No vasto universo do Mythos, certos seres e entidades parecem estar circunscritos a determinadas regiões. São seres de grande poder e influência, mas que por algum motivo parecem estar ligados a um espaço territorial relativamente pequeno. Como se estivessem enraizados ao próprio solo, eles não conseguem ou muitas vezes, não contemplam, se afastar dessas áreas. Tais entidades se convertem em senhores de seu espaço, passam a controlar todos os elementos, todos aspectos e a própria natureza é cooptada pela sua influência perversa, o que inclui animais e humanos que lá habitam.
Há exemplos óbvios de Entidades que seguem esse preceito, de nunca se afastar dos territórios que por diferentes razões decidiram reclamar como seus. Um dos melhores exemplos é indubitavelmente o insalubre Vale de Severn, cujos limites contabiliza uma série de vilarejos decrépitos, cada qual voltado para uma diferente deidade que ali reside e é adorada pelos seus degenerados residentes.
O que tais seres desejam, o que os compele e quais as razões para que eles fiquem confinados ali, muitas vezes escapa de nosso conhecimento e poucos, exceto os que vivem nessas áreas podem ter alguma noção de seus motivos inescrutáveis.
Uma Entidade obscura, até para os padrões do Mythos, que vive circunscrita a uma determinada área de atividade é a bizarra abominação vulgarmente conhecida como Deus Rato da Nova Inglaterra.
Tal entidade é reverenciada por um diminuto grupo de indivíduos, mormente membros de tribos de nativos norte-americanos ou seus descendentes que residem nas imediações de um povoado chamado Cão Coxo (Lame Dog) nos arrabaldes do estado.
O lugar sempre foi isolado e de difícil acesso. Coberto de densas matas virgens e de pântanos intransponíveis que no inverno se tornam armadilhas naturais de neve e gelo, a área sempre afastou os nativos. Mas não era apenas a natureza selvagem e a presença de grandes roedores que objetava a conquista do espaço, havia algo mais que os xamãs e feiticeiros dos Narragassett e Mohegan podiam sentir. Uma mácula contaminando o próprio solo escuro dessa terra profana. Chamavam a faixa pantanosa de Nahuchtill, a Terra do Rato e a evitavam a todo custo.
Segundo as lendas nativas, após uma grande rixa entre tribos, uma delas foi forçada a buscar um refúgio onde pudesse se estabelecer. Encontrou guarida justo nas terras ermas do Nahuschtill, a "província dos ratos que andam sobre duas pernas". O xamã dessa tribo proscrita era Cão Coxo e esse nome passou a ser compartilhado por todos eles. Cão Coxo entrou em contato com a coisa monstruosa que vivia nas profundezas daquele descampado quase que imediatamente e ofereceu sua servitude quando identificou se tratar de um dos Deuses Primordiais ligados aos Antigos. Ele foi alçado a uma condição de Profeta pelo próprio Deus Rato.
O povo desse assentamento foi então apresentado a rituais que a criatura transmitiu ao seu sacerdote. Os que resistiram à ideia se tornaram as primeiras vítimas de sacrifícios doentios. O Deus Rato demandava uma prova do comprometimento dos postulantes a servi-lo e essa só poderia ser dada com sangue. O culto nasceu dessa maneira, congregando talvez duas dúzias de malogrados nativos e algumas squaw raptadas que passaram a adorar aquele horror como seu deus único. O isolamento e os tabus tribais permitiram que a tribo se desenvolvesse, entregue a práticas nauseantes de feroz adoração e perversa endogamia. Com o passar do tempo gerações nasceram contaminadas pela semente atroz do Deus Rato, tornando-se cada vez mais degeneradas em aparência e mentalidade.
Quando os colonos brancos chegaram à Nova Inglaterra, as tribos foram forçadas para o território interior, através dos pântanos evitados desde os primórdios. Lá ficaram chocados em encontrar a tribo esquecida composta de homens e mulheres com feições de roedores entregues a um comportamento repulsivo. Muitos guerreiros ficaram tão perturbados pelo povo de Cão Coxo que fugiram sem olhar para trás, outros no entanto os combateram encontrando árdua oposição, já que as crianças do Deus Rato agora contavam com um padroeiro poderoso. Ainda assim, aquela gente também sofreu perdas severas. Vieram então os colonos brancos que em sua marcha para o interior derrubaram árvores e abriram estradas que transpunham o pântano gelado cercando Nahuchtill. Ficaram incomodados pela presença dos grandes roedores que viviam na área e mais ainda pelos nativos degenerados com feições bizarras que os receberam. Não havia nada ali e portanto seguiram em frente sem perturbar os locais.
Por algum tempo Cão Coxo permaneceu intocada, protegida pela sua insignificância, ao menos até a chegada de imigrantes russos que por algum motivo acabaram se aventurando por aquelas bandas. Eram obstinados, resistiam bem às agruras do clima severo e lá fincaram bases para erguer um rústico assentamento. Talvez o local estivesse fadado a ser abandonado, mas em algum momento chegou a notícia de que naquelas terras lamacentas havia ouro em abundância. A notícia atingiu a costa e começou a atrair cada vez mais gente disposta a tentar a sorte no lugarejo batizado Cão Coxo. Nas décadas seguintes as concessões de garimpo mudaram o lugarejo e despejaram pó de ouro sobre balanças que fizeram a fortuna e a ruína dos residentes. Cão Coxo provou de certo progresso e permitiu o surgimento de um grupo aristocrático, em sua maioria descendentes dos colonos russos originais, que se converteu na classe mais abastada. Ergueram moradas luxuosas e palacetes com lambris e telhados de alvenaria que contrastavam com as barracas mal ajambradas dos garimpeiros.
Como seria de se esperar, a onda de progresso não contemplou os nativos. Estes foram afastados da cidade em crescimento e forçados para uma das áreas mais miseráveis - justamente na vizinhança do acesso subterrâneo onde o Deus abominável habitava. Continuaram a honrá-lo com sacrifícios de sangue na escuridão de suas catacumbas, onde exércitos de ratos pululavam. Eram evitados à todo custo pelos recém chegados, perplexos pela aparência bestial e modos daqueles miseráveis desprezíveis.
Mas a glória do ouro aos poucos foi esvanecendo em Cão Coxo e com ela o progresso. Em pouco mais de duas décadas a cidade havia sido drenada de sua riqueza mineral e nada mais restava a ser explorado. Com efeito, a decadência foi tomando conta de tudo, os casarões perderam sua opulência e a gente branca partiu pouco a pouco, enxotados pelas pragas que agora corriam pelas ruas. Restaram uns poucos que se apegavam ao terreno conquistado tão arduamente e que eram teimoso demais para partir. estes acabaram sendo assimilados pelos nativos que lenta, porém gradualmente começaram a voltar para a cidade, ocupando as casas vazias, exceto pelos ninhos de ratos. Em algum momento, os moradores locais acabaram contaminados pelo mesmo cultismo e passaram a adorar a divindade blasfema para a qual os nativos prestavam homenagem. Desta feita, um grupo miscigenado se tornou proeminente, com pele mais clara e cabelos negros - compunham a nova sociedade de Cão Coxo.
Na virada para o século XX, os residentes estavam tão integrados que era difícil separar nativos de brancos. Todos eles também comungavam do mesmo sacramento doentio ao imoral Deus Rato. No começo do século, as luzes de uma era de saber permitiu que os filhos de Cão Coxo deixassem os limites da cidade e explorassem as cidades próximas fixando-se em Salem, Bristol e é claro, na assombrada Arkham no Vale do Miskatonic.
O povo de Cão Coxo continuou professando sua religião profana que evidenciava a sua condição de sujeição diante de seu Deus. Os rituais um dia foram realizados na superfície, mas a necessidade de sigilo os forçou a transferir seu tabernáculo para o subterrâneo adjacente à morada do Deus Rato. Nessas câmaras umbrosas de rocha áspera a congregação se reunia em total escuridão para seus ritos doentios. Os membros inferiores do culto não possuem uma indumentária específica, vestem trapos ou se apresentam nus. Os sacerdotes, no entanto, costumam trajar mantos pesados e escuros além de uma máscara tradicional que lembra o crânio de um rato.
Sacrifícios são parte importante das cerimônias e se não houver uma vítima - geralmente uma mulher subtraída de uma região vizinha, os cultistas estão dispostos a oferecer um dentre eles. A vítima é entregue ao Deus Rato que preside as cerimônias de corpo presente. A enorme criatura dá cabo de suas oferendas devorando-as aos bocados com selvageria. Por vezes, estas também podem ser dadas às crianças do Deus Rato, as hordas inefáveis de imensas ratazanas que habitam os túneis. Tamanha a voracidade dessas criaturas que suas vítimas são roídas em poucos minutos até restarem apenas os ossos carcomidos.
Após os rituais de submissão e sacrifício, o Deus Rato abençoa sua congregação com portentos. Estes são transmitidos mentalmente como em uma espécie de alucinação coletiva para os presentes que partilham do devaneio. A experiência de iluminação contamina a todos que se entregam em seguida a uma orgia lasciva em meio às trevas. Ali cercados pelos ratos e outros horrores mutantes eles se entregam num imundo bacanal. Durante essas orgias indescritíveis muitas mulheres acabam "abençoadas" dando a luz a novas gerações de seguidores, visto que a fecundidade é uma das dádivas do Deus Rato.
Os cultistas típicos do Deus Rato são jovens, uma vez que poucos chegam a idade avançada dado o caráter de sacrifício de seus rituais. Essas pessoas apresentam uma aparência reminiscente de sua divindade nefasta. Possuem dentes afiados e proeminentes, pequenos olhos rosáceos e apresentam crescimento de tufos de pelo cinzento e crespo em porções do corpo. São repulsivos para a maioria das pessoas: de baixa estatura, aspecto pouco saudável e modos estranhos. Há entretanto, casos mais graves de deformação congênita, com indivíduos apresentando membros atarracados, dedos fundidos e pés na forma alongada das patas de ratos.
Em casos extremos encontra-se incidência de indivíduos com um focinho curto, orelhas em riste e até mesmo compridas e finas caudas de rato. Esses cultistas tendem a se manter nos túneis do covil do Deus Rato e raramente são vistos no exterior sem roupas pesadas que escondem sua evidente deformidade. Apesar de não poderem ser vistos na superfície sem causar choque, eles são tidos como indivíduos escolhidos pelos seus pares. Alguns deles vivem em meio as ninhadas de ratazanas cegas e albinas, grandes como porcas que os nutrem com seu leite. As mulheres que nascem com essas mutações muitas vezes são concubinas do Deus Rato em pessoa, impregnadas por ele de tempos em tempos.
Os líderes do Culto também costumam vir desse grupo, dominando feitiçaria oferecida pelo Deus Rato e usando seus poderes sobrenaturais para atingir todos que desafiam sua autoridade. A tenebrosa maldição da Coisa-Rato que opera uma transformação horrenda na vitima é uma técnica conhecida por esses bruxos e reservada àqueles que despertam sua ira. Os feiticeiros acumulam a função de sacerdotes, presidindo os rituais, comungando com seu Deus e recebendo dele as instruções de como proceder. São devotos fanáticos e servem a criatura em toda sua capacidade.
Em geral o Deus Rato sempre pareceu satisfeito com seu pequeno domínio que se resumia a Cão Coxo e redondezas, contudo na segunda metade do século passado ele começou a aumentar sua influência enviando cultistas para outros lugares.
Os membros do Culto que recebem a anuência dos sacerdotes tendem a se estabelecer em grandes cidades onde suas atividades chamam menos a atenção. Suas deformidades também tendem a ser menos evidentes. Embora tenham recebido a permissão do Deus Rato de deixar Cão Coxo, eles se mantém fieis ao Culto e suas diretrizes. Muitos se estabelecem em prédios abandonados e ruínas tomadas por ratos, tornam-se mendigos e vagabundos que vivem em meio aos roedores na escuridão. Contemplam encontrar outros seguidores e estabelecer com eles um templo devotado ao Deus.
Essas congregações raramente conseguem lograr sucesso nessa empreitada e a maioria desses "missionários" falham em seu intuito. Há entretanto exceções marcantes. Na cidade de Nova York, o Culto do Deus Rato conseguiu encontrar um terreno fértil para proliferar ocupando estações abandonadas de metrô e usando os túneis como seu reduto. Rumores alarmantes sugerem que cultistas do Deus Rato se espalharam por áreas profundas do metrô encontrando fartura de vítimas entre as populações de sem-teto e simpatizantes entre eles. O Culto enfrenta ainda a concorrência de Carniçais (ghouls) que também vivem nesses mesmos túneis gerando uma feroz disputa territorial. Contudo, o fato de existirem templos devotados ao Deus Rato nas profundezas atesta que eles parecem ter conquistado seu espaço e que estão expandindo seus domínios.
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