A Dama Rubra
"Uma história popular em Arkham envolve a Mulher Rubra da Trilha Aylesbury. A antiga via, por muito tempo foi chamada de Picada Garrison, e se estendia mata adentro, entre freixos e abetos de tronco nodoso e galhos esqueléticos crescendo tortos. Quando a Trilha Aylesbury foi aberta no outro extremo, o prolongamento foi completado para facilitar a vida das pessoas. Mas tão logo a estrada foi inaugurada, os habitantes locais começaram a falar de estranhos incidentes naquele eito isolado. Mencionavam globos luminosos flutuando na escuridão perene, murmúrios incorpóreos e sensações incômodas que iam de apreensão até um pavor inexplicável. Alguns descreviam um peso no peito e uma súbita falta de ar que lhes acometia.
O mais estranho, no entanto, foram os relatos sobre uma mulher que vagava por ali, mefítica, quase como uma aparição em meio a densa vegetação. Era dona de beleza exótica, pálida e de feições delicadas, com olhos azuis aquosos e um cabelos rubro acobreado caindo sobre os ombros de alabastro. Para escândalo de algumas senhoras, diziam que vagava nua em pelo. Visões de damas desamparadas não são exatamente novidade, sobretudo em recônditos que cortam prados afastados como aquele. Mas o que chamava a atenção é que a mulher não parecia desamparada, muito pelo contrário.
De postura diligente, ela se punha a observar atentamente aos transeuntes que quedavam por aquelas bandas deixando uma sensação incomoda de tensa incerteza sobre suas motivações prementes. Não era apenas o inusitado de encontrar tal dama naquelas circunstâncias, mas algo mais que parecia estar ligado ao seu olhar transfixado. A mulher era má, ou assim sentiam os que eram fulminados pela sua incomoda atenção. Sua expressão transbordava com ódio fervente por tudo e por todos.
A apelidaram de a Mulher Rubra da Trilha Aylesbury e o nome caiu como uma luva.
No início, poucos davam atenção aos rumores, posto que tais visagens na Nova Inglaterra eram abundantes. A coisa mudou de figura quando algumas pessoas que sabidamente transitaram pelos ermos falharam em chegar a seu destino, e mais ainda, quando corpos brancos e com expressões petrificadas de pavor começaram a pulular na margem do caminho. Não se sabe quantos e se todos foram afetados pela mesma força nefasta. Inegável contudo, é que algo na Trilha deixava um rastro de vítimas. E em pouco tempo, menos e menos pessoas passaram a se arriscar por aquele trecho sabendo que a Mulher Rubra poderia estar à espreita deles."
Sulcos profundos
"Todo morador de Arkham sabe que as florestas próximas são fonte de toda sorte de história insólitas e rumores estranhos. As pessoas no entanto franziam o cenho quando se mencionava o Bosque do Menino Perdido. Para alguns era apenas um lugar isolado no coração do Vale de Miskatonic que não tinha nada demais, além das árvores encarquilhadas, das raízes que brotavam do chão feito tentáculos e da vegetação selvagem de espinheiro e hera venenosa crescendo em profusão. Mas é claro, mesmo os mais céticos evitavam cruzar por aquelas sendas depois de certa hora ou em datas específicas, quando certas estrelas luziam faiscando no firmamento.
Isso porque ao adentrar o Bosque do Menino Perdido, um apelido que pegou em face de um trágico acontecimento real ocorrido lá pelos idos de 1900, era inegável sentir toda opressão daquele ambiente carregado. Era um tipo de energia que impregnava o solo negro, que nutria a vegetação e que se fazia sentir mesmo nos poucos animais que por ali vagavam. Era uma sensação estranha, de que o sagrado ciclo da natureza, ali, naquele pequeno ponto manchado de verde no mapa, encontrava-se em atribulação.
Que o termo "natural" de alguma forma não se aplicava lá. E isso se fazia sentir em todo canto do Bosque do Menino Perdido, nas clareiras cobertas de folhas secas, nas copas de árvores majestosas cujos galhos se agitavam com ou sem vento, ou ainda, no som de passadas trovejantes que ecoavam pelas matas virgens nas noites sem lua e que deixavam sulcos profundos impressos na lama outonal."
O Teimoso Ebenezer Crutch
Quando o velho Ebenezer Crutch, lá de Ross Corners decidiu recolher aquela pedra esquisita que caiu do céu lá pelos idos de '28, não imaginou o problema que estava comprando. A coisa era estranha, não apenas por ter despencado do céu numa bola de fogo bem no centro de sua chácara. O impacto dela fez a terra tremer, abriu rachaduras no solo e tirou o sono de todo mundo na fazenda.
Mas foi em meados de Junho, seis semanas depois da queda, que o caso ganhou contornos mais esquisitos por conta dos animais ficarem arredios e a própria natureza dos arredores reagir como se estivesse vexada pela presença de algo anormal. Ou que "não pertencia ao local" como salientou Ma Crutch certa manhã, olhando da janela da cozinha.
Tanto foi que Ebenezer, decidido a dar fim naquela situação, foi até a clareira onde a coisa havia deixado uma cratera. Ele cavou o chão, amarrou a rocha com a corda mais grossa que encontrou, e arrancou a maldita do buraco, puxando com toda força de sua caminhonete Ford. Devia ter levado a coisa para bem longe... despejado na pedreira ou entregue à gente educada da Universidade Miskatonic que talvez soubesse o que fazer com ela. Mas Ebenezer decidiu levar a pedra de arrasto para um galpão da sua fazenda, achando que talvez uma coisa vinda de sabe lá Deus onde, tivesse algum valor que compensasse a trabalheira que deu movê-la de um canto para outro. Ele era teimoso, um típico morador da Nova Inglaterra que quando mete algo na cabeça, não há quem tire. Ele achava que a pedra deveria de ter alguma serventia.
Pragmático como era, acreditava piamente que uma coisa vinda dos "rincões siderais" precisava ter algum propósito além de simplesmente vagar pelas eras através do éter cósmico e vir cair num fim de mundo que nem Ross Corners. De pedra essa mundo estava cheio, não precisava de mais uma, espacial ou não... Nao senhor, tinha que ser algo diferente!
Foi em fim de Setembro que Ebenezer descobriu, da pior forma que estava certo. Não era "só uma pedra", era algo (na ausência de palavra melhor) muito diferente.
Um som que se houve recorrentemente nas matas que circundam Arkham é o piar dos Whirpoowill. Esses pequenos pássaros de pelagem castanha acinzentada se reúnem nas copas das castanheiras e freixos onde fazem ninhos. Mas diferente do canto dos pardais e dos estorninhos, o som produzido pelos Whirpowills não se traduziam em encanto para seus ouvintes. Roufenho, vigoroso e seco, o ruído soa como um estalido que alguns remetem ao som da tampa de um caixão fechando ou o soluço terminal de um moribundo. Essa característica lúgubre deu ao pequeno Whippoowill uma fama que perdura desde os tempos coloniais como uma ave de mau agouro.
"Na casa de quem as pequenas aves se empoleiram a cantar, em breve, alguém morrerá."
Mais do que ser uma ave de negros auspícios, o Whippoowill atrai olhares de desgosto da boa gente dos arredores por um curioso costume. O pássaro ao caçar, tem predileção por insetos que habilmente ele captura em seu bico agudo. Ao invés de devorar ou levar as presas até seu ninho, o Whippoowill descobriu uma maneira de dispor do alimento. Uma vez capturando um inseto, digamos um besouro galhado ou uma mariposa cigana, ele o carrega até um dos abundantes espinheiros que crescem selvagens nos bosques. Habilmente o pássaro pressiona a presa contra um espinho até ela ser trespassada e ficar ali presa em espasmos de agonia. O Whippoowill só depois a devora. Por esse estranho ritual, raro na natureza, o Whippowill passou a ser chamado de "Pássaro Empalador".
Graças a esses fatores, não é de se estranhar que o pássaro seja evitado pela gente supersticiosa do Vale de Miskatonic. Mesmo os filhos de fazendeiros, muitos deles pequenos valentões que andam pelas trilhas com bodoques enfiados no bolso traseiro, evitam disparar pedras contra os Whippoowill, tendo ouvido de suas avós, nos alpendres de casa, a recomendação de jamais ferir uma dessas aves ingratas.
Diz uma história, muito popular entre as crianças que o pequeno Timmy Wallon, de 10 anos, ignorava a recomendação, quase que consenso entranhado na mente das demais crianças de deixar os Whippoowill em paz. Atrevido como era, o jovem não via diferença de ter na alça de mira de sua temida atiradeira um tordo marrom, um papa-mel ou qualquer outra ave da Nova Inglaterra, mesmo os temidos Whippoowill. Não senhor! Quando Walton calçava a pedra na funda e disparava convicto de que acertaria, não se importava em absoluto com o que caía vítima de seus petardos. Tal comportamento deixava os demais garotos consternados.
Certo dia, Wallon que brincara com os demais meninos numa cinzenta tarde de outono, falhou ao retornar para casa. O povo organizou um grupo de busca que se meteu nas matas atrás do rapaz, chamando seu nome. Não o acharam e então mandaram vir uns perdigueiros que um fazendeiro criava em Muldoon. Os animais eram farejadores treinados e não demorou até eles pegarem o cheiro do garoto. Embrenharam na mata quase que arrastando pela guia seu condutor. Levaram o grupo de busca até uma área fechada, de densa vegetação, escura e espinhosa. E lá, em meio a erva daninha e das urzes altas, sobre um tronco podre de carvalho tombado sabe lá Deus a quanto tempo, acharam disposto o corpo sem vida do menino Wallon. Ele estava caído sobre uma haste pontiaguda que lhe trespassava as costas, vindo a brotar no lado esquerdo de seu peito, como um apêndice medonho, embebido em sangue escuro. Tinha um semblante assombrado nos olhos vítreos e a boca meio escancarada em um pedido perpétuo de perdão.
E dizem, no exato momento que o cadáver foi achado, um recital de apupos crocitou com o inefável canto de mau agouro dos Whippoowill.
Ótimos contos! Precisamos de mais!
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