sábado, 25 de fevereiro de 2023

Inferno na Terra - A Ilha dos Canibais na União Soviética


A história como conhecemos está repleta de incidentes horríveis e perturbadores. Momentos em que a humanidade perdeu a sua civilidade e enveredou através do perigoso caminho da barbárie. O relato à seguir demonstra que confrontado por certas condições, tudo que o homem precisa é um empurrão para cair de vez na escuridão de nossas almas.

Nossa pequena história de Horror começa no início do século XX, na Ilha de Nazino (também chamada de Ilha de Nazinsky), na antiga União Soviética.

O plano era transformar Nazino, uma pequena ilha fluvial em uma comunidade próspera em conformidade com o novo plano de Stalin para a União Soviética. O lugar deveria ser exemplo de conquistas e realizações, mas desde o inicio, tudo saiu errado e no fim, o legado de Nazino foi simplesmente horrível demais para encarar de frente. 

Por décadas a história foi negada, censurada e tratada como um boato mentiroso. O governo soviético chegou a impor penas de reclusão para qualquer pessoa que falasse sobre o que aconteceu naquele lugar infeliz e com seus habitantes. Contudo, certas coisas são difíceis de esconder e mais complicado ainda, é varrer certos fatos para baixo do tapete. A história foi contada e recontada, hoje sabe-se que ela é verdadeira.

Corria o verão de 1933 e a Revolução dos Sovietes, já consolidada, seguia à pleno vapor com as mudanças implementadas na sociedade. Desde o início de 1930, as autoridades haviam intensificado um programa para identificar, processar e afastar inimigos da Revolução. Milhares de cidadãos de Moscou haviam sido presos pela polícia e enviados para prisões temporárias para averiguação, interrogatório e em alguns casos, cumprimento de pena. Em geral, esses indivíduos não eram exatamente inimigos do estado, menos ainda criminosos, contudo eram tidos como indesejados. Boa parte deles caiam numa das seguintes categorias: descontente, inconformados e críticos do regime, tambem havia judeus, ciganos e degenerados (como eram chamados os homosexuais). A maioria não havia tentado nada de concreto para ameaçar o governo, mas eles eram tidos como um risco, caso um dia se organizassem. Numa época marcada pela paranoia, essa era uma ameaça que o governo não estava disposto a correr.

O problema é que a cada expurgo as prisões temporárias ficavam mais cheias e a burocracia estatal arrastava os milhares de inquéritos por meses à fio. A lotação no sistema prisional era tamanha que uma ordem veio do topo da hierarquia exigindo que alguma coisa fosse feita imediatamente. 


Na mesma época havia uma outra grande preocupação. Ela dizia respeito a manutenção de imensas áreas selvagens na Sibéria. A região isolada havia sido quase abandonada após a revolução e as fazendas que existiam lá eram tratadas como uma possível fonte de recursos valiosos em tempos de escassez. O problema é que mesmo oferecendo vantagens e benefícios o governo não havia conseguido atrair voluntários para trabalhar nessa região considerada inóspita demais.   

No fim das contas, alguém teve a "brilhante" ideia de resolver os dois problemas de uma vez só. Os prisioneiros que lotavam os presídios transitórios seriam usados como colonos na Sibéria. No papel parecia uma boa solução, contudo ela esbarrava em inúmeros problemas de execução. Para começar, aquelas pessoas, em sua grande maioria, haviam nascido e crescido na cidade grande, não sabiam nada sobre a vida no campo - desconheciam inteiramente as noções mais elementares de plantio. Tampouco haviam trabalhado pesado ou tinham familiaridade com a rotina rural. O envio compulsório era no entender da maioria uma punição injusta, quase um exílio numa das regiões mais remotas do país.

Mas os Comissários não estavam interessados na opinião desses "colonos relutantes". Eles deveriam desempenhar seu papel no novo plano de engenharia social apresentado por Stalin. A relocação de indesejáveis para territórios vazios na Sibéria e no Cazaquistão, onde a terra precisava ser cultivada e onde surgiriam comunidades autossuficientes. Mesmo o mais positivo analista duvidava que o plano teria sucesso e acreditava-se que as perdas humanas seriam consideráveis. Contudo, esperava-se que os colonos conseguissem ao menos deixar as fazendas prontas para novos grupos que seriam alocados posteriormente. Os expurgos, afinal de contas, continuariam por anos.

Foi ordenada a criação de oito comunidades rurais na região, cada qual responsável por construir, manter e preparar o solo para o plantio de trigo. Nem é preciso dizer que as comunidades falharam terrivelmente, não apenas pela inépcia dos colonos que jamais haviam pego em uma enxada, mas principalmente pelo descaso que eles enfrentaram do primeiro dia até o último. Milhares morreram de fome, por exposição ao inverno severo, por maus tratos ou tentando fugir. É difícil medir o tamanho da tragédia humana: os números variam, mas acredita-se que dos 120 mil prisioneiros transferidos para a Sibéria quase 2/3 jamais retornaram. Não por acaso, o termo "Mandado para a Sibéria" se tornou uma forma de identificar aqueles que seriam enviados para um lugar longe e selvagem.

Uma das comunidades autônomas, a mais isolada, ficava na pequena e pantanosa Ilha de Nazino no meio do Rio Ob. Foi lá que ocorreram os fatos mais chocantes que estabeleceram um novo patamar de horror e drama, difíceis de superar, exceto em tempos de guerra.


Os primeiros colonos chegaram de barca na Ilha Nazino em fevereiro e foram desembarcados numa praia lamacenta onde não havia nada e nem ninguém esperando por eles. Os administradores esperavam receber implementos para construir a fazenda, mas ao invés disso tinham à sua disposição apenas parte do material prometido. De fato, os recursos eram tão parcos que não havia madeira para construir abrigos para todos. Desse modo as pessoas tiveram de se contentar com barracas, tendas improvisadas com lona ou o que mais conseguissem usar para se proteger. A falta de alojamento se mostrava um problema grave, mas não o único.

Logo ficou claro que a fazenda era um gulag disfarçado e que a sobrevivência seria uma luta travada diariamente. Guardas armados faziam as patrulhas do perímetro enquanto uma grossa cerca de arame farpado delimitava até onde os colonos podiam ir sem receber uma advertência seguida de tiros. As ordens para os guardas eram simples: alvejar qualquer um que se aproximasse da cerca. Mesmo os soldados viviam em condições espartanas e por fim acabavam desviando os recursos que chegavam para sua própria sobrevivência. 

Além da falta de material para erguer as instalações, não haviam ferramentas, cobertores, roupas e remédios em quantidade suficiente. Em algum momento verificou-se que os administradores de Nazino não receberam os suprimentos destinados a eles e que o material provavelmente fora desviado para outra fazenda. Ninguém comunicou essa situação e mesmo que o tivessem feito, provavelmente pouco teria mudado. 

Apesar da situação geral, o maior problema na Ilha de Nazino era a falta crônica de comida.

No início havia um pequeno estoque de alimento, mas na falta de um local para acondicioná-lo, as provisões se deterioraram rapidamente com a neve, geada, chuva e vento. Os administradores destinaram os suprimentos restantes aos guardas e para eles mesmos, os colonos ficariam com o pouco que restasse. Desse modo a cada quatro ou cinco dias, era distribuída uma porção de farinha de centeio para comerem – cerca de 300 gramas por pessoa. Os colonos levavam essa farinha até o rio, misturavam-na com água e a bebiam. Alguns apenas comiam o pó como estava, por vezes inalando-o acidentalmente e sufocando.


Diante da fome, as pessoas apelavam para qualquer coisa. Comiam pássaros, raposas e pequenos animais que conseguissem apanhar em armadilhas improvisadas. Estes logo foram dizimados, restando então os besouros que viviam na lama do rio, mas mesmo eles foram extintos. Apelavam para raízes, plantas, folhas e o que mais pudessem achar. Havia uma regra severa para qualquer um que comesse as sementes destinadas para o plantio do campo, mas muitos não queriam saber, comiam qualquer coisa para se livrar da fome. Os campos, por sinal, davam mostras claras de que não vingariam e o plantio parecia ser um exercício de futilidade. As pessoas cavavam a roça e buscavam as sementes no chão e as levavam direto à boca.

A situação em Nazino era mantida em sigilo e ninguém parecia se importar com o que acontecia lá. Ainda assim, uma média de 400 pessoas chegavam por mês. Em meados de julho, um instrutor comunista chamado Vasily Velichko, ouviu alguns boatos sobre a situação na Ilha de Nazino e decidiu por conta própria verificar se aquilo era verdade. Ele escreveu uma série de relatórios que posteriormente receberam um carimbo de "ultrasecreto" e foram arquivados. Esses relatórios constituem um dos únicos documentos oficiais que comprovam os rumores sobre o que acontecia em Nazino.

"As pessoas estão morrendo", escreveu Velichko logo na abertura do relatório. “Eles morrem queimados vivos enquanto dormem perto das fogueiras. Morrem de exaustão expostos ao vento cortante, pois não há proteção. Morrem de frio, porque dormem ao relento. E morrem de Fome, pois não há comida para todos"

Velichko descreveu uma série de incidentes pavorosos em seu relatório. Todas as observações foram feitas usando um binóculo para espiar o que se passava atrás da cerca de arame farpado que havia sido guarnecida por mais duas faixas depois de uma tentativa frustrada de fuga em massa em maio.

O instrutor relatou uma cena medonha, digna de pesadelos na qual um dos cães de guarda havia sido capturado e despedaçado pelos colonos para em seguida ser devorado cru aos bocados. A cena o encheu de horror e asco.

Mas aquilo não seria o pior ato que ele testemunharia em suas observações do campo de Nazino.


Em uma situação tão exasperante de privação alimentar, não é de se surpreender que em dado momento mesmo os tabus mais profundos acabem caindo por terra. E foi exatamente isso que aconteceu segundo Velichko.

Ele já havia ouvido rumores sobre canibalismo, mas não havia confirmado as histórias contadas pelos guardas que evitavam se aproximar da cerca.

Um rapaz desapareceu e sua família em desespero implorou para que os guardas fizessem alguma coisa. A contra gosto decidiram ajudar. Descobriram os restos do rapaz na manhã seguinte, em um trecho afastado da mata. Suas panturrilhas e nadegas haviam sido cortadas e porções inteiras foram removidas. 

"Perguntei o que havia acontecido e um dos colonos disse apenas que na noite anterior eles tiveram alguma coisa para comer."

Segundo o instrutor, casos de canibalismo costumavam acontecer em Nazino vitimando jovens, mulheres e crianças. A carne era preparada em ensopados ou consumida assada em fornos. As vítimas na maioria das vezes sumiam, os corpos sendo enterrados no bosque.

Nem todas as vítimas morriam, algumas ainda sobreviviam a esse horror. "Encontramos uma mulher que estava ferida e ela relatou que um grupo a cercou e cortou suas panturrilhas para extrair a carne", escreveu Velichko.

"Eles fizeram isso comigo meses atrás - cortaram e cozinharam minha carne", toda a carne foi cortada. Suas pernas estavam congelando por causa disso e ela as embrulhou com trapos”.

A terrivel situacao parecia ser mais corriqueira do que se poderia imaginar. Sobretudo com a aproximação do inverno e de mais privações. Quando perguntado se comia carne humana, um prisioneiro disse aos interrogadores: "Isso não é verdade. Comi apenas fígados, rins e corações."

Ele contou como alguns faziam  espetos usando galhos de salgueiro, deslizando pedaços de órgãos humanos através deles para assá-los na fogueira.

"Escolhemos aqueles que ainda estão vivos, mas que logo estariam mortos", acrescentou. "Era óbvio que eles estavam prestes a morrer – que em um dia ou dois, eles desistiriam. Então era melhor para todos assim. Mais rapidamente. Sem sofrer por mais dois ou três dias. Que diferenca faria?"


Velichko escreveu seu relatorio sobre a dramatica situacao da Colonia de Nazino e tratou de enviar copias para quatro Comissários pedindo providências imediatas. No entanto, ele foi ignorado pela maioria das autoridades que consideraram seu relato exagerado e fantasioso.

O instrutor recebeu ordens de cumprir outras tarefas e foi afastado da região, remanejado para a fronteira ao sul. Ele só retornou à Ilha Nazino em meados de outubro e encontrou as instalações abandonadas. 

A colonia foi evacuada sete semanas após os relatórios terem sido enviados. Aparentemente alguém decidiu levar a sério os documentos e ordenou que as instalações fossem fechadas. Boatos davam conta de uma revolta, mas essa jamais foi confirmada. Nem todos os prisioneiros foram remanejados: os rumores afirmavam que quase metade das pessoas, em especial os doentes ou muito debilitados foram simplesmente fuzilados, bem como alguns que claramente haviam se envolvido em canibalismo.

“A grama da ilha estava alta”, escreveu Velichko. “Mas uma breve busca revelou que haviam muitos ossos e cadáveres ocultos. Ao menos o lugar havia sido esvaziado e não seria mais utilizado nos programas sociais".

Dos 9.700 prisioneiros trazidos para a Colonia na Ilha de Nazino, cerca de 6.000 estavam desaparecidos ou mortos no momento de seu fechamento. 

O experimento deu terrivelmente errado, e os eventos na Ilha Canibal foram convenientemente encobertos pelo governo de Moscou. Os sobreviventes não poderiam jamais revelar os acontecimentos sinistros ocorridos naquele lugar. Mesmo o instrutor Vasily Velichko recebeu ordens de queimar todos os seus registros e fotos. Ele nunca deveria mencionar o que havia testemunhado na ilha. Velichko recebeu uma promoção e foi enviado para o Oeste onde cumpriu suas novas funções burocráticas. Ele morreu em 1980.

Foi somente em 1988, quando o governo soviético começou a adotar uma nova política de abertura e transparência, que a tragédia da Colonia Nazino finalmente veio à tona.

Registros e arquivos até então sigilosos enfim foram divulgados, inclusive aqueles redigidos por Velichko. Livres para falar a respeito de Nazino, alguns poucos sobreviventes e seus descendentes forneceram testemunho sobre o Horror ocorrido mais de cinco décadas antes. 

As histórias foram reunidas e se tornaram um registro vívido dos fatos. Anualmente familias de pessoas que estiveram na ilha se reunem nm memorial que homenageia os que perderam suas vidas em Nazino. Ele foi erguido no exato local onde ficava a colonia fracassada. Dela não restou praticamente nada, a não ser lembranças amargas e tristeza.


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