15 homens, embora pudesse ser adaptado para alocar um máximo de 24 pessoas. 

Entrar na construção é como viajar no tempo ou para dentro de um livro de história. 

Enquanto os olhos se ajustam à escuridão perene, quebrada apenas por lampiões, os demais sentidos captam odores sutis deixados ali dentro pelos homens que um dia chamaram esse lugar de casa. Um leve cheiro de suor, mofo, temperos condimentados e colchões velhos permanece suspenso no ar estagnado. Tudo rescende a um ambiente perdido no tempo: tecidos rústicos, metal polido, objetos enferrujados, tábuas de madeira no chão, garrafas empoeiradas, velas de cera, cordames pendurados em vigas de sustentação. O ambiente parece abarrotado de objetos espalhados em mesas, prateleiras e armários como num velho armazém da fronteira. Casacos pendurados, fogões com restos de cinzas, pratos empilhados e cobertores deixados sobre as camas há mais de cem anos.



É quase possível sentir a presença dos homens que um dia ocuparam esse ambiente. Tudo está perfeitamente conservado, igual ao dia em que eles estiveram aqui pela última vez, uma forma única de conhecer experiências e sua vivência.

Quando se ouve a expressão "congelado no tempo", ele certamente se aplica a essa cabana histórica.

Mas como o lugar foi preservado dessa maneira? A explicação é simples, as temperaturas congelantes e a falta de umidade no ar funcionam como fatores reguladores. Tudo o que está ali dentro se mantém intacto e livre de microrganismos, mesmo um pedaço de pão deixado em uma cesta, as batatas na despensa e um naco de bacon continuam iguais, apenas ressecados, mas perfeitamente discerníveis. Nada apodreceu ou se deteriorou após tanto tempo.

A cabana histórica e seus quase 18 mil itens são protegidos pelo Antarctic Heritage Trust, uma sociedade que preserva a memória das primeiras expedições, zelando por seu legado. Os especialistas à serviço do Trust, em sua maioria historiadores, são responsáveis por cuidar dos objetos e conservar seu estado. Eles viajam ao menos uma vez por ano até a cabana para fazer uma avaliação e registrar qualquer alteração. 

       


A cabana de Shakleton permaneceu oculta por 39 anos, após ser soterrada por sucessivas nevascas. A maioria das pessoas acreditava que ela havia ruído por completo e que seu conteúdo tivesse sido disperso pelo vento e perdido para sempre. Entretanto, ela foi achada por exploradores soviéticos em 1956 que perceberam um monte incomum de neve no local ocupado pela expedição pioneira. Uma escavação permitiu acessar o interior da cabana o que levou à descoberta de que ela se encontrava em perfeitas condições.

A despensa foi deixada com suprimentos suficientes para durar todo o inverno. Eram garrafas com óleo, melado e suco de limão, centenas de latas de sopa, molho de tomate e carne ensopada, além de cestas com pão, compotas e geleia, nacos de queijo duro e blocos de manteiga. Chama a atenção ainda a grande quantidade de bebida alcóolicas estocadas na cabana, diversas caixas e engradados de whisky, vodca e rum, que permaneceram intocados. Quando localizaram a cabana, os russos tomaram a liberdade de comemorar abrindo uma das garrafas de whisky e brindando ao seu notável achado.

Outra cabana congelada crucial para a expansão da Antártida e que foi igualmente preservada pertenceu a Expedição Terra Nova de Robert Falcon Scott que explorou o Continente Gelado em 1917 e que buscava chegar ao Pólo Sul. 



Scott e sua equipe utilizaram essa cabana como cabeça de ponte para se lançar em sua jornada terrestre através do interior do Continente. Infelizmente ele e um grupo de seus homens de confiança morreram de frio, fome e exaustão em sua jornada de volta a poucos quilômetros de um depósito de suprimentos que salvaria suas vidas.  

O depósito que eles estavam próximos de atingir era bem parecido com a cabana que ainda se mantém na paisagem gélida sobre o Mar de Ross. Os suprimentos estocados em caixas, sacos e garrafas continuam lá, no mesmo lugar: jamais foram removidos e acredita-se boa parte dele, poderia ser até consumido (ao menos, em uma emergência).




Muitos exploradores pela primeira vez na Antártida acrescentam ao seu roteiro uma passagem, ainda que rápida pela cabana de Scott, tornando-a um dos lugares mais visitados do continente. Uma das coisas que chama a atenção à respeito da Cabana de Scott é o conforto rústico que o o lugar oferece, com camas de palha, cobertores de pele de urso, armários repletos de casacos de pele de foca e um estoque considerável de comida e combustível.

A expedição Scott foi uma das mais bem equipadas de sua época, contando com uma quantidade notável de suprimentos e material para garantir o mínimo conforto de seus membros. 

Assim como aconteceu com a cabana de Shackleton, o refúgio montado por Scott foi soterrado por nevascas e por muitos anos permaneceu inacessível. Ele também foi encontrado décadas mais tarde por exploradores e escavado para poder, uma vez mais, ser visitado.



A terceira cabana que nos permite viajar no tempo e conhecer a rotina de exploradores durante sua passagem pelo Continente Gelado se localiza na região conhecida como Polo Inacessível. Erguida por uma Expedição Soviética no ano de 1958, a estação temporária marcou a primeira tentativa do país em se estabelecer na Antártida e consequentemente sua conquista do Polo Sul.

A base originalmente batizada Leningradskaya também é famosa por ter registrado a mais baixa temperatura oficial aferida por exploradores no continente, nada menos do que -58,2 graus Célsius. 

A estação era tão gélida que seus residentes temporários a chamavam de "Antártida da Antártida".

Uma vez que ela foi erguida em 1958, no auge da Guerra Fria, os soviéticos a trataram como uma enorme conquista de sua nação. Carregaram para lá um busto de bronze do Camarada Lenin que acabou se partindo no primeiro inverno em função do frio extremo. No ano seguinte trouxeram um segundo feito de plástico super-resistente, que foi colocado sobre uma enorme caixa para que pudesse observar a vastidão da paisagem gelada.  A estátua de Lenin continua lá no mesmo local, embora a estação não seja usada desde 1965.


Além da estátua, a estação chama a atenção pelos veículos de neve abandonados na frente da cabana como se tivessem acabado de ser deixados ali. Esses veículos apelidados de "Pinguins" foram usados pela equipe que conseguiu atingir o polo. Um deles foi levado de volta para a URSS e exposto em um museu, os demais tiveram um fim bem menos glorioso sendo abandonados para enferrujar expostos aos elementos há décadas.

As três cabanas são uma parte importante da história humana e permanecem como monumentos para a necessidade do homem de explorar seu planeta e além. Verdadeiros marcos de nossa resistência e perseverança diante dos mais severos revezes, continuam lá e provavelmente continuarão por muito tempo.

2 comentários:

  1. Fascinante! A Antártida será ainda por muito tempo um baú de mistérios, e certamente fonte de inspiração para muita história!
    https://bardodanevoa.blogspot.com/

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  2. Irado!! Uma viagemzinha por lá não seria nada mal. =)

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