quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Arte do Mythos - Um vislumbre traumático para Chamado de Cthulhu


"Atrás de tudo que é belo, existe algo escuro e assustador"

A arte sempre foi uma janela para apreciar o melhor da raça humana. Reside em nós a capacidade de criar e construir coisas de relevância e importância transcendental. Através das mãos de artistas, sejam eles escultores, pintores ou artesãos, autores, poetas ou dramaturgos, o mundo é moldado em formas cujo significado único reverbera em nossa alma.

Tais obras são um reflexo de nossa imaginação, criatividade e talento. Elas nos fazem pensar sobre a natureza, sobre emoções, o espiritual e o metafísico. A arte é o que nos diferencia de todos os outros seres, pois nenhum deles tem a capacidade de construir tal coisa intencionalmente.

Mas o que acontece quando a arte é usada como um janela para a Influência do Mythos? O que acontece se a arte for usada como um portal que conjura loucura, decadência e corrupção em seu estado mais puro? E se houvesse um artista capaz de capturar em seu ofício toda a essência do mal e destilar essa essência na forma de uma Obra de Arte?

Há uma frase atribuída a Francis Bacon que diz: "O trabalho do artista não envolve mostrar o belo, mas realçar o mistério", o que faz sentido considerando o teor polêmico das obras de Bacon. Da mesma forma Georgina Keefe diz que "é preciso coragem para criar seu próprio mundo e mostrá-lo para os outros". Nem sempre o público será capaz de compreender a proposta da arte e o que o artista pretendia dizer com sua obra.

O genial H.P. Lovecraft explorou essa questão em um de seus contos mais importantes, "O Modelo de Pickman". Nele, o autor arranha a superfície desses questionamentos, criando uma história de maldade que atravessa o tempo. Assustadora, desagradável, perturbadora, mas acima de tudo, fascinante, a narrativa de Lovecraft nos apresenta um pintor que toca a forma mais abjeta de corrupção e nela busca a matéria prima para sua arte.


Os quadros macabros de Richard Pickman e as figuras retratadas por ele na história causam asco naqueles que as admiram, ainda que sejam admiráveis pela condução e brilhantismo. As telas, resultado de um realismo fantástico, não são fruto da imaginação hiper-estimulada e talento para o inusitado do artista, mas da observação de criaturas vivas com as quais ele estabeleceu conluio - carniçais. Pickman encontrou essa raça abominável de canibais subterrâneos em suas explorações de cemitérios e criptas e com eles desenvolveu um tipo de companheirismo fraternal. Os monstros se convertem em seus modelos vivos. Pickman segue esses seres até seu covil, conhece seus hábitos nefastos e explora suas tradições. O artista extrai a inspiração para suas telas macabras. Mais tarde, no curso da história, sabemos que Pickman se torna, ele mesmo, uma dessas criaturas medonhas fazendo a transição final ao romper um dos maiores tabus da humanidade, o de consumir carne humana.

A história revisitada na forma do quinto episódio da antologia "O Gabinete de Curiosidades de Guilhermo Del Toro" possui algumas alterações significativas na trama, no desenrolar e na conclusão da história. Contudo um elemento permanece igual em ambas as versões: a natureza maligna dos quadros e como eles afetam a percepção humana. Se no conto temos uma tela medonha acompanhada da fotografia do modelo, no episódio temos uma fartura de quadros minuciosamente detalhados que abrem as portas da percepção para horrores desconcertantes.

Uma das grandes sacadas do roteiro é fazer com que as obras pareçam estar vivas!

Elas não se mostram como imagens estáticas, mas cenas do mais puro horror que afetam a sanidade do observador. Ao entrar em contato com essas telas, o indivíduo passa a sentir a presença desse mal e não consegue se afastar dele. É como se fosse uma doença contraída pela simples observação. O protagonista da história passa a sofrer com alucinações, vertigens, sensações e sonhos cada vez mais vívidos. No fim, ele se vê tomado de assalto por um pesadelo que não consegue afastar e que decreta a sua ruína.


Estava pensando em como usar essa noção em cenários lovecraftianos (ou jogos com inspiração em Lovecraft) fazendo com que objetos de arte (em especial pinturas, mas não apenas elas) pudessem ser usadas para afetar os personagens. Elaborei algumas regras simples e reuni ideias sobre como a arte pode realçar a loucura nos personagens.

A ideia é que certos artistas, sobretudo aqueles que espelham sua arte no Mythos são capazes de criar peças tão aterrorizantes que provocam um colapso mental daqueles que as veem. Me parece claro assumir três coisas que qualificam um artista a criar tais obras:

a) Que apenas artistas incrivelmente habilidosos tem o que é necessário para realizar tamanha façanha. Em termos de jogo, ninguém com menos de 85% em sua arte, seria capaz de criar obras dessa lavra. 

b) Que o artista em si possua algum vínculo ou elo com uma raça de criaturas do Mythos ou com uma divindade capaz de abrir seus olhos para tais verdades apocalípticas. Talvez o indivíduo tenha vivido entre os membros de uma raça profana como os Abissais, o Povo Serpente ou mesmo os Carniçais que apresentaram seus costumes e tradições a ele. Um artista que participa ativamente de um Culto também pode estar credenciado. Um seguidor de Shub Niggurath que se entrega ardorosamente aos ritos de fecundidade dançando e cantando, ou um devoto do Rei Amarelo que serve a causa de Carcosa escrevendo uma peça poderiam estar nessa categoria. Uma forma de determinar se o personagem estabeleceu essa conexão com o Mythos envolve ter perdido pelo menos metade da sua sanidade inicial.   

c) Finalmente, seria razoável supor que o artista precisaria ter obtido algum grau de conhecimento do Mythos. Talvez ele tenha lido um livro com conhecimento profano, compartilhado de emanações psíquicas de um Deus adormecido ou ainda vivido entre uma raça que lhe apresentou seus costumes blasfemos. Há uma vasto leque de possibilidades aqui, mas o conhecimento não deveria ser menor do que 15% de Mythos de Cthulhu.


Com esses três critérios satisfeitos podemos imaginar um artista capaz de criar obras verdadeiramente aterrorizantes. Mas como seriam essas obras e como elas se diferenciam de qualquer outra obra meramente de natureza sinistra.

Em primeiro lugar, creio que seria a aura de estranheza que mais chamaria a atenção. Obras versando sobre o Mythos transmitem uma sensação inquietante que as pessoas são capazes de detectar quase que de imediato. Eles simplesmente não parecem algo convencional, no sentido de que o mero exame desencadeia uma reação que varia de pessoa para pessoa: surpresa, estupefação, confusão, náusea ou mesmo inconsciência são consequências possíveis quando alguém se depara com uma obra dessa natureza pela primeira vez. 

Em alguns casos, pode haver um estranho fascínio, sobretudo quando a sanidade do indivíduo já está comprometida, ainda mais se ele tiver sido corrompido de alguma forma - um candidato a se tornar Carniçal, sem dúvida terá curiosidade sobre um item dessas criaturas que ele venha a conhecer, bem como um híbrido Abissal sentirá uma estranha familiaridade com uma joia ou ornamento dessa cultura submarina.

Entretanto, para a maioria das pessoas, uma peça de arte onde o Mythos serviu de inspiração oferece um vislumbre de uma realidade distinta. É como se o item em questão fosse uma chave para destrancar uma porta secreta em sua mente. E uma vez aberta essa porta um universo medonho escorre através dela. 

A psique é afetada, visto que a arte não foi feita para ela. A arte influenciada pelo Mythos não é apenas esquisita, ela é perigosa ao ponto de afetar as pessoas mentalmente e em alguns casos fisicamente, de fazer com que elas sejam tocadas por uma corrupção cósmica da qual não conseguem escapar.


A seguir, uma tabela de possíveis reações de personagens expostos a Arte do Mythos. 

Em termos de jogo um personagem exposto a uma obra dessa natureza estará sujeito a um Teste de Sanidade. Se este personagem falhar no Teste, além dos efeitos normais de perda de sanidade, ele estará sujeito também a um dos efeitos das tabelas à seguir. Como sempre, o Guardião pode adaptar a situação da maneira que melhor encaixar em seu cenário ou escolher a reação mais adequada.

As tabelas dependem de quantos pontos o personagem perdeu ao se deparar com a Arte do Mythos.

Tabela A - Se o personagem perder entre 1 e 4 pontos de sanidade:

Role 1d10

1, 2 ou 3 - Surpresa
4 ou 5 - Perplexo
6 - Estupefato 
7 - Assombrado
8 - Acometido por Vertigem
9 - Nauseado
10 - Fascinado

Tabela B - Se o personagem perder 5 pontos ou mais de Sanidade:

Role 1d10

1 - Surpreso
2 - Perplexo
3 - Estupefato
4 - Assombrado
5 - Acometido por Vertigem
6 - Nauseado
7 - Fascinado
8 - Abalado
9 - Transtornado
10 - Obsessivo


O que significa cada graduação:

Surpreso - O personagem simplesmente é pego de surpresa pela natureza incomum do Objeto de Surpresa e reage como tal. Ele pode não acreditar no que está vendo ou tentar racionalizar do que se trata, mas de uma forma ou de outra, reage com uma espécie de sobressalto difícil de disfarçar. Ele pode tentar fazer de conta que não ficou impressionado, mas é difícil esconder o quanto o Objeto Surpreendente o impressionou.

Perplexo - O personagem fica pasmo sem conseguir compreender as nuances e implicações da obra ou o objetivo do artista. Como resultado direto dessa confusão, sua mente se desliga e ele fica sem palavras. Por uma rodada ele não consegue reagir diante do que está testemunhando e quando o transe for rompido se sentirá incomodado pelo objeto de sua perplexidade. 

Estupefato - Mais severo do que a mera perplexidade que é rompida naturalmente a estupefação trava as ações do personagem e não permite que ele se manifeste até romper o transe em que se encontra. Diante do que testemunhou tudo parece parar e o próprio tempo parece se dilatar indefinidamente. O personagem continua consciente mas respira com dificuldade, fica apoplético e gagueja palavras sem sentido. O personagem fica sem ação por 1d3 +1 rodadas, podendo contudo ser tirado do estado de estupefação pela ação de um companheiro que o agite, esbofeteie ou jogue água em sua face. 

Assombrado - O Assombro é um grau mais elevado de paralisia imposta pelo choque. Um personagem acometido de assombro tem suas funções limitadas. Ele literalmente se desliga da realidade, sua mente fica nublada e incapaz de correlacionar as ideias e sensações experimentadas. Em termos de jogo, o Assombro se mantém por 1d4 +2 rodadas nas quais o personagem se desconecta. Ele poderá ser tirado desse estado de assombro pela ação de um companheiro (esbofetear, gritar ou sacudir). No entanto, os efeitos poderão retornar (no grau perplexidade) se ele for exposto novamente ao que causou o assombro. Meramente falar sobre o assunto causará uma sensação de desconforto e conforme o discernimento do Guardião, os efeitos de perplexidade. Essa condição se mantém por um número de horas igual ao número de pontos que o personagem perdeu no teste de sanidade.  

Acometido por Vertigem - Uma reação física diante daquilo que o personagem testemunhou. A Vertigem causa um efeito danoso na percepção do indivíduo fazendo com que seu equilíbrio seja gravemente afetado. Durante 1d3 rodadas, o personagem é acometido de uma forte vertigem: "o mundo inteiro parece girar, você não tem noção da profundidade e tudo parece fora de esquadro. Você precisa tentar se acalmar e respirar". Na iminência da vertigem o indivíduo não consegue manter o equilíbrio e quaisquer ações que o Guardião julgue depender deste são afetadas. Deste modo a critério do narrador suas ações estarão sujeitas a um Dado de Penalidade. 


Nauseado - Outra reação física que atinge que desencadeia efeitos dramáticos. O personagem sente uma Náusea profunda e é obrigado a fazer um teste de Constituição. Uma falha faz com que ele experimente uma reação nervosa cujo efeito principal é vomitar. Uma vez acometido pela náusea, esta se mantém por 1d4 rodadas ou até ele se ver longe daquilo que causou o efeito. Um personagem afastado se recupera em uma rodada, mas até lá, à critério do Guardião suas ações ficam sujeitas a um Dado de Penalidade.

Fascinado - Diferente das reações de asco, o fascínio faz com que o indivíduo se sinta de alguma forma compelido a compreender, entender e decifrar os segredos daquilo que acabou de testemunhar. O personagem fala insistentemente sobre o assunto, deseja conhecer o autor, saber o que o inspirou e entender cada nuance da obra em questão. Esse fascínio não é natural. Ele se mantém por um número de horas igual a 2 mais os pontos de Sanidade perdidos. A critério do Guardião, ações que necessitem de concentração e foco podem ser afetadas e o personagem pode ser obrigado a realizar estes testes com um Dado de Penalidade. Ações que envolvem o objeto de seu fascínio obviamente não são afetados, de fato podem receber um Dado de Bonificação.   

Abalado - O Abalo é um choque profundo que faz com que o personagem perca a consciência por alguns instantes. O efeito se mantém por 1d4 +2 rodadas, período no qual só pode ser trazido de volta à consciência se induzido por uma ação o Guardião julgar válida (por exemplo, o uso de sais). Uma vez se mantendo longe do objeto do abalo, ele irá se recuperar. No entanto, os efeitos poderão retornar (no grau Assombrado) se ele for exposto novamente ao que causou o Abalo. Meramente falar sobre o assunto causará uma sensação de desconforto e conforme o discernimento do Guardião, o efeito de Assombrado. Essa condição se mantém por um número de dias igual ao número de pontos que o personagem perdeu no teste de sanidade.  

Transtornado -  Essa é uma reação mais severa e potencialmente perigosa. O personagem se sente profundamente ofendido pelo Objeto do Transtorno e sente que precisa danificar, quebrar, ferir ou destruir o item em questão. Se for uma pessoa, ele pode se sentir compelido (à critério do Guardião) a atacar fisicamente o indivíduo. O Transtorno dura 1d3 +1 rodadas, período no qual a pessoa perde a noção do que está à sua volta e se torna agressiva. Ele sente uma necessidade urgente de dar vazão ao seu descontentamento gritando, xingando, chorando ou golpeando.   

Obsessivo - A modalidade mais potente de Fascínio, a Obsessão tem uma duração mais longa. O indivíduo se sente morbidamente atraído pelo Objeto de Obsessão. Ele sente que precisa de alguma forma compreender, entender e se conectar ao item em questão. Se possível precisa manipulá-lo e tê-lo como seu, precisa vê-lo novamente, ouvi-lo ou sentir o mesmo que da primeira vez. Se for uma pessoa, ele precisa estar próximo desta enquanto os efeitos estiverem ativos. A Obsessão não é natural e um psiquiatra pode determinar tal coisa. Ela se mantém por um número de dias igual a 2 mais os pontos de Sanidade perdidos. A critério do Guardião, ações que necessitem de concentração e foco podem ser afetadas e o personagem pode ser obrigado a realizar estes testes com um Dado de Penalidade. Ações que envolvem o objeto de sua Obsessão obviamente não são afetados, de fato, podem receber um Dado de Bonificação.   

Perda de Crédito - Atos de descontrole emocional nem sempre são compreendidos e podem ser extremamente danosos ao Crédito de um personagem. Manifestar uma reação exacerbada pode ocasionar, à critério do Guardião, uma perda de 1/1d6 pontos de Crédito se a notícia chegar ao grande público.

Um comentário:

  1. Que ótimo! Estava realmente querendo introduzir efeitos de obras de arte sobre os jogadores na minha campanha e isso caiu como uma luva! Agradecido pelo ótimo post!

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