quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Artista do Macabro - A incômoda biografia de Richard Pickman

 

Richard Upton Pickman é sem dúvida um dos mais memoráveis personagens criados por H.P. Lovecraft. Protagonista do fantástico conto "O Modelo de Pickman" (Pickman's Model), Richard era um artista, um pintor cujo apuro artístico o conduziu através de uma busca incessante por inspiração. Sua musa inspiradora, no entanto, era a morbidez, que finalmente despertou nele terríveis necessidades e deu início a horrenda transformação de Homem em Carniçal.

O texto a seguir simula uma matéria de revista de arte em que a carreira de Pickman é examinada.

Artista do Macabro

Um ensaio sobre o polêmico Richard Pickman

No panorama da arte atual, a polêmica ganhou destaque graças a expoentes como Francis Bacon e Anuard Janeau. Mas um dos mais controversos artistas americanos surgiu bem antes.

Richard Upton Pickman nasceu em Providence, no coração da Nova Inglaterra no ano de 1884. Membro de uma família aristocrática, o dinheiro jamais foi problema para os Pickman naturais de Rhode Island. A fortuna fluiu a partir de negócios bem sucedidos realizados ao longo do século XIX quando um antepassado direto assinou contratos vantajosos com a União durante a Guerra Civil. 

Livre de dificuldades financeiras, o jovem Richard pode se dedicar inteiramente a carreira artística, ainda que tenha estudado o currículo básico de arquitetura e engenharia. Ainda um neófito no mundo das artes, ele já demonstrava um invejável domínio de técnica e talento inato para retratos e paisagens. Mesmo em seus primeiros trabalhos ficava evidente a habilidade do jovem artista em compor trabalhos de natureza lúgubre com cores fortes e traços marcantes. A medida que os estudos avançavam, o rapaz  ganhou certa notoriedade pelas telas retratando paisagens ermas e panoramas igualmente sinistros. 


Os poucos parentes e amigos que tiveram contato com Pickman o descreviam como um jovem excêntrico, fascinado pela obscura história colonial, em especial, da infame Caça às Bruxas que varreu a Nova Inglaterra. Pickman contava que uma antepassada foi uma das acusadas nos julgamentos de bruxaria. Tal passado não lhe causava constrangimento, pelo contrário, ele manifestava enorme orgulho, visto que essa antepassada - uma bisavó do ramo materno, diferente de muitas mulheres injustamente acusadas, era de fato, uma feiticeira. Pickman chegou a estudar a árvore genealógica desse ramo familiar afirmando que era um antepassado direto da mulher.  

Aqueles que o conheceram na Universidade de Belas Artes afirmam que seus hábitos eram incomuns, para dizer o mínimo. Suas caminhadas por florestas escuras, em busca de inspiração eram bem famosas, bem como sua exploração a locais insalubres como cemitérios antigos e velhas ancestrais, algumas em estado de completo abandono. Passava horas no interior desses recantos sombrios, observando por horas à fio algum detalhe que apenas sua percepção pelo macabro podia detectar: uma sombra passageira, um vislumbre sobre uma lápide ou um diminuto líquen em crescimento na pedra.

Os poucos a quem ele fez confidencias sobre esses "passeios" se recordam de Pickman narrando com ares nostálgicos tais explorações. A noite era seu ambiente natural e seus olhos se familiarizavam com os ambientes mais ermos, mesmo quando imersos na mais completa escuridão, ou assim diziam. Teriam sido essas experiências que moldaram em Pickman sua profunda sensibilidade em retratar o incomum e um olho clínico para tudo aquilo que é bizarro, abjeto e perturbador para a maioria.

Seja qual for a origem de seu talento, Pickman inegavelmente demonstrava um virtuosismo notável. Em suas jornadas ele sempre carregava consigo um caderno no qual desenhava aquilo que via e que despertava seu interesse. As poucas páginas que restam desse período evidenciam ruínas de antigas casas coloniais, as urzes selvagens crescendo em um jardim mal cuidado ou as lápides rachadas de um velho cemitério.


Quando chegou à maioridade, Pickman decidiu deixar Providence com intuito de estudar na Universidade de Minneiska no Wisconsin. Nessa época, Minneiska já contava com uma comunidade de artistas boêmios, fascinados pelo romantismo e pela decadência. Os estilos realistas modernos dividiam opiniões entre os críticos, mas Pickman não tinha dúvida alguma. O contato com poetas aficionados pela poesia melancólica de Lord Byron alçou seus instintos mórbidos a um novo patamar, isso e possivelmente as noites regadas a absinto. Contudo o realismo cru das telas de Pickman fizeram com que ele fosse evitado pelos colegas de curso.

Tornou-se uma espécie de eremita entre os seus pares. Criticado pelo estilo excessivo e pelas telas polêmicas que chocaram alguns professores e vários colegas. Ainda assim era inegável seu brilhantismo. 

Ao completar os estudos, Pickman se estabeleceu na cidade de Boston. Imediatamente ele começou a produzir seus trabalhos na pequena casa que alugava em North End. Lá ele possuía um loft no qual passava a maior parte de seu tempo, exceto quando saia à noite para vagar como uma alma perdida em busca de inspiração. Pickman costumava carregar consigo uma câmera com a qual registrava cenas, objetos e pessoas que lhe serviam de modelos. Ele registrou várias figuras peculiares que encontrou nas ruas de Boston, os destituídos, os pobres e os excluídos. Usava esses modelos como referência para seus trabalhos, conferido às figuras reais uma aura fantástica. Mendigos se tornavam monstros, prostitutas bruxas e marginais criaturas desesperadas. 

É dessa época a série de telas à óleo conhecidas como "Sacrifício" em que Pickman apresenta sua visão da religiosidade. Boa parte dessas telas decorrem de suas explorações pelas missões religiosas na qual o artista encontrava as figuras que desejava retratar sob sua ótica particular. Várias dessas obras foram criticadas e encontraram enorme resistência por parte do público. Em uma mostra realizada na famosa Galeria Tuttle, um dos quadros de Pickman chegou a ser vandalizado por um visitante escandalizado pela sua representação da natividade. Pickman não tinha desdém particular pela religião, mas via a si mesmo como um materialista disposto a romper com as formalidades.

A arte de Pickman chocava, mas atraia a atenção de um público interessado em suas transgressões. Sua série seguinte com clara inspiração nas técnicas de Henry Fuseli e Gustav Doré foram mais bem sucedidas, contudo não garantiram ao jovem artista fama ou retorno financeiro.


Embora o público tenha recebido friamente sua coleção seguinte, chamada "Olhares Fúgidos",  comenta-se que algumas de suas telas foram adquiridas por colecionadores de arte. Nessa época, os negócios da Família, sempre afluentes começaram a dar sinais de desgaste. Pickman se mudou para um atelier mais modesto e passou a complementar seus rendimentos dando aulas para pintores aspirantes. 

Existem rumores que certa vez, ele foi contratado para retratar uma senhora da alta sociedade. O resultado, no entanto, insultou a modelo de tal forma que sua contratante enterrou a pouca reputação que ele havia cultivado ao longo de anos. Por um tempo Pickman fez parte do Clube de Arte de Boston, mas eventualmente foi forçado a se desligar da associação por pressão de alguns de seus colegas que se diziam chocados pelas telas obscenas que ele produzia. A coleção "natureza da Campa" trazia uma série de telas mostrando cadáveres nus e em estado de dissecação, dizem que estas obras foram registradas após visitas dele ao Instituto Médico Legal de Boston.

Seria a coleção seguinte que no entanto causaria a maior polêmica e lançaria o nome de Richard Pickman como um dos artistas mais provocativos de sua geração. Pickman com cerca de 35 anos atingiu o auge de sua maturidade criativa assinando uma longa sequência chamada "Vermes da Terra".

Uma tela em especial foi adquirida pelo notório ocultista de Arkham, Cabot Jenkins pouco antes deste falecer sob circunstâncias misetriosas. Houve rumores que o igualmente polêmico místico britânico, Alesteir Crowley considerou Pickman para retratá-lo. Segundo alguns, Crowley confidenciou que apenas o pintor seria capaz de captar a sua verdadeira essência. Verdade ou não, é pouco provável que Pickman e Crowley tenham se encontrado pessoalmente.


A fama de Pickman entre estudiosos das "ciências ocultas" é confirmada por cartas escritas por ele próprio: "Sinto uma grande proximidade com esse círculo de pessoas ditas exóticas. Talvez pelo fato delas poderem compreender o que quero demonstrar em minhas obras." escreveu certa vez ao seu marchand. Algumas pessoas que visitaram seu ateliê comentam que ele mantinha uma estranha parafernália ligada ao ocultismo e que conversava sobre o tema como autoridade.  

Em 1925, Pickman vendeu o quadro "Salomé" ao poeta Edward Pickman Derby (um parente distante) que por sua vez o ofereceu a noiva Asenath Waite, pouco antes deles casarem. Waite foi reconhecidamente uma estudiosa de ocultismo e uma mulher "a frente de sua época". O quadro segundo consta ganhou um lugar de honra na propriedade do casal em Crownshield.

A produção artística de Pickman sempre foi questionada. Para alguns ele raramente terminava uma obra, para outros as paredes de seu ateliê na Rua Grimanci estava sempre cheio de telas. Alguns afirmam que o pintor manteve por algum tempo outro loft no Centro de Boston e que lá passava a maior parte de seu tempo. Esses mesmos colegas insinuaram que várias telas de Pickman teriam sido guardadas nesse estúdio secreto e que ainda aguardam serem descobertas.

No ano de 1926, Richard Upton Pickman desapareceu de sua casa em Boston, junto com várias de suas telas. Alguns acreditam que ele tenha cometido suicídio, pois sua carreira estava estagnada há tempos. Outros acreditam que o pintor tivesse simplesmente desistido da carreira artística indo buscar em outra atividade a aquiescência do público.

Uma explicação mais bizarra foi concedida pela medium Anita Gershwin em 1932 que afirmou enigmaticamente que "Pickman havia atingido outro estado de consciência, algo que ele apenas conseguia arranhar em suas provocantes obras".


A verdade talvez nunca se venha a saber, pois nunca mais se ouviu falar de seu paradeiro.

Nas décadas que se seguiram ao misterioso sumiço do artista, algumas telas assinadas continuaram aparecendo. Todas elas com a marca registrada do peculiar pintor: a aura de morbidez, corrupção e morbidez. Se as telas foram pintadas por um falsário ou não, é matéria de discussão, mas constitui um fato que elas continuaram aparecendo. Especialistas divergem apontando para um estilo similar, mas concordam com a existência de elementos novos nas técnicas.

Pickman representa tão somente uma nota de rodapé na história da pintura norte-americana, ao menos até ser redescoberto nos anos 60 por expoentes do movimento da contracultura.

Em 1967, o famoso agitador cultural, Noah Crysholm organizou uma mostra com oito quadros do artista que integravam sua coleção particular. A mostra fez enorme sucesso tendo sido exposta em Nova York e por algum tempo em San Francisco. O estilo visceral de Pickman talvez fosse demais para a sua época, mas nos turbulentos anos 60, regados a rebeldia e extravagância eles encontraram pleno reconhecimento.

Em 1969, um quadro de Pickman, chamado de "A Ceia dos Malditos" foi adquirido pelo demonologista e fundador da Igreja de Satã, Anton LaVey. Em 1973 de suas obras exposta no Museu de Arte Moderna de Boston foi danificada por um ex-seminarista que atirou ácido na tela. O homem, considerado mentalmente perturbado alegava que a obra era uma afronta aos olhos de Deus. Apesar da ação drástica, a tela continuou em exposição por mais alguns meses até simplesmente desaparecer.


Em 1981, Pickman ganhou evidência uma vez mais através das cartas enviadas pelo assassino em série conhecido como "O Açougueiro de French Hill". O matador, que espalhou um rastro de morte na região de Arkham, deixando oito vítimas afirmou em uma das cartas que enviou à polícia, que matava para homenagear o gênio de Richard Pickman. A carta provocou mais uma febre de Pickman na Nova Inglaterra e motivou uma polêmica exposição chamada de inoportuna pelas famílias das vítimas. A identidade do assassino permanece até hoje, desconhecida.

Mais recentemente, Pickman tornou-se um nome atraente para colecionadores e marchands. Ele parece ter obtido especial apreciação no mercado europeu que vem consumindo avidamente suas telas pagando verdadeiras fortunas por obras de um artista relativamente obscuro.

Com tantas reviravoltas em sua carreira, Pickman parece ainda despertar controvérsia e interesse na vanguarda da arte. É bem possível que sua obra seja resgatada uma vez mais, e retorne faminta, para chocar e maravilhar as novas gerações.

Um comentário:

  1. Que vexame... eu estava descendo as postagens e não vi que tinha uma versão anterior em Português.... MAS, ainda assim é otimo!

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