terça-feira, 29 de novembro de 2022

Keziah Mason - A mais perigosa Bruxa de Arkham

 

No final do século XVII, o Demônio deixou suas pegadas na Nova Inglaterra, ou assim muitos acreditavam.

Caça às Bruxas estava em seu momento mais agudo. Inocentes eram acusados sem motivo, homens e mulheres eram capturados no meio da madrugada e levados para interrogatórios, alguns chegavam a ser submetidos a torturas nos porões das casas de justiça. A histeria atingiu seu ápice quando um simples nome podia resultar em uma avalanche de delações. A febre que se instalou no Vilarejo puritano de Salem se espalhou com velocidade como uma epidemia de medo e zelo por toda Massachusetts. Crianças apontavam adultos, que apontavam vizinhos, que apontavam membros da família, que apontavam amigos... o ciclo vicioso ia se alimentando com a fofoca e rumores, aquilo parecia não ter fim.

Em meio a loucura, não é exagero afirmar que a maioria esmagadora dos acusados jamais teve qualquer ligação com feitiçaria ou magia negra. A maior parte dessas pessoas era absolutamente inocente, mas devido as circunstâncias aviltantes, aceitavam fazer o jogo dos acusadores. Afinal, aqueles que reconheciam sua alegada culpa e que entregavam outros nomes eram poupados da forca.

Mas e quanto aos verdadeiros culpados?

Entre os centenas de cidadãos inocentes que jamais professaram as artes negras ou malefícios blasfemos, haviam alguns poucos que de fato comungavam com as trevas. Eram realmente bruxas e feiticeiras perversas, que conheciam segredos ancestrais, se valiam de poderes aterrorizantes e de rituais profanos para obter poder. Mas ao contrário do que os caçadores de bruxas acreditavam, elas não serviam ao Demônio, mas a coisas muito mais tenebrosas que habitam os recessos do Tempo e Espaço. Nas noites sem lua, ou diante de fogueiras crepitando nas ravinas elas não imploravam pela intercessão de Satã, mas do Mythos de Cthulhu.

As primeiras cabalas de feiticeiras se fixaram na Nova Inglaterra quando os colonos pioneiros cruzaram a vastidão do mar em busca de um Mundo Novo. Alguns destes bruxos já sabiam o que existia além do oceano salgado, pois seus mestres profanos os haviam enviado sonhos e presságios sobre o que encontrariam em seu destino. O conhecimento das Américas e do que nelas vivia, também estava escrito em alguns volumes proibidos. Eles sabiam que aquela não seria a Nova Canaã como sonhavam os puritanos, mas uma terra perigosa em que os seres do Mythos andavam livremente: furiosos e selvagens. Esse era um território a ser explorado e conquistado e no afã de obter mais poder, mais influência sob uma parte do mundo até então pouco conhecida, certos bruxos empreenderam a longa jornada.


Supõe-se que Keziah Mason tenha se misturado aos primeiros colonos que se fixaram na costa da Nova Inglaterra. Não há praticamente nenhum registros dela até a data de sua captura e de seu julgamento ocorrido na assombrada cidade de Arkham. Não se sabe qual era sua idade, de onde ela veio, como chegou ou por que decidiu vir para o Novo Mundo. Tudo que se sabe é que ela já era velha e gozava de notoriedade entre a boa gente da região que escolheu chamar de sua casa. Todos a temiam e preferiam deixá-la sozinha. A mulher sempre viveu solitária, sendo uma das primeiras a se fixar na região ribeirinha do Rio Miskatonic em uma choupana insalubre de pedra caiada e telhado de juta. Apesar de velha e de aparência frágil, seus vizinhos negavam-lhe qualquer ajuda, ainda que muitos se dissessem cristãos caridosos. A velha desde o início lhes inspirava desconfiança, e tal qual animais silvestres que se tornam tímidos perante uma fera, os aldeões preferiam ignorar a velha. Diziam que havia algo nela que inspirava suspeita, repulsa e certo grau de temor.

A Casa de Mason era evitada, seus vizinhos mais próximos - que construíram suas casas a um bom par de milhas de distância, costumavam contornar a propriedade mesmo que isso lhes custasse um longo desvio de seus objetivos. Tudo porque a morada inspirava maus agouros, ninguém queria passar pelo portão e avistar a velha corcunda em alguma de suas  atividades desconhecidas. Alguns que a espiavam de longe contavam que ela andava pela frente da sórdida habitação desgrenhada e mal cuidada, falando sozinha ou com companheiros invisíveis. Os poucos corajosos afirmavam tê-la visto rachando lenha, cuidando de galinhas ou perambulando pelos arredores. Eles a olhavam de soslaio e apertavam o passo para que a matrona não os percebesse.

Descreviam o barraco em termos relativos, ninguém tinha coragem de chegar perto. Diziam que a habitação era decadente e que precisava de reparos, e que uma velha não deveria suportar a vida em lugar tão ermo. Ninguém tomava para si a façanha de afirmar ter entrado no barraco torto, e se o fizesse ninguém acreditaria em tal feito. Ao longe, observadores mais ousados haviam visto pedaços de ossos, pedras coloridas e vidro pendurados em fitas de couro pendendo no alpendre em que a velha sentava-se numa cadeira de embalar. Quando o vento soprava esses objetos dançavam, e contava-se mesmo quando o ar parecia quieto e estagnado, essa estranha decoração se movia, como por conta própria. Da chaminé de pedra, por vezes, via-se uma fumaça preta se erguendo. Essa produzia frequentemente um fedor ocre que a maioria não conseguia descrever. O jardim em volta da casa era pura erva daninha, um matagal que crescia selvagem, mas que mesmo assim custava a abafar os cogumelos e urzes que brotavam aqui e ali. Havia um cheiro que se concentrava naquela campina, um odor nauseabundo de fruta podre e losna ribeirinha.


A velha em si era uma visão de pesadelo e aqueles que a viram ainda jovens se espantavam já adultos ao constatar que ela continuava a mesma: Era medonha e medonha continuava. Não obstante sua frágil constituição, demonstrava uma energia inesgotável, coisa que deixava os aldeões desconcertados. Certa vez um viajante que passava de longe disse tê-la visto no telhado da casa. Ele não tentou explicar como ela havia subido ou como desceria daquele lugar. Para todos efeitos, era pequena, ou ao menos parecia ter baixa estatura, visto que andava arquejada. Uma protuberante corcunda formava uma massa informe nas costas magras. Essa postura incomum a fazia inclinar-se para frente, quase a ponto do rosto tocar o chão. As pernas tortas e mal ajambradas sustentavam o que mais parecia um saco de pele e ossos sem substância.

Mason usava sempre o mesmo traje, fosse inverno ou verão, um camisolão preto remendado, comprido nas mangas e na bainha que tocava o chão. Seus pés e braços ficavam ocultos, deixando à vista apenas as mãos artríticas, com dedos fechados em forma de garra, segurando firme no cabo de uma bengala nodosa de cedro. Andava com um gingado, se equilibrando feito uma árvore torta ao sabor de uma ventania.

Os poucos que a haviam visto de perto tinham a dúbia vantagem de descrever-lhe em maiores detalhes. Era uma anciã, nisso todos concordavam, mas ninguém era capaz de determinar sua idade. Tudo sugeria que ela devia ter visto muitos invernos e a hipótese de ser centenária era aceita pela maioria. Seus cabelos brancos como cal se estendiam além da cintura e pendiam desgrenhados em tranças compridas. A pele era amarelada da cor de papel envelhecido, marcada por manchas de senilidade e por outros sinais, em especial verrugas que pululavam aqui e ali. Na boca tinha apenas uma meia dúzia de dentes amarelados e seu queixo era incrivelmente pontudo. Os poucos que ouviram sua voz, a descreviam como um som raspante, as palavras entrecortadas por pensamentos altos verbalizados inadvertidamente e risadas guturais. Dada a falar sandices, Mason parecia ter longos diálogos com interlocutores imaginários. Os olhos de um azul pálido eram bem vivos, sempre alertas ao menor movimento.


Os mais supersticiosos diziam que a velha compartilhava sua casa com outros moradores estranhos. Mencionavam um homem de baixa moral, um conhecido ladrão que atendia pela alcunha de Brown Jenkin que teria residido no casebre decrépito por algum tempo. As pessoas de Arkham sugeriam que ele fosse um sobrinho distante, mas as más línguas diziam até que Jenkin era um foragido que aceitara se emancebar com a velha em troca de refúgio. Os rumores prosseguiram por algum tempo até que sumiram junto com o próprio Jenkin que deixou de ser visto nas imediações da propriedade.

Mais ou menos nessa mesma época, alguns curiosos começaram a notar que Mason carregava em seus braços um animal de cor castanha, magro e de pelagem desgrenhada. O bicho, pelo tamanho, um gato, estava sempre aninhado em seus braços, com o rosto escondido nas dobras de seu manto remendado, como se temesse olhar os arredores. Ninguém jamais viu o animal de perto, mas supunham que velha e felino faziam companhia um ao outro.

Em 1692, o nome de Keziah Mason viria a tona no auge do terror das bruxas. Parecia natural ao bom povo de Arkham, que há tanto tempo nutria um temor pela anciã considerá-la com uma séria suspeita de praticar malefício. Não está registrado nos autos documentais da comarca em que circunstâncias o nome dela foi suscitado pela primeira vez, mas sabe-se que Keziah Mason foi buscada por três doutores da lei que reuniram forças para empreender uma visita a ela, depois de várias queixas serem feitas. Os homens retornaram transtornados. Não chegaram a entrar na casa torta, tendo a velha os recebido do lado de fora. Apesar disso, diziam que havia indícios para supor que a anciã era o que muitos temiam, e pior... um dos homens, que atendia pelo nome Turner chegou a sugerir ter visto um tipo de diabrete observando por traz da janela de vidro grosso da cabana. A coisa medonha, segundo ele tinha olhos perversos e brilhantes. A bruxa apenas gargalhou e desconversou dizendo que aquele era seu animal de estimação.

Os doutores acharam por bem voltar mais tarde, acompanhados de soldados armados com espada e mosquete. Reuniram os homens da milícia e quando convergiram para o local encontraram a velha como se estivesse lhes esperando no alpendre, sentada a se embalar na cadeira. Tinha um olhar desafiador e concordou imediatamente em acompanhá-los para um interrogatório na cadeia de Arkham. Pediu para que ninguém entrasse em sua cabana enquanto estivesse fora, mas quando os homens lhe comunicaram que essa passaria por uma revista ela não tentou dissuadi-los. Ao invés disso apenas falou algumas palavras sem sentido, como era de costume.


De início acharam que Keziah Mason era simplesmente insana. Tudo nela sugeria ser dada a desatinos e pouca concentração. Enervava aos que a questionavam que ela falasse sozinha e que olhasse para o vazio como se estivesse vendo alguma coisa que só ela era capaz de enxergar. No vilarejo, sua chegada foi um acontecimento. Curiosos pararam suas tarefas para ver de perto a temida anciã de quem tanto haviam ouvido falar. Não se impressionaram com a visão da velha atarracada e corcunda, sendo puxada pelo braço por um dos milicianos com a espada nua. Sentaram a velha diante de um Juiz e este procedeu em uma série de perguntas, avisando Keziah Mason formalmente que ela estava sendo acusada de bruxaria. Diferente da maioria dos acusados de crime tão pérfido, a velha se manteve serena e só abriu a boca para perguntar quem lhe havia imputado a acusação. O Juiz por sua vez informou que a identidade do delator seria resguardada e cortando direto as fases do inquérito perguntou à ela como se declarava.

Antes de se manifestar, entretanto, a reunião foi interrompida por um esbaforido rapaz da guarda que trazia notícias medonhas a respeito da revista que haviam procedido na cabana. O rapaz tremendo como vara verde contou que enquanto revistavam a tapera acharam coisas medonhas que não deveriam estar na posse de uma pessoa temente a Deus. No porão insalubre de terra batida, os homens se depararam com um caldeirão de ferro, uma série de beberagens de aspecto misterioso e uma medonha estatueta de uma coisa diabólica em formato de barril. Pior que isso, entretanto, foi descobrir que no chão de terra remexido estavam enterrados vários ossos de crianças.

A velha mesmo naquela instância, confrontada pelas sérias acusações, se mostrava absolutamente calma e serena. O juiz a intimou a confessar seus atos malignos e ela então, para surpresa geral, pôs-se a falar desatinadamente a respeito de seus maus versos e toda sorte de blasfêmia e profanidade. Confessou entre outras coisas que o Diabo havia lhe revelado o nome secreto de Nahab e a levado para lugares isolados onde realizou rituais em sua honra. Contou ainda ter encantado crianças, usado os infantes como sacrifício nos mais medonhos rituais para satisfazer a fome e a lascívia de demônios por ela invocados. Disse ainda que o Homem Negro era seu hóspede frequente, recebido com honrarias em sua morada, onde Deus não era bem vindo. O Homem Negro em troca de sua servidão havia lhe proporcionado visões maravilhosas que incluíam vislumbres do passado e futuro. Entregou também em suas mãos artefatos mágicos, o segredo para destilar poções de todo tipo e o conhecimento de magias que lhe permitiam viver indeterminadamente. Ensinou a ela também todo um rosário de pérfidas maldições, entre as quais a mais terrível de todas que ela confessou ter lançado sobre seu então inquilino, o desaparecido Brown Jenkin. Quando questionada a respeito disso, apenas riu e disse que ele a servia com a devoção de um bicho de estimação.

Em meio ao depoimento, iniciado quando o sol estava no alto e concluído quando a madrugada já ia longe, um dos notários desmaiou e outro doutor da lei, começou a gargalhar como um desvairado. O Juiz, mandou então que as anotações fossem destruídas. Em seguida proferiu a sentença sem que, na sua opinião, fosse necessário ser realizado um julgamento. Para amparar sua estranha decisão, o Juiz explicou que "as palavras da bruxa não deveriam ser ouvidas por mais ninguém".

Decidiram que Keziah Mason seria executada na forca e que seu corpo posteriormente seria queimado. Enquanto os preparativos eram realizados, a velha foi levada até a prisão localizada abaixo do prédio da guarda. Lá, três acusados que se encontravam à ferros imploraram para serem transferidos para outro lugar, tamanho o medo que sentiam de estar na presença da anciã. Em uma decisão inédita, o Juiz acatou o pedido e todos acusados foram movidos para outro local, deixando a masmorra exclusivamente para ser ocupada por Mason.


Os preparativos para a execução correram aceleradamente. Um patíbulo foi erguido nos arredores da vizinhança que hoje corresponde a French Hill. A estrutura de madeira foi erguida por carpinteiros locais que também providenciaram uma corda resistente que serviria de verdugo. Ocorre, contudo, que a execução jamais ocorreu.

Quando os carcereiros abriram a cela em que a velha estava trancafiada, encontraram o local vazio. Não havia nenhum sinal de Keziah Mason que desaparecera como por magia. Um dos carcereiros disse ter ouvido a velha ruminando sozinha a noite inteira, mas que ele não desejou se aproximar para ouvir claramente o que ela dizia. O único sinal de sua estadia, deixado pela velha nas paredes, foram vários desenhos misteriosos rabiscados com sangue e excremento. Os símbolos sinuosos pareciam letras de um estranho alfabeto e se confundiam com símbolos zodiacais e outras loucuras. Símbolos similares foram encontrados nas paredes da choupana e pareciam ser uma espécie de linguagem desconhecida que formava padrões em espirais terminando em ângulos retos.

Para alguns dos moradores de Arkham, o incidente foi uma demonstração aterrorizante do poder do demônio. Outros, entretanto, ficaram satisfeitos pela feiticeira ter sumido sem lançar sobre eles uma maldição. O terror de ter de cumprir a sentença e matar a bruxa atormentava os bons cidadãos de Arkham que imaginavam no que acarretaria essa ação temerária. O Juiz do caso foi chamado em Boston para explicar o ocorrido e diante de uma junta dos seus pares, relatou o ocorrido e depois simplesmente se resignou ao ser dispensado de suas prorrogativas.

Um novo Juiz foi designado para presidir em Arkham, o honorável Wallace Boyd chegou ao povoado decidido a cumprir uma das ordens diretas dadas pelos seus superiores: derrubar a sórdida tapera. A ordem, no entanto, jamais foi cumprida. O Juiz sofreu um ataque cardíaco fulminante e morreu enquanto inspecionava o local. Depois disso, os habitantes de Arkham se negaram a colocar a choupana abaixo. Possivelmente para evitar alguma maldição, a população fez um pedido para que ela fosse deixada de pé, supostamente para ser ocupada no futuro. O assunto foi deixado nas mãos do povo de Arkham e não foi mais abordado.

O casebre abandonado permaneceu fechado por décadas, considerado um dos lugares mais assombrados de Arkham, conhecida dali em diante como "A Casa da Bruxa". De Keziah Mason não se ouviu mais nada. A feiticeira sumiu sem deixar vestígios. Alguns supunham que ela ainda surgia de tempos em tempos na casa em que viveu por tanto tempo. Para amparar essas conjecturas diziam que fumaça se erguia da chaminé de pedra e que luzes esverdeadas brilhavam lá dentro. Ninguém ousava sondar a casa para saber ao certo.


Por muito tempo o local permaneceu intocado. Não foi visitado por ninguém até meados de 1830 quando a Cidade de Arkham começou a crescer na direção dos bancos do Miskatonic e da casa d emá fama. Construções simples foram surgindo ao redor da propriedade, ao Leste da Rua Pickman, que passou a ser o seu endereço oficial. As primeiras habitações foram erguidas por ex-escravos libertos que não tinham muita escolha a respeito de onde viver. Depois, quando estes foram embora, chegaram os imigrantes para se estabelecer na vizinhança decadente. A casa continuou vazia até que em 1880 alguém resolveu construir um anexo e transformá-la em um sobrado para aluguel. A propriedade foi então desmembrada, locada para os muitos estrangeiros alemães, polacos, espanhóis e ucranianos, que mal falavam o idioma local e que desconheciam também sua história.

Alguns desses moradores se queixavam com os senhorios; diziam que a casa era insalubre: velha, fria e decrépita. Aqueles que podiam se mudavam depois de algumas poucas semanas, os mais depauperados duravam mais. Para seus conterrâneos confidenciavam sonhos desagradáveis com uma velha de aspecto medonho e um animal castanho, igualmente hediondo que espreitava pelos cantos arranhando e guinchando atrás das paredes.

Na década de 1920, o decadente casarão, era compartilhado por várias famílias de imigrantes. Pouco depois, o jovem estudante de matemática Walter Gilman, um brilhante aluno da Universidade Miskatonic se estabeleceu na propriedade. Gilman alegava que a casa possuía uma arquitetura única e que em certos ângulos haviam glifos gravados que correspondiam a complexas fórmulas de hiper geometria. O estudante esperava realizar um levantamento da casa e de sua estranha geometria, contudo ele adoeceu e passou a ser acometido por crises nervosas. Gilman faleceu poucos meses depois em circunstâncias misteriosas, atormentado por alucinações que o levaram a loucura. Supõe-se que sonhos tenham ocasionado seu delicado quadro de instabilidade mental. Mas a bem da verdade, "se os sonhos trouxeram a febre ou se a febre trouxe os sonhos, Walter Gilman não sabia".

Após estes acontecimentos funestos, a casa foi esvaziada e o município exigiu seu fechamento em decorrência da alegada presença de enormes roedores. Em março de 1931 uma ventania danificou a Casa da Bruxa e fez parte de seu telhado desabar. Apesar dos protestos da Sociedade Histórica da cidade, a prefeitura decidiu enfim demolir a habitação centenária, o que aconteceu em meados de dezembro. Na ocasião, os operários teriam encontrado um acesso a uma parte antiga do porão utilizado por Keziah Mason. Em seu interior foram descobertos alguns itens chocantes doados a Universidade Miskatonic.

O ocultista Morgan Smith mais tarde arrendou a área em que a casa existia, esperando explorar energias psíquicas que, segundo ele, abundavam no local. O terreno desde então encontra-se abandonado, e uma vez que a região se converteu em uma das menos valorizadas, ninguém mais tentou erguer algo ali.

sábado, 26 de novembro de 2022

Tomo Proibido - A infame história do Livro de São Cipriano


Eu não sei quanto a vocês, mas quando alguém menciona o Livro de São Cipriano, sempre me vem a mente algo proibido e assustador. Chego a ouvir o som de trovões no fundo e cães uivando...

Ok, não vamos tão longe, mas para quem, assim como eu, está na casa dos 40-50 anos, deve estar familiarizado com o tal livro. Quando eu era criança, São Cipriano era o supra sumo do aterrorizante. 

Para quem não viveu essa época, ou não tem ideia do que estou falando, o Livro de São Cipriano era uma espécie de Manual de Magia Negra, verdadeiro Tomo de Feitiçaria que supostamente reunia uma série de rituais, magias e encantamentos que prometiam de tudo um pouco, desde "trazer a pessoa amada" e "encontrar tesouros escondidos" até "eliminar os inimigos e sumir com desafetos", além do famoso ritual para criar um "diabinho numa garrafa". Tinha uma coisa chamada "Oração da Cabra Negra" que me deixava especialmente apavorado.

O livro era vendido pelo correio (numa época em que Internet era ficção científica). Para ter acesso a um exemplar, era preciso mandar um ticket recortado de certas revistas para um endereço junto com o valor mais o frete e esperar entre 6 e 8 semanas até receber (ou não) seu volume em casa. A Lenda Urbana, no entanto, atestava que o livro precisava ser ganho como presente de um iniciado para um iniciante. Se você comprava o livro, os tais encantamentos não iriam funcionar. O Livro de São Cipriano também podia ser encontrado em certas lojas, aquelas que ofereciam toda sorte de velas, santos e parafernália mística. Se você fosse numa dessas lojas e procurasse com cuidado, ele estaria lá, na vitrine ou prateleira.

Se bem me recordo, o tal livro tinha duas versões, cada qual prometendo ser a "verdadeira" e mais "confiável". Uma delas era o Livro de São Cipriano de Capa Preta, já o outro era a famosa Capa de Aço (já que tinha a capa metalizada meio mambembe). As duas prometiam a mesma coisa: remédios e místicos e bruxedos para todo tipo de problema. 

Numa época mais inocente, na qual essas coisas eram conversadas pela molecada aos sussurros, os livros eram o máximo do proibido. Sempre havia alguém na pracinha com um tio, um avô ou um parente que possuía o Livro de São Cipriano guardado em lugar secreto. Isso por que, segundo outra crendice, o livro não podia ser folheado ou lido por outra pessoa além de seu dono original. Eu era criança quando ouvi falar do Livro de São Cipriano pela primeira vez e fiquei impressionado pela descrição dele. Simplesmente manusear o livro podia ser "perigoso", de modo que o melhor era sequer tocar nele. E quer saber de outra Lenda Urbana? Haviam os que diziam que o Capa de Aço podia cortar os dedos de quem o lesse e sugar o sangue que caísse sobre ele. E se tal coisa acontecesse, você estaria perdido...


Como pode-se ver, não faltavam boatos, rumores e exageros sobre esse Livro Maldito, quase um Necronomicon do mundo real.

Mas afinal de contas, do que trata o infame Livro de São Cipriano? Qual o seu conteúdo? De onde veio a sua fama de livro perigoso? E mais importante, existe alguma base histórica para as histórias que o cercam?

Eu pesquisei a respeito e encontrei algumas coisas interessantes a respeito dele.

Para começo de conversa, sim, São Cipriano de fato existiu. Para ser totalmente justo, existiram dois santos com esse mesmo nome, o que cria certo grau de confusão já que viveram quase na mesma época: São Cipriano de Cartago, o mais conhecido é um dos Patriarcas da Igreja Católica e figura muitíssimo estudada por teólogos e filósofos. Já São Cipriano de Antióquia (uma importante região que hoje fica no Norte da Turquia) é conhecido por outras façanhas. Os Ciprianos são quase contemporâneos, enquanto o primeiro viveu no século III, seu xará andou pela Antióquia do século IV. Mas embora ambos sejam santos reconhecidos pela Igreja Católica, o segundo tem uma história colorida, para dizer o mínimo. Cabe saber que ele é tido como um dos mais poderosos Magos Ancestrais. Salomão é considerado como o mago judeu mais famoso, enquanto São Cipriano é sua contraparte cristã.

Como ocorre com figuras históricas antigas, a vida dele é uma mistura considerável de realidade com lenda e ficção. Não faltam histórias escritas em livros, inseridas em tradições cristãs ocidentais e orientais, como o Flos Sanctorum, um dos primeiros compêndios sobre a vida dos Santos e Mártires. Na Península Ibérica existem várias tradições sobre ele, já que vem de lá a maioria dos registros do passado e mais contemporâneos. Há documentos do século XII que se referem à trágica história e ao martírio de Cipriano e sua amada Justina. A história aliás é bastante peculiar e dá ensejo a uma série de questionamentos, levantando dúvidas sobre o caráter farsesco da narrativa.


Segundo a lenda, Cipriano nasceu nos arredores da cidade de Antioquia, na Turquia. Desde muito cedo, teve contato com as ciências ocultas, estudando alquimia, astrologia e diversas modalidades de magia ritualística. O interesse de Cipriano pelo mundo sobrenatural o impulsionou a uma longa viagem pelo Egito e Arábia, onde aprendeu muito a respeito de tradições místicas. Retornando de sua jornada ele se estabeleceu em sua cidade natal, onde passou a ser respeitado e temido como bruxo. Em certa ocasião, Cipriano foi contratado para lançar um feitiço sobre uma dama chamada Justina que havia se convertido a fé católica. O bruxo utilizou de todos os recursos que conhecia para afetar a jovem, contudo nenhum de seus malefícios surtiu efeito. Acreditando que Justina era defendida por uma força superior, Cipriano procurou saber mais sobre os cristãos. Em algum momento, graças à própria Justina que o perdoou por tentar lhe fazer mal, ele se converteu, renegando seu passado como feiticeiro.  

A notícia sobre a conversão de Cipriano chegou aos ouvidos do Imperador Diocleciano, um feroz inimigo da cristandade. Ele ordenou que o bruxo arrependido e Justina fossem presos e trazidos diante dele. Os dois foram ordenados a renegar sua fé. Teriam sido submetidos a severas torturas para que abandonassem sua crença. Os dois foram colocados em um caldeirão de cera quente, mas conseguiram suportar os tormentos graças à sua fé. Furioso com a teimosia dos prisioneiros, o Imperador ordenou os dois fossem decapitados. Seus corpos ficaram em exposição por seis dias, até que um grupo de cristãos conseguiu recuperar os restos e levá-los para Roma. Ao chegar lá, encontraram os restos em perfeito estado e mais, as cabeças reunidas novamente aos corpos. O acontecido foi tratado como um milagre e imediatamente eles foram canonizados. Os restos se encontram na Basílica de São João de Latrão em Roma.

Segundo a Doutrina Católica São Cipriano teria escrito um suposto Livro de Magia para ser usado contra todos os tipos de feitiçaria, encantamentos e olho gordo. Este se tornou muito famoso nos primeiros séculos da cristandade. Há, no entanto, muitos outros livros atribuídos a São Cipriano entre os quais Grimórios contendo Ensinamento Místico e uma fartura de instruções sobre como encontrar tesouros ocultos, utilizar magia negra, sabedoria profana e demonologia. Os defensores do Santo afirmam que esses tratados teriam sido escritos antes de sua conversão e nos tempos em que ele professava as artes mágicas. Tais livros são citados nos Tribunais da Santa Inquisição e em processos judiciais como material blasfemo. 

Na baixa Idade Média, possuir tal material poderia dar ensejo a uma investigação oficial da Inquisição e resultar, entre outras coisas, em execução. Uma referência a um processo instaurado em função de tais livros pode ser encontrado nos autos contra Juan de Toledo em 1610. O acusado tinha em seu poder um Livro de São Cipriano e o teria usado "para encontrar tesouros ocultos, valendo-se de magia e encantamento". Da Galicia espanhola vem uma conhecida referência que cita o "Libro de San Cipriano" num processo movido contra Juan Rodríguez, Presbítero del Ferrol, em 1702. Novamente o tratado teria sido usado pelo acusado com o objetivo de encontrar tesouros perdidos e riquezas materiais usando para isso poderes mágicos.    

É uma pena que os livros citados nos julgamentos não tenham sobrevivido nos arquivos inquisitoriais. Por algum motivo, o mito de São Cipriano tornou-se muito popular na Espanha e em Portugal a partir do século XII, possivelmente trazido por estudiosos que visitaram a Turquia pouco antes. Muitos autores famosos, como Miguel de Cervantes e Calderon de la Barca nos séculos XVI e XVII, escreveram obras teatrais tendo São Cipriano como protagonista (“La Cueva de Salamanca” e “El Magico Podrigioso”). Em Salamanca ficava a famosa Cueva de Salamanca, ou Cueva de San Ciprián, caverna que servia de sacristia – abaixo da Iglesia de San Ciprián (Igreja de São Cipriano) na qual se dizia que o Diabo ensinava magia negra aos universitários de Salamanca. Salamanca é uma das universidades mais importantes da Espanha e uma das mais antigas. A gruta esteve aberta até que a "Rainha Católica" Isabel mandou fechá-la por volta de 1500 lacrando os acessos ao local.


Em 1580 a igreja foi definitivamente destruída, mas parte da sacristia (que era ao mesmo tempo parte da gruta) sobreviveu e ainda hoje está lá. Salamanca e Toledo foram os centros mágicos mais famosos da Península Ibérica durante a Idade Média. Foi nestas importantes cidades que edições apócrifas da obra de São Cipriano foram editadas clandestinamente pela primeira vez, espalhando-se pelo restante da Espanha e outras nações. Livros de São Cipriano pipocaram na França, Itália e Inglaterra.   

No início do século XVII, algumas publicações surgiram em Portugal, nas cidade do Porto e na Capital, Lisboa. Estas supostamente foram editadas para satisfazer o desejo de nobres e ricos colecionadores portugueses que pagavam verdadeiras fortunas para ter em suas coleções os "verdadeiros" livros de São Cipriano. O desejo por esses livros era tamanho que há registros de indivíduos que venderam casas, vacas e fazendas para trocar por esses manuais de magia. Acreditava-se que os Livros eram uma forma de obter tesouros e que os valores pagos por eles retornariam, quase como um investimento. É dessa época que provavelmente decorre o termo "verdadeiro" que acompanha vários livros até hoje vendidos. Os colecionadores portugueses não queriam cópias, mas os livros reais que "cumpriam aquilo que prometiam".

Não existe, entretanto, nenhuma cópia conhecida em manuscrito do Livro de São Cipriano, ainda que registros feitos pela Inquisição afirmem que eles circularam pela Espanha trocando de mãos frequentemente. O estudioso Bernardo Barreiro afirmava possuir um desses originais, mas jamais permitiu que este fosse autenticado. As razões para não se conhecer nenhum exemplar são várias. Primeiro, a longa influência da Inquisição espanhola que censurou o livro, confiscou e destruiu os que caíram em seu poder. Segundo os volumes sendo tratados como tesouros valiosos, desaparecendo em coleções particulares e finalmente o confisco de livros já no século XX. Durante a Guerra Civil Espanhola e a ditadura de Franco, incontáveis volumes raros e inestimáveis foram queimados pelas autoridades. Certamente muitos textos mágicos e ocultos acabaram sendo destruídos nesses expurgos. 

Outra razão que pode explicar não haver exemplares sobreviventes diz respeito ao clima do noroeste da Espanha. A região galega é muito úmida e chuvosa, e os livros costumam estar muito mal conservados, quando não acabam destruídos pelas intempéries. Além disso, muitas pessoas que provavelmente possuíam tais exemplares acabaram imigrando para a América, evitando de levar esses livros potencialmente perigosos que poderiam acarretar em problemas com a Inquisição.

Os livros mais antigos de que se tem notícia, versando sobre a Obra de São Cipriano são do início do século XVIII. Um deles tem o cerimonioso título "HEPTAMERON OU ELEMENTOS MÁGICOS COMPOSTOS POR SAN CIPRIANO O MAGO", traduzido do Latim, mas com anotações em espanhol feitas por Fabio Salazar y Quincoces - Astrólogo, alquimista e famoso naturalista da época. É uma edição curiosa, diferente das outras por não ter semelhanças evidentes com grimórios europeus famosos. Seu conteúdo é típico: quiromancia, fisionomia, astrologia e feitiços. O nome de Cipriano é usado apenas no título do livro. Sua linguagem (espanhol em estilo antigo) e gravuras demonstram sua antiguidade.


Outra versão foi editada em Santiago de Compostela com o título "FEITICEIROS E ASTRÓLOGOS DA GALÍCIA E NOTAS DO FAMOSO LIVRO DE SAN CIPRIANO", que foi posteriormente publicado no Porto alguns anos depois. Este livro trata dos processos da Inquisição galega contra feiticeiros e astrólogos da segunda metade do século XVI e primeira metade do século XVII. O livro foi censurado, tornando-o mais acessível ao público em geral. A primeira parte da obra é semelhante à do Grande Grimório, tratando-se da preparação do mago e da criação do círculo cabalístico. A segunda parte inclui instruções sobre Círculos Mágicos e as Hierarquias Infernais Goéticas, além de receitas mágicas, criação de poções e eventuais rituais para encontrar tesouros ocultos.

Na América espanhola, os Livros de São Cipriano chegaram primeiro ao México, Peru e Argentina em meados do século XIX. Eles foram editados pela primeira vez em 1856 (no México) e se tornaram populares pelas promessas de riquezas e tesouros - novamente tratados como "verdadeiros e completos" em relação ao livro original.

Não demorou muito para que eles chegassem também ao Brasil. É provável que volumes editados em Lisboa tenham sido os primeiros a desembarcar no solo brasileiro, vindos na coleção de nobres e indivíduos ricos. Levou, no entanto, algumas décadas para que uma edição brasileira fosse impressa e vendida no país. A primeira de que se tem notícia data de 1895 numa pequena tiragem impressa no Rio de Janeiro da qual não se conhece nenhuma cópia sobrevivente. Depois dessa, é conhecida uma editada em São Paulo no ano de 1900 que já trazia o titulo de "O Verdadeiro Livro de São Cypriano, o Mago" na capa.

A primeira edição impressa em tiragem data de 1923 e ganhou o título "Grande Livro de S. Cipriano ou Thesouro do Feiticeiro", contando com aproximadamente 300 páginas e impressa pela Gráfica do Diário de Notícias, um dos jornais populares do período. O livro foi um impressionante sucesso de venda que justificou pelo menos mais três edições e uma versão popular com 108 páginas que podia ser comprada por pessoas menos abastadas. 

Depois disso, inúmeras edições foram publicadas no Brasil ao longo dos anos 1930-40, sendo o título redescoberto novamente em meados da década de 1960 quando o misticismo começou a atrair adeptos. Depois disso, o livro de São Cipriano nunca mais parou de ser vendido.


As versões brasileiras desde o princípio incorporavam textos de origem muito diversa, mencionando santos católicos, espiritismo, magia negra e finalmente trazendo elementos de religiões africanas. Não tratava mais especificamente do tema dos tesouros, tão importante em outras edições, mas dedicava enorme espaço a criação de objetos mágicos, patuás e amuletos de proteção, algo bem tradicional no Brasil. Incluía também longas receitas para curar doenças tropicais, tratar do veneno de animais peçonhentos, bênçãos, imposição das mãos e aflições causadas por demônios, maneiras de fechar o corpo contra o mal, etc. – algumas versões também apresentavam cartomancia, astrologia e quiromancia no seu repertório variado.

Nos anos 1970, os livros de São Cipriano no Brasil ganharam outro adendo sinistro que provavelmente contribuíram para a aura de proibição que pairava sobre este título. Eles passaram a conter rituais e magias que permitiam falar com os mortos, invocar demônios e compelir tais entidades à servitude. Magia branca e negra se misturavam nas páginas, com rituais que muitas vezes envolviam sacrifício de animais - gatos, pombos e cabritos pretos, algo que as versões ibéricas raramente abordavam. Em dado momento, aparentemente os Livros de São Cipriano (ironicamente ainda sendo chamado de "verdadeiros") mudaram tanto e de tal forma, que tinham bem pouco em comum com os livros que os precederam, mesmo aqueles editados no Brasil no início do século XX. 

De fato, os livros passaram a reunir todo tipo de Mambo-Jambo de quinta categoria, mais com o intuito de chocar e surpreender o leitor casual do que oferecer um tratado de misticismo ou ocultismo convencional. Em outras palavras, os livros de São Cipriano se tornaram uma mistureba de noções, conceitos e crendices variadas que bebiam de todas as fontes possíveis e imagináveis. Isso explica, a razão pela qual alguns livros passaram a trazer na capa as imagens de Exu, de caveiras, tridentes e outros símbolos de crenças africanas. Se um dia os livros ofereceram um vislumbre histórico, esse se diluiu de tal maneira que praticamente nada remonta ao Manual de Magia supostamente escrito por Cipriano de Antióquia. No fim das contas, o Livro de São Cipriano é acima de tudo uma colcha de retalhos de coisas diferentes. 

Para terminar essa história, eu não poderia deixar de contar sobre quando finalmente comprei um Livro de São Cipriano. Eu devia ter uns 17 anos e encontrei ele à venda numa feira de livros usados. Não resisti, levei para casa. De madrugada, sem ninguém por perto, abri o "livro proibido". E foi com uma grande frustração que folheei as páginas encontrando coisas bem ridículas numa edição barata.

Foi inevitável dar uma risada e pensar comigo mesmo: "Era disso que eu tinha tanto medo quando era criança"?

Acho que ainda tenho o meu exemplar do famigerado Capa Preta guardado em algum canto aqui em casa, não olho para ele há anos - e antes que alguém pergunte, claro que nunca tentei fazer nenhuma dessas * aham * "magias". Ele permanece como uma curiosidade e um belo exemplo entre a diferença abismal entre expectativa e realidade.

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Arte do Mythos - Um vislumbre traumático para Chamado de Cthulhu


"Atrás de tudo que é belo, existe algo escuro e assustador"

A arte sempre foi uma janela para apreciar o melhor da raça humana. Reside em nós a capacidade de criar e construir coisas de relevância e importância transcendental. Através das mãos de artistas, sejam eles escultores, pintores ou artesãos, autores, poetas ou dramaturgos, o mundo é moldado em formas cujo significado único reverbera em nossa alma.

Tais obras são um reflexo de nossa imaginação, criatividade e talento. Elas nos fazem pensar sobre a natureza, sobre emoções, o espiritual e o metafísico. A arte é o que nos diferencia de todos os outros seres, pois nenhum deles tem a capacidade de construir tal coisa intencionalmente.

Mas o que acontece quando a arte é usada como um janela para a Influência do Mythos? O que acontece se a arte for usada como um portal que conjura loucura, decadência e corrupção em seu estado mais puro? E se houvesse um artista capaz de capturar em seu ofício toda a essência do mal e destilar essa essência na forma de uma Obra de Arte?

Há uma frase atribuída a Francis Bacon que diz: "O trabalho do artista não envolve mostrar o belo, mas realçar o mistério", o que faz sentido considerando o teor polêmico das obras de Bacon. Da mesma forma Georgina Keefe diz que "é preciso coragem para criar seu próprio mundo e mostrá-lo para os outros". Nem sempre o público será capaz de compreender a proposta da arte e o que o artista pretendia dizer com sua obra.

O genial H.P. Lovecraft explorou essa questão em um de seus contos mais importantes, "O Modelo de Pickman". Nele, o autor arranha a superfície desses questionamentos, criando uma história de maldade que atravessa o tempo. Assustadora, desagradável, perturbadora, mas acima de tudo, fascinante, a narrativa de Lovecraft nos apresenta um pintor que toca a forma mais abjeta de corrupção e nela busca a matéria prima para sua arte.


Os quadros macabros de Richard Pickman e as figuras retratadas por ele na história causam asco naqueles que as admiram, ainda que sejam admiráveis pela condução e brilhantismo. As telas, resultado de um realismo fantástico, não são fruto da imaginação hiper-estimulada e talento para o inusitado do artista, mas da observação de criaturas vivas com as quais ele estabeleceu conluio - carniçais. Pickman encontrou essa raça abominável de canibais subterrâneos em suas explorações de cemitérios e criptas e com eles desenvolveu um tipo de companheirismo fraternal. Os monstros se convertem em seus modelos vivos. Pickman segue esses seres até seu covil, conhece seus hábitos nefastos e explora suas tradições. O artista extrai a inspiração para suas telas macabras. Mais tarde, no curso da história, sabemos que Pickman se torna, ele mesmo, uma dessas criaturas medonhas fazendo a transição final ao romper um dos maiores tabus da humanidade, o de consumir carne humana.

A história revisitada na forma do quinto episódio da antologia "O Gabinete de Curiosidades de Guilhermo Del Toro" possui algumas alterações significativas na trama, no desenrolar e na conclusão da história. Contudo um elemento permanece igual em ambas as versões: a natureza maligna dos quadros e como eles afetam a percepção humana. Se no conto temos uma tela medonha acompanhada da fotografia do modelo, no episódio temos uma fartura de quadros minuciosamente detalhados que abrem as portas da percepção para horrores desconcertantes.

Uma das grandes sacadas do roteiro é fazer com que as obras pareçam estar vivas!

Elas não se mostram como imagens estáticas, mas cenas do mais puro horror que afetam a sanidade do observador. Ao entrar em contato com essas telas, o indivíduo passa a sentir a presença desse mal e não consegue se afastar dele. É como se fosse uma doença contraída pela simples observação. O protagonista da história passa a sofrer com alucinações, vertigens, sensações e sonhos cada vez mais vívidos. No fim, ele se vê tomado de assalto por um pesadelo que não consegue afastar e que decreta a sua ruína.


Estava pensando em como usar essa noção em cenários lovecraftianos (ou jogos com inspiração em Lovecraft) fazendo com que objetos de arte (em especial pinturas, mas não apenas elas) pudessem ser usadas para afetar os personagens. Elaborei algumas regras simples e reuni ideias sobre como a arte pode realçar a loucura nos personagens.

A ideia é que certos artistas, sobretudo aqueles que espelham sua arte no Mythos são capazes de criar peças tão aterrorizantes que provocam um colapso mental daqueles que as veem. Me parece claro assumir três coisas que qualificam um artista a criar tais obras:

a) Que apenas artistas incrivelmente habilidosos tem o que é necessário para realizar tamanha façanha. Em termos de jogo, ninguém com menos de 85% em sua arte, seria capaz de criar obras dessa lavra. 

b) Que o artista em si possua algum vínculo ou elo com uma raça de criaturas do Mythos ou com uma divindade capaz de abrir seus olhos para tais verdades apocalípticas. Talvez o indivíduo tenha vivido entre os membros de uma raça profana como os Abissais, o Povo Serpente ou mesmo os Carniçais que apresentaram seus costumes e tradições a ele. Um artista que participa ativamente de um Culto também pode estar credenciado. Um seguidor de Shub Niggurath que se entrega ardorosamente aos ritos de fecundidade dançando e cantando, ou um devoto do Rei Amarelo que serve a causa de Carcosa escrevendo uma peça poderiam estar nessa categoria. Uma forma de determinar se o personagem estabeleceu essa conexão com o Mythos envolve ter perdido pelo menos metade da sua sanidade inicial.   

c) Finalmente, seria razoável supor que o artista precisaria ter obtido algum grau de conhecimento do Mythos. Talvez ele tenha lido um livro com conhecimento profano, compartilhado de emanações psíquicas de um Deus adormecido ou ainda vivido entre uma raça que lhe apresentou seus costumes blasfemos. Há uma vasto leque de possibilidades aqui, mas o conhecimento não deveria ser menor do que 15% de Mythos de Cthulhu.


Com esses três critérios satisfeitos podemos imaginar um artista capaz de criar obras verdadeiramente aterrorizantes. Mas como seriam essas obras e como elas se diferenciam de qualquer outra obra meramente de natureza sinistra.

Em primeiro lugar, creio que seria a aura de estranheza que mais chamaria a atenção. Obras versando sobre o Mythos transmitem uma sensação inquietante que as pessoas são capazes de detectar quase que de imediato. Eles simplesmente não parecem algo convencional, no sentido de que o mero exame desencadeia uma reação que varia de pessoa para pessoa: surpresa, estupefação, confusão, náusea ou mesmo inconsciência são consequências possíveis quando alguém se depara com uma obra dessa natureza pela primeira vez. 

Em alguns casos, pode haver um estranho fascínio, sobretudo quando a sanidade do indivíduo já está comprometida, ainda mais se ele tiver sido corrompido de alguma forma - um candidato a se tornar Carniçal, sem dúvida terá curiosidade sobre um item dessas criaturas que ele venha a conhecer, bem como um híbrido Abissal sentirá uma estranha familiaridade com uma joia ou ornamento dessa cultura submarina.

Entretanto, para a maioria das pessoas, uma peça de arte onde o Mythos serviu de inspiração oferece um vislumbre de uma realidade distinta. É como se o item em questão fosse uma chave para destrancar uma porta secreta em sua mente. E uma vez aberta essa porta um universo medonho escorre através dela. 

A psique é afetada, visto que a arte não foi feita para ela. A arte influenciada pelo Mythos não é apenas esquisita, ela é perigosa ao ponto de afetar as pessoas mentalmente e em alguns casos fisicamente, de fazer com que elas sejam tocadas por uma corrupção cósmica da qual não conseguem escapar.


A seguir, uma tabela de possíveis reações de personagens expostos a Arte do Mythos. 

Em termos de jogo um personagem exposto a uma obra dessa natureza estará sujeito a um Teste de Sanidade. Se este personagem falhar no Teste, além dos efeitos normais de perda de sanidade, ele estará sujeito também a um dos efeitos das tabelas à seguir. Como sempre, o Guardião pode adaptar a situação da maneira que melhor encaixar em seu cenário ou escolher a reação mais adequada.

As tabelas dependem de quantos pontos o personagem perdeu ao se deparar com a Arte do Mythos.

Tabela A - Se o personagem perder entre 1 e 4 pontos de sanidade:

Role 1d10

1, 2 ou 3 - Surpresa
4 ou 5 - Perplexo
6 - Estupefato 
7 - Assombrado
8 - Acometido por Vertigem
9 - Nauseado
10 - Fascinado

Tabela B - Se o personagem perder 5 pontos ou mais de Sanidade:

Role 1d10

1 - Surpreso
2 - Perplexo
3 - Estupefato
4 - Assombrado
5 - Acometido por Vertigem
6 - Nauseado
7 - Fascinado
8 - Abalado
9 - Transtornado
10 - Obsessivo


O que significa cada graduação:

Surpreso - O personagem simplesmente é pego de surpresa pela natureza incomum do Objeto de Surpresa e reage como tal. Ele pode não acreditar no que está vendo ou tentar racionalizar do que se trata, mas de uma forma ou de outra, reage com uma espécie de sobressalto difícil de disfarçar. Ele pode tentar fazer de conta que não ficou impressionado, mas é difícil esconder o quanto o Objeto Surpreendente o impressionou.

Perplexo - O personagem fica pasmo sem conseguir compreender as nuances e implicações da obra ou o objetivo do artista. Como resultado direto dessa confusão, sua mente se desliga e ele fica sem palavras. Por uma rodada ele não consegue reagir diante do que está testemunhando e quando o transe for rompido se sentirá incomodado pelo objeto de sua perplexidade. 

Estupefato - Mais severo do que a mera perplexidade que é rompida naturalmente a estupefação trava as ações do personagem e não permite que ele se manifeste até romper o transe em que se encontra. Diante do que testemunhou tudo parece parar e o próprio tempo parece se dilatar indefinidamente. O personagem continua consciente mas respira com dificuldade, fica apoplético e gagueja palavras sem sentido. O personagem fica sem ação por 1d3 +1 rodadas, podendo contudo ser tirado do estado de estupefação pela ação de um companheiro que o agite, esbofeteie ou jogue água em sua face. 

Assombrado - O Assombro é um grau mais elevado de paralisia imposta pelo choque. Um personagem acometido de assombro tem suas funções limitadas. Ele literalmente se desliga da realidade, sua mente fica nublada e incapaz de correlacionar as ideias e sensações experimentadas. Em termos de jogo, o Assombro se mantém por 1d4 +2 rodadas nas quais o personagem se desconecta. Ele poderá ser tirado desse estado de assombro pela ação de um companheiro (esbofetear, gritar ou sacudir). No entanto, os efeitos poderão retornar (no grau perplexidade) se ele for exposto novamente ao que causou o assombro. Meramente falar sobre o assunto causará uma sensação de desconforto e conforme o discernimento do Guardião, os efeitos de perplexidade. Essa condição se mantém por um número de horas igual ao número de pontos que o personagem perdeu no teste de sanidade.  

Acometido por Vertigem - Uma reação física diante daquilo que o personagem testemunhou. A Vertigem causa um efeito danoso na percepção do indivíduo fazendo com que seu equilíbrio seja gravemente afetado. Durante 1d3 rodadas, o personagem é acometido de uma forte vertigem: "o mundo inteiro parece girar, você não tem noção da profundidade e tudo parece fora de esquadro. Você precisa tentar se acalmar e respirar". Na iminência da vertigem o indivíduo não consegue manter o equilíbrio e quaisquer ações que o Guardião julgue depender deste são afetadas. Deste modo a critério do narrador suas ações estarão sujeitas a um Dado de Penalidade. 


Nauseado - Outra reação física que atinge que desencadeia efeitos dramáticos. O personagem sente uma Náusea profunda e é obrigado a fazer um teste de Constituição. Uma falha faz com que ele experimente uma reação nervosa cujo efeito principal é vomitar. Uma vez acometido pela náusea, esta se mantém por 1d4 rodadas ou até ele se ver longe daquilo que causou o efeito. Um personagem afastado se recupera em uma rodada, mas até lá, à critério do Guardião suas ações ficam sujeitas a um Dado de Penalidade.

Fascinado - Diferente das reações de asco, o fascínio faz com que o indivíduo se sinta de alguma forma compelido a compreender, entender e decifrar os segredos daquilo que acabou de testemunhar. O personagem fala insistentemente sobre o assunto, deseja conhecer o autor, saber o que o inspirou e entender cada nuance da obra em questão. Esse fascínio não é natural. Ele se mantém por um número de horas igual a 2 mais os pontos de Sanidade perdidos. A critério do Guardião, ações que necessitem de concentração e foco podem ser afetadas e o personagem pode ser obrigado a realizar estes testes com um Dado de Penalidade. Ações que envolvem o objeto de seu fascínio obviamente não são afetados, de fato podem receber um Dado de Bonificação.   

Abalado - O Abalo é um choque profundo que faz com que o personagem perca a consciência por alguns instantes. O efeito se mantém por 1d4 +2 rodadas, período no qual só pode ser trazido de volta à consciência se induzido por uma ação o Guardião julgar válida (por exemplo, o uso de sais). Uma vez se mantendo longe do objeto do abalo, ele irá se recuperar. No entanto, os efeitos poderão retornar (no grau Assombrado) se ele for exposto novamente ao que causou o Abalo. Meramente falar sobre o assunto causará uma sensação de desconforto e conforme o discernimento do Guardião, o efeito de Assombrado. Essa condição se mantém por um número de dias igual ao número de pontos que o personagem perdeu no teste de sanidade.  

Transtornado -  Essa é uma reação mais severa e potencialmente perigosa. O personagem se sente profundamente ofendido pelo Objeto do Transtorno e sente que precisa danificar, quebrar, ferir ou destruir o item em questão. Se for uma pessoa, ele pode se sentir compelido (à critério do Guardião) a atacar fisicamente o indivíduo. O Transtorno dura 1d3 +1 rodadas, período no qual a pessoa perde a noção do que está à sua volta e se torna agressiva. Ele sente uma necessidade urgente de dar vazão ao seu descontentamento gritando, xingando, chorando ou golpeando.   

Obsessivo - A modalidade mais potente de Fascínio, a Obsessão tem uma duração mais longa. O indivíduo se sente morbidamente atraído pelo Objeto de Obsessão. Ele sente que precisa de alguma forma compreender, entender e se conectar ao item em questão. Se possível precisa manipulá-lo e tê-lo como seu, precisa vê-lo novamente, ouvi-lo ou sentir o mesmo que da primeira vez. Se for uma pessoa, ele precisa estar próximo desta enquanto os efeitos estiverem ativos. A Obsessão não é natural e um psiquiatra pode determinar tal coisa. Ela se mantém por um número de dias igual a 2 mais os pontos de Sanidade perdidos. A critério do Guardião, ações que necessitem de concentração e foco podem ser afetadas e o personagem pode ser obrigado a realizar estes testes com um Dado de Penalidade. Ações que envolvem o objeto de sua Obsessão obviamente não são afetados, de fato, podem receber um Dado de Bonificação.   

Perda de Crédito - Atos de descontrole emocional nem sempre são compreendidos e podem ser extremamente danosos ao Crédito de um personagem. Manifestar uma reação exacerbada pode ocasionar, à critério do Guardião, uma perda de 1/1d6 pontos de Crédito se a notícia chegar ao grande público.

domingo, 20 de novembro de 2022

Phalaris, o Esquecido - Um destino apropriado para o mais perverso dos déspotas gregos


A história está cheia de figuras que um dia foram conhecidas, respeitadas ou temidas, mas que hoje em dia não são lembradas por mais que um punhado de pessoas.

Quando se fala a respeito de indivíduos um dia importantes, mas que hoje não passam de notas de rodapé em algum tratado acadêmico, eu sempre me recordo de um trecho escrito por Neil Gaiman para a saga Estação das Brumas de Sandman.

Nela, o Senhor dos Sonhos explora as regiões mais profundas do Inferno acompanhado do Anjo Caído em pessoa. Este está esvaziando seu Domínio e um dos habitantes que se nega a partir é justamente um Senhor da Guerra esquecido que atende pelo nome de Brechau da Livonia.

Num diálogo bastante inspirado, Lúcifer diz que Breschau está livre, que pode ir e que sua presença no Inferno não é mais necessária. O sujeito, preso numa rocha com correntes e torturado com ganchos descreve todos seus pecados, os horrores que lançou no mundo quando vivo, todo sofrimento, angústia e terror que espalhou pelos quatro cantos dos seus domínios. 

Lúcifer não parece muito impressionado e decide expulsá-lo de qualquer maneira:

"Ninguém lembra de você Braschau. NINGUÉM! Eu duvido muito que um mortal entre cem mil seja capaz de apontar onde ficava a Livônia num mapa. O Mundo esqueceu de você".




No fim ele acaba mandando o sujeito embora à despeito de seus protestos para continuar pagando pelos seus muitos pecados. Eu sempre achei esse trecho genial, a forma como a punição acaba se tornado tudo o que Breshcau da Livonia, outrora conquistador e vitorioso tem em sua existência. E tudo que ele foi um dia, não passa de poeira e esquecimento.

Com base nesse trecho, eu sempre imaginei quantos tiranos, déspotas e senhores da guerra existiram, foram temidos, odiados e que depois de morrer, acabaram simplesmente se tornando poeira.

Assim que li a respeito de um déspota chamado Phalaris lembrei de Brescau da Livonia. Se este é um personagem da ficção, Phalaris é tudo menos obra que ficção. Ele foi o tirano da cidadela de Akragas (atualmente Agrigento) na Sicilia, entre 570 até 554 aC.

O reinado de dezesseis anos de Phalaris foi marcado por uma crueldade excessiva, mesmo quando comparado a outros déspotas do mundo antigo. Entre as atrocidades inenarráveis cometidas está uma lista de atos simplesmente atrozes incluindo genocídio, tortura, perseguições e até mesmo canibalismo. 

Phalaris foi investido com o controle sobre a cidadela para construir um Templo majestoso em homenagem a Zeus. Contudo, ele tirou proveito de sua atribuição e colocou Agrigentum sob seu domínio com mão de ferro. Num primeiro momento, a cidadela gozou de certa prosperidade. Ele ordenou a construção de fontes para abastecer a população, adornou prédios públicos e reforçou as muralhas defensivas.  Na costa Norte da ilha, o povo de Himera o tornou General e concedeu a ele poder absoluto.


De acordo com o historiador Suda, Phalaris convenceu a população de que era um governante respeitável e isso permitiu que ele se tornasse mestre de toda ilha. Ele então empreendeu uma violenta perseguição aos seus opositores e reforçou sua guarda de confiança. Com o poder consolidado em suas mãos e inimigos eliminados, o Rei deu início a um regime corrupto marcado pelos excessos, pelo terror e pela extrema perversidade.

Ele jamais concluiu a construção do Templo de Zeus, provavelmente por acreditar que, se o terminasse, seria destituído de seu mandato. Ao invés disso, enviou escravos para trabalhar em minas, para morrer em jogos sangrentos ou simplesmente os executava. Phalaris parecia ter um fascínio todo especial para empregar métodos exóticos de execução e um interesse perturbador por tortura. Por exemplo, ele não se contentava em simplesmente mandar um homem para a câmara de tortura, mas se deliciava em assistir às sessões, geralmente acompanhado de convidados. Na maioria das vezes, ele era observador dos procedimentos, mas em alguns casos isso não bastava e ele pessoalmente auxiliava o torturador em seu ofício. Phalaris gostava especialmente de lâminas afiadas, chibatas com pontas de metal e, é claro, fogo. Acredita-se que uma das diversões oferecidas em seus banquetes envolvia a tortura de prisioneiros. 

Outro historiador, Píndaro, atesta que teria sido Phalaris um dos criadores do medonho método de execução conhecido como Touro de Bronze. Neste um indivíduo era colocado no interior de uma estátua de bronze no formato de um touro que por sua vez era posta sobre uma fogueira ardente. A vítima dentro da estátua era assada lentamente. 

[NOTA: Para quem acompanhou a nossa postagem à respeito do Deus Moloch, esse tipo de execução era usado principalmente contra crianças. Quem quiser ler à respeito pode encontrar o artigo no link a seguir: https://mundotentacular.blogspot.com/2022/10/deus-dos-sacrificios-o-aterrorizante.html]

Segundo alguns cronistas, Phalaris usava o Touro de Bronze também como objeto de intimidação contra seus inimigos. A estátua supostamente era mantida em sua Sala do Trono e quando uma pessoa era trazida diante do Rei, a simples visão dela era suficiente para fazer as pessoas cederem às suas vontades. Acredita-se que o Touro que pertenceu a Phalaris e que estava em Agrigentum foi posteriormente roubado pelos Cartagineses e usado em seus rituais. Ele teria sido devolvido após a destruição de Cartago em 146 aC, no final da Terceira Guerra Púnica.


Contudo Phalaris era ainda pior e descia mais baixo na escala de maldade... havia o rumor de que ele não era apenas um assassino sádico e um genocida em larga escala, mas também um canibal. O historiador Suda relatava que os suntuosos banquetes reais eram famosos por oferecer todo o tipo de iguaria incomum para os convidados, inclusive carne humana cozida, assada ou crua. O déspota teria um gosto especial pela carne de crianças. Suda menciona que Phalaris mordia a barriga de bebês trazidos para ele e que encontrava grande prazer em sorver o sangue dos recém nascidos, que segundo ele tinha um efeito afrodisíaco.

Phalaris em determinado momento acreditava que era um imortal, que estava destinado a conquistar o mundo inteiro e que seus feitos seriam lembrados para todo sempre. Ele mandou erguer estátuas em sua própria homenagem, cunhar moedas e escrever poesias sobre suas conquistas. 

Como geralmente acontece com tiranos que impõem um regime de excessos, o governo de Phalaris chegaria ao fim através da violência. O General Telemachus comandou uma revolta contra o déspota encabeçada por uma tropa mercenária e que contou com apoio popular. A cidadela de Acragas foi tomada de assalto, os aliados do Rei debandaram e ele acabou capturado. Coube à população decidir como Phalaris seria executado e, é claro, alguém lembrou do terrível Touro de Bronze. Phalaris foi arrastado aos berros para o interior da estátua, experimentado o mesmo sofrimento ao qual submeteu a inúmeras pessoas. Após sua execução, sua punição continuou: por ordem do novo Rei, as estátuas de Phalaris foram derrubadas, as moedas recunhadas e as poesias foram esquecidas. Tudo sobre ele foi erradicado, apagado e nublado. 

Ele deixou de ser importante e passou a ser... ninguém.


Assim como o fictício Breschau da Livonia, quantas pessoas hoje em dia lembram do Rei Phalaris e de seus atos monstruosos? E quantos mais como eles existiram e impuseram a barbárie como forma de domínio apenas para desaparecer no esquecimento? Um conforto diante de todos os horrores cometidos por esses "grandes homens" é saber como eles foram Pequenos e como representaram Pouco. 

Para quem acha que às vezes a devida punição não chega, talvez o esquecimento completo seja uma forma de punição...

No caso de Phalaris ele foi punido e esquecido, que fim mais apropriado para um monstro que almejava ser lembrado para sempre?

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

O Farol no Fim do Mundo - A Ilha mais isolada da Costa da França


Localizado na ponta ocidental da Bretanha, na França, encontramos um trecho de mar açoitado por  fortes ventanias conhecida como Estreito de Raz de Sein. Pontilhada por uma cadeia remota de ilhas rochosas estéreis e baixios implacavelmente golpeados por ondas maciças de até 20 metros, é um lugar complicado de visitar. 

Por muito tempo, o estreito representou uma ameaça para os navios que passavam por essas águas traiçoeiras e agitadas. Não foram poucas as embarcações avariadas ou mesmo naufragadas por conta das rochas ocultas. 

Empoleirado em uma das ilhas do estreito, pouco mais que um aglomerado rochoso projetando-se na espuma, há um farol chamado “Phare de Tévennec”, ou “Farol de Tévennec”. Bem no meio do mar feroz e cinzento, ele se mantém ali, abandonado e sozinho, quase como se flutuasse sobre as ondas cortantes. Parece algo saído de um filme de terror, o que é apropriado, já que esta pequena torre isolada tem uma história sombria e a fama de ser um dos lugares mais assombrados da França.

A ilha onde o farol foi erguido Chaussée de Sein, há muito tempo é considerada um grande perigo para a navegação. Para confuzir os navios atraves desse aglomerado de rochas, uma série de faróis foram construídos a partir do século XVIII, sendo o Farol de Tévennec um deles. Estas águas escuras são especialmente ruins para os navios, com as correntes empurrando embarcações para sua boca escancarada, como se a ilha fosse uma fera faminta. De fato, as rochas de Tévennec são tão cruéis e mortais que os marinheiros diziam que a ilha era o covil de Ankou, o Companheiro da Morte, que devorava as almas dos vivos. Segundo o mito bretão era possível ouvir os lamentos horríveis das vítimas de Ankou presas em sua caverna sob a ilha. A região era tão temida que os marinheiros franceses apelidaram o local de Estreito do Inferno tamanho o número de tragédias e mortes registradas ali.
 

Um grande número de navios encontrou seu destino lá,, principalmente durante as Guerras Napoleônicas. O naufrágio mais grave ocorreu em 1796 quando o navio francês Séduisant foi arremessado contra as rochas em Tévennec. A embarcação transportava mais de cem feridos para um hospital e os homens, muitos deles moribundos, não tiveram a menor chance de sobreviver. Corpos e destroços foram recolhidos por meses das águas geladas.

Depois dessa tragédia, erguer o Farol se tornou uma necessidade. Contudo isso não significava que a tarefa seria simples. Operários foram trazidos em regime de revezamento para o trabalho marcado por pelo menos meia dúzia de mortes e estranhos acidentes. O Farol finalmente ficou pronto em 1832, após cinco anos de obras interrompidas pelas fortes tempestades que assolavam a ilha. Projetado para funcionar com uma equipe mínima, o Farol foi posteriormente adaptado para ter apenas um único guardião que cumpriria contrato de um ano.

Não era um trabalho para qualquer um: ficar completamente sozinho naquele pedaço de rocha cercado pelo mar gelado podia enlouquecer o mais razoável dos homens. O operador ficava ali sozinho com os próprios pensamentos e mais ninguém. Um ano poderia parecer uma eternidade em meio à solidão sufocante. O primeiro faroleiro de Tévennec não completou seu contrato e deu início a sinistra reputação do farol no fim do mundo.

O primeiro sujeito incumbido do serviço foi um marinheiro veterano de 45 anos chamado Henri Guezennec. Ele tinha experiência prévia como faroleiro em outras ilhas, mas logo ficou claro que encontraria condições inesperadas em Tevénnec. Estranhos fenômenos começaram a ocorrer quase que imediatamente. Em seus diários bastante detalhados Guezennec alegava ver figuras sombrias espreitando nas rochas e ouvir vozes fantasmagóricas que lhe diziam incessantemente para sair do farol. Além disso, ele começou a sofrer com insônia  o que atrapalhava seu trabalho. A história diz que em poucos meses Guezennec ficou completamente louco e teve que ser dispensado do dever. Ele foi resgatado por um navio, mas a essa altura estava  incoerente contando histórias distorcidas sobre fantasmas, horrores marinhos e claro, Ankou.


Um substituto chamado Maxim Minou foi enviado para seu lugar, e ele também aparentemente teve experiências estranhas lá. Minou enlouqueceu em pouco mais de seis semanas e o farol parou de ser aceso. Vieram resgatá-lo, e tiveram de levá-lo dali para um manicômio.

Dois faroleiros perdendo a cabeça dessa maneira e em tão pouco tempo foi definitivamente algo inesperado. O governo francês decidiu enviar para Tévennec dois operadores ao invés de apenas um, considerando que a solidão era a causa para o fracasso da missão. Contudo, isso parece não ter resolvido o problema. 

Durante os primeiros três meses operando na ilha um dos faroleiros designados para o serviço sofreu uma queda e morreu. Um substituto foi enviado, mas sequer chegou ao farol, vindo a falecer enquanto rumava para lá. Um terceiro acabou ficando apenas dois meses e foi encontrado morto em sua cama. Uma nova equipe foi enviada, dessa vez, formada por pai e filho numa tentativa de facilitar a relação entre os guardiões. De nada adiantou, o mais velho cortou a própria garganta com uma navalha depois de enlouquecer completamente. 

E isso tudo ocorreu em um período de apenas DOIS ANOS! 

Depois dessa sucessão de mortes, o farol passou a ser considerado amaldiçoado, assombrado, ou ambas as coisas. Um padre foi trazido até o lugar para exorcizá-lo e uma cruz de ferro foi fincada nas rochas como uma maneira de manter o mal afastado. Mas de nada adiantou...

O governo ajustou as regras para que os faroleiros casados ​​pudessem trazer suas esposas e filhos para a ilha. Isso parece ter funcionado por um tempo, com os primeiros casais não tendo problemas particulares além do isolamento, mas o marido de uma família que se mudou morreu quando acidentalmente caiu sobre uma faca. Outra tragédia ocorreu em 1907 quando uma tempestade derrubou um muro e matou uma mulher enquanto ela dormia. Tudo isso contribui para aumentar a infame lenda sobre o Farol de Tévennec e sua maldição.


Em 1910, o farol tornou-se automatizado, permanecendo assim até hoje. Por décadas o farol de Tévennec ficou desabitado, sendo completamente evitado por moradores supersticiosos. Ocasionalmente havia relatos de luzes misteriosas e estranhas formas que eram vistas pelos navios passando ao longe. 

Parecia que as pessoas estavam felizes em deixar aquela ilha sombria e as forças insidiosas que a habitavam, tornando-a uma lembrança do passado. Uma vez que rotas alternativas foram adotadas, a Ilha se tornou cada vez menos importante e a operação do Farol demandava menor interesse. Ele acabou sendo desativado em 1998 e a luz substituída por boias de sinalização. Sem manutenção, o prédio e farol caíram rapidamente em abandono.

Contudo, em 2015, Marc Pointud, presidente da National Society for Heritage, Lighthouses and Beacons (Sociedade de Herança Nacional de Faróis), iniciou uma campanha visando restaurar o Farol de Tévennec. Pointud visitou o local abandonado há anos e decidiu se estabelecer lá por dois meses como parte de uma campanha de marketing para defender o farol. 

Ele obviamente conhecia as muitas histórias de assombrações e maldições, mas não se importou com as lendas. Pointud desembarcou na ilha de helicóptero e lá viveu em acomodações escassas e básicas. Durante sua estadia, quando perguntado se havia experimentado algo paranormal, relatou o seguinte:

"Não... Mas devemos colocar essas histórias de maldições no contexto do século XIX. Lendas, superstição e religião se misturavam e esse é um ambiente austero, para dizer o mínimo. Os guardiões estavam realmente separados do resto do mundo. Eles sofriam com isolamento e isso pode causar reações psicológicas graves.  Este não é o meu caso, no século XXI eu consigo me comunicar via satélite. Não me sinto sozinho, mas consigo entender o que significava para esses homens viver aqui sem o menor contato exterior."


Pointud completou sua estadia sem incidentes e gostou tanto que planeja transformar o velho farol em atração turística abrindo a casa para pessoas interessadas em conhecer um sítio histórico e quem sabe, até passar uma noite num lugar supostamente assombrado.

E então, qual o veredito sobre esse Farol? Seria ele assombrado ou Maldito? Ou é apenas um lugar profundamente misterioso, esquecido e isolado que afeta a imaginação de pessoas deixadas sozinhas? 

Talvez a única maneira de saber seja visitar o local e passar algum tempo sozinho neste fim de mundo, tendo apenas a companhia de seus pensamentos... e quem sabe dos fantasmas.