segunda-feira, 7 de novembro de 2022

O Gabinete de Curiosidades de Guilhermo del Toro - Resenha da Antologia de Horror do Netflix


Não há nada de novo nas antologias de terror que se tornam séries de televisão, elas são populares desde os anos 50, com "Além da Imaginação" e "Além dos Limites", passando por clássicos como "Amazing Stories" "Tales from the Crypt" e títulos mais recentes como "Channel Zero" e "Mestres do Horror". 

As antologias estão fazendo um retorno de sucesso através de séries de sucesso mais recentes como "American Horror Stories", "Love, Death + Robots", "Creepshow" e muitas outras que estão no ar. O melhor das antologias é sua capacidade de oferecer um amplo espectro de talentos em histórias sem conexão. Há uma possibilidade de se reinventar a cada episódio e de oferecer algo novo e fresco aos mais variados tipos de público.

Entra em cena o diretor mexicano Guillermo Del Toro, um amante apaixonado pelo cinema e pelo Gênero do Terror. Ele emprestou suas habilidades a muitos grandes diretores e projetos ao longo de sua bem sucedida carreira. A grande quantidade de filmes que incluem seu nome nos "agradecimentos especiais" é prova disso, assim como os relatos de colegas diretores como James Cameron e Ana Lily Amirpour à respeito de sua bondade e disposição em ajudar. Pergunte a quem quiser, Del Toro é um cara legal!

Seu interesse em expandir os horizontes do Horror, seja no papel de diretor ou de produtor, é genuíno. Pensando nisso, o projeto para uma série antológica sempre esteve entre os seus planos: uma produção que reunisse episódios escritos e dirigidos por jovens talentos e nomes promissores. Ele trabalhou essa ideia por anos, amadurecendo a proposta até obter sinal verde. 

O resultado é "Guilhermo Del Toro Cabinet of Curiosities", uma antologia composta de oito episódios que está à disposição na plataforma do Netflix. A série é vagamente baseada na premissa de um Gabinete de Curiosidade, que historicamente eram salas onde se guardavam coleções de objetos bizarros, exóticos, perturbadores ou raros. Esses gabinetes eram uma maneira de preservar os enigmas do mundo numa época em que a ciência era incapaz de compreender tudo aquilo que nos cercava. A premissa encaixa muito bem na proposta da série, já que cada episódio, assim como os itens de uma coleção de Curiosidades, é único e extraordinário.     


Del Toro em pessoa surge como o apresentador das histórias, andando pelo seu gabinete barroco falando algumas breves palavras que nos preparam para a narrativa à seguir. Esse tipo de introdução se tornou popular em séries como Além da Imaginação, mas é em Galeria do Terror (série dos anos 1970) que reside a melhor comparação. Como o Curador de um Museu Fantástico, Del Toro fornece algumas pistas sobre o curta metragem à ser apresentado e seu Diretor. 

Sua presença é encantadora, mas apesar de seu nome estar no título, Del Toro não é o foco da série. Ele cede o palco quase que instantaneamente para o diretor convidado assumir o show e mostrar à que veio. Eu adoraria poder vê-lo um pouco mais, mas faz sentido ele ser apenas o Mestre de Cerimônias do Circo aterrorizante que está para vir em seguida. 

Conforme exposto, cada episódio é dirigido por alguns dos melhores nomes que trabalham no terror hoje em dia (juntamente com algumas ótimas surpresas). O repertório variado oferece atores conhecidos e uma produção de excelente qualidade. As histórias são muito diferentes, mas combinadas fornecem alguns insights sobre a natureza da posse, propriedade e coleta.

Alguns episódios são genuinamente assustadores, e quase todos fazem uso de terror atmosférico de bom gosto e qualidade. O apuro visual é notável e cada curta metragem, graças ao orçamento do Netflix, tem visual e acabamento de um longa metragem. Efeitos digitais, trilha sonora, cenografia, maquiagem... toda a parte técnica é muito bem feita e merece aplausos.

Mas e quanto aos episódios em si? Quais deles merecem maior atenção? Como ocorre em todas antologias, a qualidade varia, com alguns pontos altos e outros nem tanto. Vejamos à seguir, quais são as histórias que compõem o Gabinete de Curiosidades do Senhor Del Toro.

LOTE 36 

O Lote 36 abre o Gabinete de Curiosidades com um desempenho muito forte em um episódio infelizmente fraco. O excelente Tim Blake Nelson, está maravilhoso como um sujeito raivoso cujo desespero e misantropia estão sempre prestes a atingir fervura máxima. Com uma dívida vencida e o prazo final se aproximando, ele compra um depósito num leilão, na esperança de encontrar alguns itens caros que possa passar adiante. O que ele encontra, porém, pode ser perigosamente diabólico.

O roteiro assinado por Del Toro garante alguns bons momentos. Eu gostei especialmente dos acenos lovecraftianos na história, com direito a tomos malignos, além de personagens coadjuvantes sinistros dispostos a tudo para conseguir itens para suas coleções. E também há um monstro bastante bizarro e interessante! 

O responsável pelo episódio é Guillermo Navarro, um mestre na direção de fotografia, detentor de um Oscar por O Labirinto do Fauno. Ele sabe como ninguém filmar a escuridão, o que ajuda muito nos corredores claustrofóbicos do depósito e da unidade de armazenamento. No entanto, se visualmente o episódio é impecável, mas deixa a desejar no que diz respeito ao ritmo e conclusão um tanto óbvia.

RATOS DO CEMITÉRIO


Graveyard Rats é o primeiro vislumbre de quão incrivelmente divertido gabinete de Curiosidades pode ser quando tudo está funcionando bem. O episódio mais curto da série apresenta um pilantra  maravilhosamente desavergonhado que também tenta pagar uma dívida prestes a prescrever. Sua família possui uma casa funerária e cemitério há gerações, então ele rouba os túmulos para pagar o que deve. Seu cemitério parece ter um problema com ratos que insistem em levar seus cobiçosos tesouros antes que ele possa colocar suas mãos neles. Disposto a juntar a soma devida, ele se vê lutando contra roedores ferozes nos subterrâneos do cemitério, cercado de corpos, esqueletos e coisas mais estranhas.

O brilhante Vincenzo Natali (diretor de Cubo, Cypher, Splice) dirige Ratos de Cemitério com sua sutileza habitual e imaginação, escalando seu amigo de longa data e ator favorito David Hewlett no papel principal de Masson. O personagem é deliciosamente memorável, um homem de uma antiga família rica que fala docemente com todos, mas não consegue disfarçar o quão patético e corrupto se tornou. Assaltando túmulos e gritando com ratos, rezando por misericórdia sempre que está em apuros, ele é a personificação absoluta de um canalha.

Baseado no conto original de Henry Kuttner, além da divertida atuação, Ratos de Cemitério tem alguns momentos realmente assustadores entrelaçados com cenas mais cômicas. Os cenários, figurinos e efeitos são maravilhosos, resultando em uma pequena joia desagradável que explora a noção obsessiva de querer possuir algo para todo sempre.

A AUTÓPSIA


Sem dúvida um dos episódios mais revigorantes no Gabinete de Curiosidades, "The Autopsy" deixa claro em seu título o que os espectadores estão prestes a encontrar. O que seria de uma antologia de horror sem algumas imagens nauseantes, sanguinárias e gore? Afinal, tripas e sangue fazem parte do gênero e teriam que aparecer em algum momento. Não por acaso, esse é um dos segmentos mais angustiantes e interessantes da série, não perdendo tempo, colocando tudo no lugar para uma conclusão impressionante (e doentia). 

Inteligentemente dirigido por David Prior (de "O Homem Vazio"), ele foi escrito pelo brilhante roteirista David S. Goyer (de Dark City, Blade, The Dark Knight) com base num conto de John Shea.

Além de contar com uma ótima história, o episódio traz o lendário ator F. Murray Abraham que interpreta um legista recém chegado à uma pequena comunidade para investigar uma tragédia que vitimou vários operários de uma mina de carvão. Recebido pelo confuso chefe de polícia que tenta compreender o caráter bizarro do incidente, o personagem de Abraham é encarregado de abrir os corpos após a explosão e desabamento numa mina. Ele se aprofunda no mistério, ao mesmo tempo que revista as vísceras e entranhas humanas, sem imaginar o que o espera.

Algumas cenas surreais, uma conversa horripilante e uma autópsia bizarramente grotesca tornam essa um dos melhores segmentos da coleção. 

O EXTERIOR 


Dirigido por Ana Lily Amirpour (The Bad Batch, A Girl Walks Home Alone at Night) esse é sem dúvida um dos segmentos mais esquisitos de Cabinet of Curiosities. The Outside é até difícil de conceituar como terror, ainda que seja uma história incômoda que confronta questões sobre beleza, autoimagem e narcisismo. 

O episódio envolve uma funcionária de banco suburbana e feia, que tenta se encaixar entre outras colegas de trabalho. Para isso, ela utiliza um misterioso e revolucionário produto de beleza que promete fazer milagres não apenas para sua aparência, mas também personalidade. Kate Micucci é responsável por dar vida a personagem principal em busca da aceitação das colegas e de si própria, disposta a qualquer coisa para "se transformar em alguém diferente".

Filmado de forma incomum, com closes e cores berrantes, o visual chega a incomodar.  Alternando um estilo de humor ácido e pouco convencional, combinado a psicodrama, o episódio acompanha a deterioração da saúde mental de uma mulher que passa a sofrer alucinações com as promessas do hidratante mágico.

Não foi pra mim... Achei o resultado sofrível, se estendendo demais e terminando de forma abrupta, não que fosso melhor prolongar essa história.

O MODELO DE PICKMAN


Confesso que era esse o episódio que eu estava mais ansioso em assistir, mas o resultado é um tanto frustrante.

Trata-se de um drama de época elaborado pacientemente cujo horror vai crescendo até transbordar em um espetáculo de sangue e morte na reta final. Pickman's Model é uma das mais populares e horríveis histórias de H.P. Lovecraft, mesclando tabu e arte num mesmo caldeirão fervente de decadência e corrupção. O roteiro do episódio é um tanto quanto diferente, contemplando uma meditação sombria e melancólica à respeito da arte e do significado da beleza. Não é exatamente a proposta de Lovecraft que era bem mais direta em oferecer uma narrativa de horror gótico, quase homenageando Poe.

O Modelo de Pickman segue o premiado aluno de uma escola de arte (Ben Barnes) depois que ele encontra as horríveis pinturas de um misterioso colega de universidade, Richard Pickman. Interpretado por um Crispin Glover perfeitamente concentrado em uma daquelas performances que parecem estranhas demais para ser verdade, Pickman é um gênio artístico cujas pinturas mórbidas são capazes de levar as pessoas à loucura.

A interpretação afetada de Glover como um artista obsessivo, olhos semicerrados, comportamento nervoso e sabedoria sombria é a melhor coisa do episódio. Isso e as pinturas incrivelmente macabras e  belas que parecem causar um misto de fascínio e repulsa. Keith Thomas (diretor de The Vigil e Firestarter) faz um bom trabalho ao dar vida ao início do século XX e cria algumas cenas realmente tétricas, mas parece que falta alguma coisa na conclusão. Por pouco ele não sai da pista e capota ao insistir em mostrar aquilo que o conto original no qual ele se inspira, apenas sugere.

SONHOS NA CASA DA BRUXA


O ponto mais fora da curva infelizmente veio em uma das minhas histórias favoritas de H.P. Lovecraft, e também uma das mais aterrorizantes. Dreams in the Witch House já havia sido adaptado anteriormente em outra antologia chamada Mestres do Horror. O resultado naquela ocasião, se não era grande coisa, ao menos se aproximou muito mais do conteúdo original. Se essa versão tem um visual mais eficiente, o roteiro, por sua vez, deixa muito a desejar. 

Catherine Hardwicke (Treze, Crepúsculo, Chapeuzinho Vermelho) é conhecida por fundamentar histórias fantásticas e de terror juvenil de forma eficiente, mas aqui ela não foi feliz. Tudo soa familiar, sem graça e previsível. Os medonhos pesadelos vividos na Casa com ângulos não euclidianos se transformam em uma caça aos espíritos, focando no relacionamento de dois irmãos muito próximos, mas separados pela morte.
 
Rupert Grint, um tanto sumido desde o fim da franquia Harry Potter, faz o possível para transmitir alguma simpatia, mas esbarra novamente no roteiro frouxo que não lhe dá muito com que trabalhar. Ele interpreta um homem em busca de provas do sobrenatural para entrar em contato com sua irmã gêmea, cujo fantasma ele testemunhou ser sugado para alguma dimensão além. Através do uso de drogas e algumas investigações metafísicas, ele acaba encontrando uma casa decrépita que pode funcionar como portal para outra realidade. Infelizmente ele não percebe que forças malignas habitam essa morada e usarão seus planos em seu benefício.

Eu lamento que o episódio baseado em uma história verdadeiramente assustadora tenha se tornado um arremedo da ideia original. Todo o ar macabro e sinistro impresso no conto cede lugar a melodrama barato e uma correria sem sentido num tipo de floresta espiritual. Na minha opinião, é de longe o pior episódio da antologia.  

 A INSPEÇÃO


Panos Cosmatos (Beyond the Black Rainbow, Mandy) é considerado um dos diretores mais visionários da atualidade. Ele possui um estilo inigualável, então, é claro, seu episódio seria algo completamente diferente do restante dessa antologia de horror.

A Inspeção parece e soa deslocado em meio aos demais episódios que compõem o Gabinete, mas ironicamente ele talvez seja o mais fiel a proposta do tema que permeia toda série: obsessão para com objetos, colecionismo e desejo de possuir.

Panos conta uma história curiosa se passando em 1979, envolvendo um milionário que reúne quatro indivíduos, cada um deles brilhante dentro de sua área de atuação para participar de uma inspeção na qual um item único será apresentado. A ideia é que eles irão ajudar a interpretar o objeto em questão, cada um sob o ponto de vista de sua área. É claro, em se tratando de uma antologia de horror, a tal inspeção não irá ocorrer conforme eles esperam.

O episódio consegue segurar a atenção, atiçando a curiosidade do que vai acontecer a seguir, mesmo com um desenvolvimento lento. A Inspeção é muito bem feito, com visual retrô, sons, diálogos e atuações excelentes, sem mencionar os efeitos práticos que fazem o filme ter um a de produção dos anos 80.

Como quase tudo de Panos Cormatos (o roteiro também também dele), o importante é o visual e a essência. No fim o episódio termina sem explicar o que acabamos de ver o que pode ser frustrante, mas ao mesmo tempo convidativo ao espectador interpretar o que viu.

Estranho? Esquisito? Bizarro? Com certeza, mas mesmo assim, muito bom.
 
O MURMÚRIO


O episódio final da Antologia, Murmúrios, não fecha a série com uma explosão ou um cliffhanger, mas com um sussurro quase inaudível. De fato, é um dos capítulos mais tranquilos, ainda que haja algum espaço para jump scares razoáveis. A história também é mais tradicional, seguindo a premissa de uma história de fantasmas clássica, com direito a uma casa isolada, tragédias pessoais e assombrações tentando transmitir para os vivos as suas aflições. A grande sacada do roteiro é misturar a crença de que pássaros podem ser os condutores das mensagens do além.

O episódio segue um casal de ornitólogos (Essie Davis e David Lincoln) no início dos anos 50 que se dedicam a estudar os padrões comportamentais de uma espécie de pássaro. Eles se mudam para uma ilha deserta e passam a ocupar uma casa isolada à beira de um lago onde as aves costumam se reunir. Entre as gravações e filmagens dos animais, a personagem de Essie Davis começa a ouvir os pedidos de ajuda de uma criança e ter um vislumbre de algo sobrenatural. A dúvida principal é se ela está vendo algo realmente sobrenatural ou se está sofrendo alucinações agravadas por um trauma.

Dirigido por Jenifer Kent, a história se assemelha ao do seu filme mais conhecido, "O Babadook" no sentido de que também envolve uma mãe lidando com intensos horrores emocionais e tendo que superar tragédias pessoais. Para quem está interessado em horror, talvez a profundidade do drama seja um tanto incômoda, já que o terror é apenas um background para os acontecimentos mais importantes.

*     *     *

No geral, O Gabinete de Curiosidades de Del Toro oferece um leque de episódios que variam tanto na proposta quanto no interesse. É provável que a seleção de favoritos varie enormemente de pessoa para pessoa, já que cada episódio oferece uma abordagem diferente do gênero.

É inegável que tudo é muito bem feito, muito bem conduzido e muito bem executado. A competência com que cada episódio foi feito também não se discute, mas confesso que a minha expectativa estava muito alta. A alternância de bons episódios e episódios fracos, faz com que a série sofra de altos e baixos.

Se Gabinete de Curiosidades não é perfeita, não é um desapontamento ficando no meio do caminho. Veremos o que uma segunda temporada, mais coesa e quem sabe equilibrada terá à oferecer.


5 comentários:

  1. Também estava esperando mais do "Modelo de Pickman", mas fiquei bastante satisfeito com o resultado geral da antologia. "A Autópsia" é excelente!

    ResponderExcluir
  2. https://www.instagram.com/gdtreal/?utm_source=ig_embed&ig_rid=b144d1ca-9062-49a5-a9f5-d69bcd41668c&ig_mid=3A8394A6-73AA-4308-AA4A-E99189D61163

    ResponderExcluir
  3. E uma prévia d como seria filme montanhas da loucura do Del Toro

    ResponderExcluir
  4. Melhor episódio: a autópsia
    Maior decepção: as adaptações de Lovecraft

    ResponderExcluir