sábado, 6 de março de 2021

A lenda da Montanha do Medo e do Mosteiro na Fronteira do Além



Lugares Estranhos no mundo.

Lugares que parecem conectados com um outro mundo e que funcionam como uma encruzilhada entre o aqui e o além. Em tais lugares nem tudo é o que parece, nem todas as leis da natureza funcionam e nem todas as verdades são absolutas.

Localizada na parte central da remota Península de Shimokita no distrito de Aomori, norte do Japão, encontramos a montanha vulcânica conhecida como Monte Osore. E este é um desses lugares estranhos. Também chamada Osore-zan, seu nome deixa claro que se trata de um lugar infame, já que pode ser traduzido como "Montanha do Medo" ou "Montanha do Terror". A região possui um aspecto rude, marcado por uma sensação indescritível de profundo isolamento que faz com que ele mereça seu nome. 

Monte Osore é formado por uma cadeia de oito vulcões e possui uma paisagem escarpada, permeada por um forte cheiro de enxofre. Esse odor pronunciado é lançado no ar por depósitos de gás subterrâneos e caldeiras. Eles são a fonte dos anéis de fumaça que encobre o topo das montanhas e da sinistra água toxica amarelada que desce pela encosta. O Lago Osori, no topo do monte principal possui uma água tão cáustica que é capaz de corroer metal.

A paisagem estranha do Monte Osore

É uma região acidentada, rochosa, com aspecto de superfície lunar, repleto de pedras lascadas e uma fumaça mortal que surge das profundezas da terra. O solo é escuro, com fragmentos de vidro formados naturalmente. Cientes de tudo isso, a natureza tende a evitar a região: poucos pássaros e ainda menos animais rasteiros  chamam esse lugar insalubre de lar. Mesmo a vegetação é esparsa, com apenas os espécimes mais tenazes conseguindo se adaptar à aridez reinante.

Ainda assim, o Monte Osore é uma terra de beleza surreal com vales e paisagens surpreendentes. Talvez seja esse estranho casamento de beleza e perigo o responsável por tornar o Monte Osore o centro de tantas lendas e histórias sobre o mundo sobrenatural e fantástico. Um mundo que ali parece muito próximo.

O Monte sempre foi cercado por mitos e lendas, desde os primeiros registros sobre sua existência. A lenda mais antiga menciona um monge budista chamado Ennin que recebeu uma visão  quando ainda estava na China. Nessa profecia ele foi contatado por um poderoso espirito que lhe mandou seguir rumo ao Japão e uma vez lá tomar o caminho para o leste.  Ele foi instruído a encontrar um lugar espelhando a cosmologia budista, cercado por oito montanhas e tendo um monte, a exata geografia em torno do Monte Osore. 

O monge vagou por quase um mês antes de encontrar o que estava procurando, lá ele descobriu um platô onde experimentou outra visão sagrada na qual contemplou um monastério. Nos 20 anos que se seguiram, ele ajudou a construir o primeiro templo Bodhisattva Jizo que se tornou o centro da religião no Japão.

Uma representação da busca do Monge Ennin

Depois disso, as crenças sobre esse lugar desolado ser um portal para o submundo budista se difundiram com rapidez. A paisagem sombria era exatamente aquilo que os primeiros budistas supunham ser a representação da terra dos mortos. A região do Monte Osore é cercada por oito montanhas distribuídas de tal maneira que o padrão remete às oito pétalas da flor de lótus. Mais que isso, assim como nas lendas, o leito seco de um rio corta transversalmente a paisagem. O curso d'água, conhecido como Sai-no-Kawara, que significa "leito seco do submundo" é similar ao das escrituras.

De acordo com o saber budista, o rio deve ser cruzado por todas as almas em seu caminho para o pós vida. Aqueles que se perdem nessa travessia acabam se convertendo em espíritos habitando um tipo de limbo. Tal condição é especialmente crítica para as almas de crianças se estas morrerem antes de pagar a divida de vida que tem com os pais. Os espíritos dessas crianças ficam presos ao rio pela eternidade e desesperados tentam puxar aqueles que atravessam suas águas. Para se proteger desse perigo, monges colocaram marcos com símbolos sagrados e estátuas ao longo do curso para que eles afastem esses espíritos.

Sendo o rio um tipo de encruzilhada entre o mundo real e o sobrenatural, é natural que ele funcione como uma espécie de via de não dupla. Embora a maioria das almas sigam o caminho do pós vida, outros seres espirituais usam o mesmo curso para penetrar em nosso mundo. Entre os seres que cruzam esse umbral estão espíritos confusos, almas espúrias e claro, demônios. Estes demônios, segundo o folclore são seres de maldade incomparável que existem apenas para possuir pessoas, corromper e disseminar o caos. São geralmente invisíveis, mas por vezes escolhem se deixar ver, assumindo formas grotescas que espelham loucura e horror inenarráveis.

Estátua que protege a margem do rio dos espíritos

Para lidar com essas ameaças, os monges Bodhisattva Jizo aprendem técnicas que lhes permitem esconjurar esses demônios de volta ao submundo. Os rituais envolvem canto, dança, gestual e o uso de fórmulas místicas. Envolve por vezes também saber manipular armas de forma letal. Os demônios possuem pessoas inocentes e animais selvagens transformando-os em monstros. A única maneira de expulsa-los é arrancando as entidades e prendendo-as em objetos inanimados que mais tarde são descartados em caldeiras profundas que supostamente se conectam ao submundo.

Os numerosos dutos que vomitam fumaça, calor e enxofre no ar pontilham os arredores do Monte Osore. Conforme a tradição, cada duto supostamente conduz a um diferente inferno e um reino sobrenatural habitado pelas entidades.

As pontes também são de extrema importância para as crenças locais. Sobre outros cursos hídricos, como o Rio Sanzu, há várias pontes de formato curioso. Para os olhos dos vivos, estas pontes arqueadas, pintadas de vermelho escarlate são uma mera construção para ir de uma margem a outra. Para os espíritos eles são um obstáculo formidável. De tempos em tempos, monges se colocam sobre uma dessas pontes para afugentar os horrores da terra dos mortos e garantir a passagem das almas virtuosas.

As Pontes que Bloqueiam os Espíritos Malignos

O sagrado Templo na Fronteira - Bodai-Ji

A tradição local afirma ainda que o rio corre para o interior do Monte Osore. Um templo Zen-Budista chamado Bodai-Ji foi construído no ano 862 dC, no exato local da entrada da caverna, e ele está lá até hoje. 

Há muitas histórias e mistérios a respeito desse lugar proibido para qualquer um sem a devida permissão. Em seu interior atrás de altos muros, coisas estranhas tendem a acontecer pois é o mais perto que uma pessoa pode chegar do além, ao menos, sem estar morta.

Fantasmas e sombras vagam pelo lugar. São espíritos pertencentes a monges que escolheram ficar para sempre no monastério como seus defensores. Um dos mais importantes tesouros são quatro enormes banheiras de pedra, onde aqueles que se banham são curados de todas as doenças conhecidas e recebem o dom de uma longa existência. Os monges, dizem as lendas, vivem mais de 200 anos por conta disso. Há ainda uma imensa estátua de  Bodhisattva Jizo, que supostamente adquire vida para entrar no mundo espiritual e combater os demônios que lá habitam. Além disso, monges e iniciados se colocam como protetores desse acesso. Uma antiga lenda zen budista diz que se um dia o monastério ruir, a fronteira ficará desguarnecida e todos horrores do além virão caçar os vivos.

Uma Itako enfrenta um demônio que escraviza os mortos

Bodai-ji talvez seja mais conhecido por um pequeno cabal de monges sensitivos conhecidos como Itako, místicos treinados desde a infância para se comunicar com o além.  As itako são todas mulheres e tradicionalmente cegas, embora nos dias atuais essa condição tenha sido abandonada. Seu condicionamento e os rituais de purificação lhes garante uma profunda sensibilidade quanto ao mundo espiritual. 

O treino das itako e tão intenso, suas práticas asceticas tão severas e sua existência tao espartana, que poucas são capazes de concluir o caminho. Estima-se que haja menos de 20 dessas médiuns no Japão, metade delas permanentemente vivendo em Bodai-ji.

Entre as habilidades das itako está a capacidade de dar voz aos espíritos, permitindo que eles as usem como condutores. Elas encarnam os maneirismos, a voz e o saber dos mortos. Parentes e amigos as procuram em desespero querendo saber dos seus entes queridos que partiram. Duas vezes por ano, no verão e outono é comemorado o festival de "Itako Taisai," que congrega as itako do país para a realização dos seus rituais mais importantes. O festival é extremamente popular, e atrai muitos peregrinos, muitos deles pessoas de luto que desejam se comunicar com os mortos é saber se fizeram a travessia.

Os Monges enfrentam todo tipo de ameaça sobrenatural no Monte Osore

Mas o Monte Osore não é apenas morte, esquecimento e o fim de todas as coisas. Os monges acreditam que uma porção do paraíso transcedental existe em um lugar secreto nessas mesmas montanhas sagradas.  Esse pedaço do paraíso faz fronteira com o mundo físico e está ligado ao mítico Lago Gokuraku, que possui uma praia de areias brancas imaculadas. Os monges que conhecem a localização do lago o visitam no verão e depositam na areia presentes ofertados aos espíritos virtuosos. 

A história do Monte Osore é extremamente rica e seus mitos de uma complexidade incrível. 

É possível que nós jamais venhamos a compreender a real extensão de seus mistérios. 

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