quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

RPG do Mês - PIRATE BÖRG - Ação, Terror e Pirataria no Caribe Sombrio


Eles vieram pela liberdade do Novo Mundo. Vieram pela riqueza do clima e pela beleza das ilhas. Eles vieram pelo saque dos grandes navios transportando lingotes de prata roubada das Américas e levada para a metrópole espanhola. Às vezes, eles recebiam permissão para atacar e roubar navios. Em outras, eles eram perseguidos pelos mares como criminosos comuns e quando pegos, enforcados até o último homem. Era uma vida de ação, emoção e aventura!

Então veio o Flagelo. 

Os corpos de marinheiros mortos começaram a levantar e andar, fantasmas daqueles expulsos de seus lares ancestrais, esqueletos cobertos de alga e limo marinho, zumbis apodrecidos e monstruosidades nascidas nas profundezas. Esses horrores visitaram as cidades e vilarejos trazendo consigo loucura, morte e deixando um rastro de destruição. Os sobreviventes fortificaram as muralhas, fecharam os portos e municiaram os canhões. A batalha pela sobrevivência contra as hordas de mortos vivos foi feroz.

No fim, restaram os fortes, os bravos e aqueles que estavam dispostos a qualquer coisa para sobreviver.

Em meio a esse pesadelo, a mais estranha descoberta foi feita! As cinzas desses cadáveres inquietos, quando queimadas e moídas criavam uma substância rara. Uma vez consumida, ela podia debilitar e destruir corpo e mente, tornando seu utilizador um escravo do vício, mas havia um outro lado. Ela também permitia alcançar milagres inenarráveis: era possível despertar sentidos adormecidos, obter poderes inimagináveis e até mesmo se tornar consciente do universo. Eles chamaram isso de ASH (cinza), uma droga vendida por uma fortuna e que estabeleceu seu próprio mercado negro, causando discórdia e conflito em toda a região. 

A fonte mais notória de ASH é a Cidade murada de Nassau. Nas ruínas da outrora orgulhosa capital de New Providence, agora existe um gueto de madeira e tendas de lona que abriga os Irmãos da Costa - piratas, rebeldes, ladrões e vagabundos. Eles são aqueles que sobreviveram ao Flagelo e que aprenderam a conviver com ele. Eles não são heróis, são a pior escória que já navegou os sete mares. 

Após o Flagelo o contato com o velho mundo ficou comprometido. Não existe rota segura para a Europa ainda que alguns façam a arriscada travessia. Lord Hamilton, governador da colônia britânica da Jamaica, passou a empregar tripulações piratas para proteger os interesses ingleses. Mas há grande rivalidade e facções cujos agendas colidem de forma violenta. A poderosa Companhia das Índias Ocidentais mantém seus grandes mercantes singrando os mares, escoltados por navios cheios de canhões e mercenários. As Índias Francesas caíram na indolência e na incompetência, dominada por sindicatos criminosos cruéis e cultistas vis. Já o Vice-Reino da Nova Espanha, com capital em La Habana, enriqueceu com o transporte de prata e ash, mas treme sob o olhar atento dos fanáticos da Inquisição. Cada nação dirige seus olhos ávidos e estende sua mão cobiçosa para espremer até a última moeda do novo mundo.

Nas tavernas há boatos sobre cidades perdidas de ouro engolidas pela selva. Lendas sobre mapas que levam até tesouros ocultos e riqueza jamais sonhada. Os ambiciosos arriscam suas vidas em expedições à Península de Yucatán e a Flórida; mergulham nas florestas escuras repletas de doenças, nativos hostis e horrores desconhecidos. Buscam por templos em ruína repletos de jóias que comprariam a alma de mil homens. Por vezes alguém fica rico alimentando o sonho, mas a grande maioria jamais retorna. 

Em todo canto, em cada viela e beco sórdido, cultistas espreitam, adorando seus deuses imundos, os Grandes Antigos, conforme descrito nas páginas terríveis do Necronomicon. Eles saúdam seu tenebroso Profeta - O Deus Afogado. A cada Solstício conduzem festivais e orgias para celebrar o Flagelo ansiando para que "O Fim dos Dias" chegue de uma vez. Quando as bestas das profundezas virão ao mundo dos homens para arrastá-los até o Abismo. E quem é capaz de dizer que esse dia não está cada vez mais próximo? 

Bem-vindo, marujo, ao Caribe Sombrio!

O Caribe Sombrio é o cenário de Pirate Borg. Publicado pela Limithron por intermédio da Free League após uma campanha bem-sucedida no Kickstarter, a ambientação é baseado em Mörk Borg, o RPG sueco estilo Old School Renaissance. Mörk Borg é notório por seu estilo e layout Artpunk, com cores vibrantes e arte bizarra que cria uma identidade própria. 

Pirate Borg tem uma apresentação menos agressiva com cores e layout mais suaves, mas isso não significa que esse seja um livro convencional. Ele é inegavelmente um derivado à altura do selo BÖRG transbordando com violência, bizarrice e muito gore. É algo que você não espera encontrar num cenário limpinho de D&D ou Pathfinder. Aqui tudo é sujo, doentio e brutal.

Como todos os produtos BORG, espere encontrar muitas tabelas aleatórias e rolamentos para definir características dos personagens. Em Pirate Borg, no entanto isso é levado ao extremo! Quase tudo depende do que os dados (e o destino) ditarem. O livro é recheado de tabelas de informações e listas que são úteis para familiarizar o leitor com o clima caótico do jogo.

Um elemento que Pirate Borg compartilha com Mörk Borg é que ambos são RPGs apocalípticos em que o mundo está escorregando na direção de um fim inevitável. A desgraça paira no futuro de todos, não como uma possibilidade, mas como uma certeza. Os habitantes do Caribe Sombrio sabem que tudo está chegando ao fim. Há uma sensação de destruição iminente e desesperança que permeia tudo e todos. O que se pode fazer é viver intensamente antes que tudo acabe. É claro, o Narrador é livre para escolher o que quer usar da ambientação e ignorar o que não agrada, mas a atmosfera é sempre pessimista.

Em Pirate Borg, os Personagens Jogadores são membros de uma tripulação, aventurando-se pelo Caribe Sombrio em busca de fama, riqueza ou algo mais soturno. Cada personagem é definido por uma lista de Habilidades, Classe, equipamento e um delicioso atributo chamado Sorte dos Diabos. As cinco Habilidades são Força, Agilidade, Presença, Resistência e Espírito, cada uma classificada entre "-3" e "+3". Para fazer um rolamento se usa o d20 e se soma o valor da Habilidade, o número alvo geralmente é 12, mas pode variar para mais ou menos. A mecânica é simples, um requisito essencial nesse tipo de narrativa Old School.

Existem seis Classes básicas e mais duas classes opcionais. Cada uma fornece ajustes para Habilidades, Pontos de Vida e Sorte dos Diabos inicial. 

O Bruto é um lutador corpo a corpo furioso que obtém uma arma confiável como uma "Âncora de Bronze" ou "Arpão de Chifre". Ele é mestre nessa arma e causa com ela enorme dano e devastação. O Rapscallion é um patife furtivo e cruel, que utiliza um baralho de cartas de onde extrai suas habilidades. Ele começa com uma única especialidade, como por exemplo "Ladrão" ou "Bastardo Furtivo", mas vai acumulando especializações únicas que o tornam um canalha único. Já o "Bucaneiro" é um atirador de elite e caçador de tesouros, além de um rastreador habilidoso. Suas façanhas estão ligadas ao uso de armas de fogo, explosivos e pólvora negra. O Swashbuckler é um lutador impetuoso, que também pode ser um esgrimista e líder tático. Sua língua ferina corta tanto quanto a lâmina de sua espada e suas provocações causam ferimentos profundos. O Zelota é uma espécie de sacerdote com orações de Cura, Maldição e Proteção Sagrada, que são aprendidas aleatoriamente e podem ser lançadas várias vezes ao dia. Ele é a contraparte do Feiticeiro que extrai poder de espíritos sobrenaturais e fantasmas para conjurar magias como Possessão Espiritual, Clarividência e Ressuscitar os Mortos.

As classes opcionais ficam a critério do mestre aceitar o não. A Alma Assombrada é um fantasma, um condutor para espíritos inquietos ou mesmo um zumbi ou esqueleto que reteve sua consciência apesar da morte. Cada modalidade de tormento fornece um benefício e uma penalidade. Por exemplo, espíritos inquietos se comunicam constantemente com o condutor para conceder um Ritual Arcano aleatório que deve ser conjurado antes do amanhecer do dia seguinte ou o condutor sofre dano. Mas isso não é tudo! Ainda é possível personificar uma criatura incomum do Caribe Sombrio, seja uma sereia, um Tritão, um mutante aquático ou um animal com inteligência humana. Embora sejam classes opcionais, elas estão mais para Raças ou Espécies do que realmente ocupações. 

Há uma questão de desbalanceamento flagrante aqui, mas o jogo não parece se importar muito com isso! Algumas classes são muito mais poderosas que outras, alguns poderes são bem mais úteis e com efeitos muito maiores. Se você não gosta disso, a atitude do jogo é dizer "azar o seu"! Cabe salientar que essa não é uma ambientação para os aficionados do combo, já que muito do que seu personagem será capaz de fazer será proveniente do que o dado decidiu num rolamento aleatório. Então relaxe e deixe as coisas correrem...

Para criar um personagem, um jogador rola o valor de suas Habilidades, adiciona os modificadores de classe, sorteia o equipamento e a Sorte dos Diabos inicial. O equipamento inclui arma, roupa e um chapéu que define o estilo do personagem. Tabelas adicionais fornecem antecedentes, defeitos, marcas físicas, idiossincrasias, incidentes prévios, condições infelizes e coisas importantes que seu personagem possui. O narrador pode exigir rolamentos nestas tabelas ou permitir que o grupo escolha o que achar mais interessante. O ideal, no entanto é que as tabelas sejam usadas para construir o personagem de maneira mais aleatória possível. Isso é um atrativo extra dentro de Pirate Borg, o fato de nunca saber no que vai resultar seus rolamentos.

Mecanicamente Pirate Borg mantém tudo muito simples e fácil, como acontece com a matriz original, o Mörk Borg. O jogo flui sem grandes preocupações sobre tática e estratégia. É claro, as regras contemplam elementos para adequar o tema de pirataria o que funciona muito bem. Os testes são sempre realizados pelo jogador e o mestre raramente irá encostar nos dados, deixando os personagens atacar e se defender conforme a ação vai se desenrolando. A mecânica envolve um rolamento de d20, soma ou subtração de valores e a tentativa de chegar a um número alvo. Tudo é simples e ágil tornando os combates ligeiros e mortais. 

Armaduras ajudam a diminuir o dano e permitem a sobrevivência do personagem atingido ou ferido. No entanto todas armas e proteções são passíveis de desgaste que com o tempo vai torná-las inúteis. É interessante portanto mandar consertar o equipamento entre uma aventura e outra para evitar surpresas desagradáveis. Os sucessos críticos são devastadores permitindo infligir maior dano ou contra-atacar se a defesa é especialmente bem sucedida. Vale lembrar que os Pontos de Vida são poucos e que um ataque bem sucedido pode reduzir os pontos a zero o que causa um problema físico duradouro. Se os pontos caírem a negativo o personagem está morto. 

Para ajudar na sobrevivência do grupo felizmente existe a Sorte dos Diabos. Cada Classe recebe uma quantidade diferente dessa habilidade heroica. Os pontos podem ser gastos para infligir o máximo de dano possível em um ataque bem sucedido, para rolar novamente um teste em que se falhou, diminuir dificuldade, neutralizar um dano crítico sofrido ou mais corriqueiramente diminuir o dano para permitir ao seu pirata sobreviver a um ataque potencialmente mortal. A Sorte dos Diabos é a habilidade que permite aos heróis sobreviver enquanto os coadjuvantes tombam ao seu redor, mas quando ela acabar as coisas podem ficar muito feias.

Os Personagens também podem ter acesso a Rituais Arcanos estranhos e com efeitos inesperados que permitem conjurar animais espectrais, aterrorizar pessoas e fazer com que elas se afoguem com água salgada em seus pulmões. Existem Rituais Arcanos realmente desagradáveis ​​na lista. Por exemplo, a "Marca Negra", literalmente marca o alvo para morrer, enquanto "Liberte o Kraken" invoca uma monstruosidade marinha de proporções colossais. Se um Personagem falha ao realizar um ritual precisará fazer um rolamento numa tabela de revés mágico. Nesse caso, espere um efeito adverso indesejado. Outras modalidades de magia em Pirate Borg incluem tabelas que lidam com alquimia e uma lista de Relíquias Antigas pra lá de esquisitas, como a "Concha do Abismo", que permite ao portador fazer uma pergunta a um cadáver ou "Escamas de Sereia" que, quando engolidas concedem a habilidade de respirar debaixo d'água por algumas horas.

Sendo esse um RPG de pirataria não faltam regras para navios e combate naval. Cada embarcação possui uma identidade propria, com habilidades assim como personagens. Elas tem atributos como Integridade, Casco, Velocidade, Velas, Armas Pequenas, Aríete, Tripulação e Carga. A Integridade são os Pontos de Vida  do navio e da tripulação; Casco, é sua armadura; Velocidade o seu deslocamento em alto mar, Velas a capacidade de responder às condições climáticas, Armas Pequenas, o dano causado por armas leves e mosquetes; Aríete, o dano causado em uma ação de investida; e Tripulação, o número mínimo e máximo de membros que o navio pode transportar. O combate naval é conduzido em rodadas de trinta segundos, e nesse tempo, o capitão move o navio, os Personagens Jogadores realizam ações, e a Tripulação cumpre ordens como "Disparar", "Encher as Velas", "Preparar Abordagem" e assim por diante. É possível melhorar o navio com bônus proveniente de oficiais qualificados contratados para a função: Capitão, Contramestre, Feiticeiro ou Sacerdote de Convés, sao apenas algumas opções. As regras cobrem habilidade da tripulação, a moral, a carga levada, os reparos e, opcionalmente o clima. Ironicamente o que sobra em simplicidade no combate normal, tornasse meio complexo na batalha naval.

Uma seção anterior fornece uma lista de "canções de marinheiro" para elevar o moral da tripulação e ganhar benefícios condizentes. Além de tabelas para destroços e restos, encontros e eventos náuticos, há uma grande variedade de embarcações que vão de simples jangadas, botes e canoas a galeões, navios de guerra e vasos navais de linha. Somado a isso estão imensas fortalezas, navios fantasma, uma embarcação toda coberta de ossos e outra trazida das profundezas para navegar uma vez mais. A lista é bem interessante e abrangente concedendo várias opções ao narrador.

O bestiário é dividido em sessões sobre criaturas e animais típicos do Caribe Escuro. Somado a isso temos os mortos vivos que possuem um papel destacado, como os oponentes principais da ambientação. Temos esqueletos e zumbis de vários tipos específicos, fantasmas, espectros, vampiro e até Liches. Não faltam também animais mortos vivos e abominações. Os Mythos de Cthulhu estao representados na forma dos abissais, dos Shoggoth e outros seres multitentaculares.

De um modo geral, o livro fornece uma boa quantidade e qualidade de bestas e feras para serem incorporadas às aventuras, uma ótima seleção de criaturas, altamente temática e divertida.

Além de tabelas para gerar navios aleatórios, mapas de tesouros, enigmas, ilhas desconhecidas, trabalhos e missões, Pirate Borg inclui um mini cenário sandbox para os Personagens explorarem. Com o sugestivo nome "A Maldição do Pontal do Esqueleto" a história descreve uma típica ilha do Caribe Escuro, seus principais locais e NPCs importantes, ameaças e ganchos. A trama central envolve o desaparecimento da filha do governador local e uma recompensa para quem encontrá-la e devolvê-la em segurança. Mas é claro, as coisas não são tão simples pois há lugares assombrados, lendas, grupos interessados no que acontece na ilha e é claro, a tal Maldição do título. Cada localidade da Ilha, de Coral Town, ao antigo farol, passando por um castelo assombrado e o covil de uma bruxa no pântano são descritos detalhadamente para poderem ser usados. Há ainda masmorras para explorar e lugares para conhecer, o que torna "Pontal do Esqueleto" uma bela campanha introdutória. 

Fisicamente, Pirate Borg é um livro compacto e bastante completo. Ele possui uma miscelânea de tabelas e opções que podem ser deixadas ao alcance dos olhos para referencia. Como acontece em outros títulos Borg, a disposição do texto é o layout é um pouco caótico com fontes variadas e caixas de texto que lembram uma colagem. Pode levar um tempo para se familiarizar com esse estilo, mas não é nada comprometedor. Embora haja um índice, um segundo, dedicado às muitas tabelas do livro, teria sido bastante útil. Eu gostei da arte simples que casa muito bem com a ambientação. 

O livro não oferece um capítulo a respeito de conselhos para o Mestre do Jogo, ou qualquer coisa nesse sentido. Para alguns mestres menos experientes isso poderia ser útil. De toda forma, Pirate Borg é uma ambientação bastante aberta e acessível, cujo gênero será familiar para a maioria que assistiu a franquia de sucesso Piratas do Caribe. Ela não depende de prévio conhecimento historico da Era de Ouro da Pirataria embora isso possa conceder maior profundidade ao jogo. 

Pirate Borg é mais "simpático" do que Mork Borg, no sentido de que há mais espaço para ação, exploração e sucesso nas missões. Ainda que o Apocalipse esteja ali adiante, ele não paira sobre eles feito uma nuvem negra lembrando que tudo é em vão - como ocorre em Mork Borg.

Pirate Borg não é apenas fácil de jogar, mas também fácil de entender, o que o torna uma ótima opção para jogadores iniciantes. Como ambientação ele oferece suporte a tudo o que um mestre precisará para construir uma boa história de Pirataria e Horror num Caribe fantástico.

Não há previsão para seu lançamento em português, mas com o recente sucesso do Financiamento Coletivo de Mork Borg, é possível que vejamos esse livro em breve aportando em terras brasileiras. Vamos torcer, sem dúvida seria um ótimo título.


domingo, 15 de dezembro de 2024

Os Outros Árabes Loucos II - Cultistas e feiticeiros do Mythos no Oriente Médio

Continuando nossa série sobre outros feiticeiros do oriente Médio além de Abdul Al-Hazred.

IBN-GHAZI


Ibn-Ghazi é um nome conhecido nos círculos místicos. Muitos estudiosos das artes arcanas estão familiarizados com sua maior criação, a famosa poeira que permite tornar visível seres que normalmente são imperceptíveis para os nossos sentidos.

O feiticeiro tem a reputação de ter sido um magnífico alquimista, conhecendo segredos ancestrais da arte da transmutação de metais e destilação de poções, concatenações e filtros com propriedades mágicas. Sabe-se que ele foi atraído pelo conhecimento de Damasco onde se reuniam os maiores sábios do mundo Islâmico. É provável, contudo, que Ibn-Ghazi tenha nascido nas terras da Arábia no século sete.

O árabe se notabilizou pelo estudo das ciências físicas e da matemática. Acredita-se que ele seja o autor de numerosos tratados científicos que atestam seu brilhantismo em diversos campos da ciência. Supõe-se que ele tenha descoberto os Mythos de Cthulhu no período em que esteve em Damasco. Lá ele integrou sociedades secretas e possivelmente cultos devotados a Hastur, Cthugha e Shub-Niggurath

A reputação de Ibn-Ghazi é celebrada por Abdul al-Hazred no Al-Azif que possui um capítulo descrevendo a criação e uso da poeira que leva seu nome. Hazred comenta que Ibn-Ghazi teve a motivação de criar a famosa substância após uma experiência aterrorizante com um demônio invisível conjurado das estrelas - possivelmente um Vampiro Estelar.  O aperfeiçoamento da fórmula consumiu quase duas décadas de sua vida mas rendeu uma forma confiável de detectar e evidenciar a presença de certas criaturas.

A morte de Ibn-Ghazi é cercada de mistério e horror. 

No Al-Azif, Al-Hazred afirma que durante um ritual, Ibn-Ghazi obteve uma visão apocalíptica sobre o fim da humanidade. Os deuses negros negaram compreensão sobre o que ele havia contemplado e o feiticeiro os desafiou. Por sua ousadia, ele foi punido com grande severidade pelos seus companheiros de culto. Sua língua foi arrancada, sua boca costurada e finalmente sua cabeça foi cortada. Em outra versão de seu terrível destino, Ibn-Ghazi teria sido lançado nos recessos mais profundos das soturnas Câmaras de Zin onde habitam os nefastos Shoggoth.    

IBN-SCHACABAO


Conhecido como o Herege de Bagdá, Ibn-Shacabao foi um dos teóricos do Mythos mais importantes de sua época. Ele foi superado apenas por Abdul Al-Hazred seu aprendiz, que estudou consigo por um período de pelo menos cinco anos na capital da Mesopotâmia.

Shacabao, chamado também de Shayk Abol (Herdeiro de Abol) e Ibn-Muchacab (Filho daquele que Habita  Vazio) é citado em pelo menos quatro passagens do Al-Azif. Hazred afirma que seu mestre obteve a maior parte de seu conhecimento esotérico através de conversas com Djins que respondiam aos seus apelos e se manifestavam no vazio do deserto. Ele também se comunicava com entidades superiores utilizando um estranho artefato semelhante a uma lâmpada mística. Alguns teóricos acreditam que Ibn-Shacabao teve seu corpo cooptado por um ser da Grande Raça de Yith que o habitou com sua mente por anos. Nesse período ele teria vagado pelas terras do Oriente Médio empreendendo jornadas até a Cidadela sem Nome e ao misterioso Oásis de Kara-Sher. Ele teria realizado um poderoso ritual de invocação no Rub al Khali que lhe permitiu convocar o próprio Yog-Sothoth para uma audiência. Outra façanha notável foi resgatar um artefato da Raça Ancestral escondido em uma ruína da Caldéia.

Os críticos de Ibn-Shacabao o consideravam um "fanfarrão" em face das façanhas que ele próprio propagava no final de sua vida. Biógrafos afirmam que ele tinha mais de 100 anos de idade quando finalmente expirou em sua morada em Bagdá. As últimas palavras que passaram pelos seus lábios foram uma oração blasfema aos Grandes Antigos. Após sua morte o sol teria sido coberto em um súbito eclipse que causou grande consternação e terror na capital. 

Há grande debate à respeito do destino da lendária biblioteca pertencente a Ibn-Shacabao que possuía uma infinidade de tomos extremamente valiosos e raros. A coleção teria sido roubada por um de seus ajudantes logo após sua morte. O aprendiz ignorou as instruções de seu mestre de queimar os documentos e ao invés disso, carregou consigo inúmeros pergaminhos. Estes teriam sido vendidos para poderosos feiticeiros no Oriente Médio. O aprendiz, no entanto, foi vítima de uma terrível maldição que arruinou seu corpo lentamente - supostamente a temida Necrosis, o "Mal dos Feiticeiros". Abdul Al-Hazred teria recuperado alguns destes pergaminhos subtraídos que foram incorporados a sua coleção particular em Damasco.

Para saber mais:

Sobre Necrosis - 

Sobre Abdul Al-Hazred - 


Sobre o Necronomicon

Shoggoth

A Cidade sem Nome

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Os Outros Arabes Loucos - feiticeiros dos Mythos no Oriente Médio

Os conhecedores dos Mythos de Cthulhu sabem muito bem quem é o infame Abdul Al-Hazred

Apesar desse personagem peculiar jamais ter aparecido em pessoa nas histórias de seu criador H.P. Lovecraft, é inquestionável que ele seja considerado um dos mais importantes. O Velho Abdul, que também responde pela alcunha de "O Árabe Louco" não é outro senão o autor do igualmente infame Al-Azif. Por sua vez, esse tratado de magia negra e feitiçaria, considerado como o depositário de todo conhecimento blasfemo dos Mythos ancestrais, entraria para a história através de seu título em grego - Necrononicom.

Do momento em que foi citado pela primeira vez por Lovecraft no conto The Hound em 1922, Al-Hazred e seu livro profano se tornaram nomes associados a toda mitologia lovecraftiana. É tamanha a conexão que Al-Hazred se converteu numa espécie de porta-voz do Mythos, o sujeito que detinha maior saber sobre esse terrível tema, e quem o difundiu através dos séculos vindouros. No cânon de Lovecraft, quando o árabe louco deitou sua pena sobre as páginas criando seu tomo, o mundo jamais seria o mesmo. Quanto mais se tentou deter esse conhecimento, mais ele se espalhou - trazendo com ele loucura.

Entretanto, embora Al-Hazred seja com certeza o mais conhecido Profeta do Mythos ele seguramente não é o único. Ele sequer é o único "árabe louco" associado ao Mythos.

Há outros personagens fascinantes ligados ao estudo soturno dos Deuses e Entidades Ancestrais.  Alguns se notabilizaram pelos feitiços que levam seus nomes ou pelos tomos que escreveram. Alguns são bastante obscuros, reconhecidos por apenas alguns poucos estudiosos do Mythos, que encontraram textos com suas obras e fragmentos de sua pérfida biografia.

Nesta série de artigos seremos apresentados a alguns destes "árabes loucos": pensadores, teóricos e feiticeiros que detinham um saber atroz.

BARZAI


Chamado de "O Grande" pelas suas muitas façanhas místicas, Barzai nasceu em um pequeno vilarejo da Arábia Saudita em meados do século oitavo da era cristã. Membro de uma família de posses, ele era o quarto filho na linha sucessória, o que lhe permitiu devotar seu tempo para atividades acadêmicas que o levaram a estudar na prestigiosa Universidade de Al-Azhar. Há indícios de que Barzai chegou a estudar teologia e se graduar em filosofia islâmica, até que em algum momento sua atenção foi atraída para disciplinas menos ortodoxas.

Supõe-se que em algum momento durante seus estudos, Barzai tomou conhecimento das práticas profanas de feiticeiros que operavam nos bastidores da universidade. Não se sabe quem instruiu Barzai no universo do Mythos, mas sabe-se que sua ascensão foi meteórica, tão notável que aos 40 anos ele havia se tornado uma espécie de mestre entre os seus pares. O título "O Grande" lhe foi atribuído dentro dessa mesma Sociedade Arcana clandestina quando ele se converteu em seu líder.

A exemplo do célebre Al-Hazred (nascido quase um século depois), Barzai não foi um cultista devotado a Entidades ancestrais, embora tivesse interesse nos Deuses Exteriores Yog-Sothoth e Azathoth. Ele leu os Manuscritos Pnakóticos e os Sete Livros Crípticos de Hsan em suas versões originais e escreveu dissertações sobre eles. Barzai via os Mythos como um instrumento para obter poder e influência na sociedade do período e foi um mestre nisso. Um talentoso arcanista, Barzai forjou portentosos feitiços, sendo o mais famoso aquele conhecido como Cimitarra de Barzai que possui um capítulo no próprio Necronomicon. 

Com idade avançada, Barzai se retirou do Mundo Desperto para a Terra dos Sonhos radicando-se na cidade de Ulthar próximo do Rio Skai. Lá ele expandiu seu conhecimento arcano investigando tomos que existiam apenas na dimensão onírica. Seu desejo por saber proibido, no entanto foi a sua perdição.  Barzai empreendeu uma árdua jornada rumo ao topo do Monte Hatheg-Kla, a suposta morada dos deuses e onde Eles se reuniam para executar sua dança. Barzai jamais retornou dessa expedição, mas suas anotações foram reunidas por Atal, seu aprendiz, que nos anos posteriores copiou suas palavras numa coleção de pergaminhos que só existe no lendário Templo dos Antigos Deuses de Ulthar. Muitos feiticeiros tentaram obter acesso a esses documentos, mas até onde se sabe, Atal, já em idade venerável raramente concede aos postulantes o direito de folhear essas páginas.

Barzai é conhecido pelos estudiosos do Mythos graças ao já mencionado feitiço da Cimitarra de Barzai que cria uma espada de bronze usada para inscrever símbolos mágicos e afastar espíritos malignos. Abdul Al-Hazred considerava Barzai um dos maiores feiticeiros do Oriente Médio.     

AKBAR IBN-BADAWI


Pouco se sabe à respeito de Akbar ibn-Badawi, além do que foi reunido pelos biógrafos que preservaram sua obra mais famosa o tratado Kitab Rasul Al-Akbarin (O Livro do Emissário Akbar). Atualmente sabe-se da existência de apenas três destes tomos guardados cuidadosamente em bibliotecas do Mundo Islâmico e tratados como livros de fábulas e gnosticismo medieval. É possível, entretanto que outras cópias constem em coleções particulares ou em prateleiras de instituições sob nomes falsos.

Diferente do que aconteceu com outros acadêmicos islâmicos que se debruçaram sobre o indigesto tema do Mythos, o Rasul Al-Akbarin sofreu menos censura e perseguição que outros livros, como o próprio Al-Azif cujas cópias foram sistematicamente destruídas. É possível que o tratado tenha sobrevivido graças a providenciais censuras realizadas pelos assistentes que compilaram versões mais suavizadas do tomo. Acredita-se na existência de volumes completos que não poupam o leitor de detalhes gravosos sobre os Grandes Antigos, em especial o obscuro Deus Huitloxopetl.

Um dos volumes remanescentes, presente no acervo da Biblioteca na Universidade al-Qarawiyyin em Fez, Marrocos fala brevemente sobre a vida de Ibn-Badawi num trecho ausente em outras edições. O autor teria nascido em algum ponto do Norte da África no século XIII na época sob  controle do Mundo Islâmico. A biografia atesta que ele estudou sob a tutela de renomados filósofos muçulmanos do período. Há insinuações de que ibn-Badawi teria lecionado no Cairo onde teve contato com fragmentos do Al-Azif que sobreviveram aos expurgos teocráticos dos imanes. Ele teria traduzido alguns capítulos e incorporado trechos ao seu livro, sem citar a fonte original.

Numa esfera pessoal, Akbar ibn-Badawi teria sido perseguido por autoridades religiosas e preso no Egito sob a acusação de heresia. Ele foi libertado das masmorras cairitas graças a simpatizantes que o levaram para Damasco onde ele se estabeleceu até seu falecimento. O biógrafo assume que ele tenha se envolvido em uma tentativa de reunir partes perdidas do Al-Azif. Ele teria auxiliado no envio do livro para a Grécia onde o Compêndio Esotérico foi traduzido por Theodorus Philletas para o idioma helênico sob o título de Necronomicon.

Rumores sobre ibn-Badawi mencionam que ele possuía um estranho dom sensitivo que lhe permitia contatar os mortos. De fato, os boatos dão conta de que ele ouvia as palavras dos mortos sendo sussurradas para que ele as copiasse laboriosamente. Um dos fantasmas envolvidos seria o do próprio Abdul Al-Hazred, morto 200 anos antes em Damasco. Não há como atestar se essa informação é verdadeira ou mera invenção.

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Mas há outros feiticeiros, bruxos e estudiosos do Mythos como descobriremos nos próximos artigos. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Louco feito um Chapeleiro - Uma inesperada profissão de altíssimo risco

Quando se pensa em trabalhos perigosos as pessoas quase sempre lembram de soldados que arriscam suas vidas em campos de batalha. Lembram também de médicos e profissionais de saúde que se arriscam para tratar de vítimas de doenças contagiosas e letais. Há ainda os que vivem em alto mar, que exploram as profundezas oceânicas ou que voam em foguetes rumo ao espaço.

Quando se fala em trabalhos perigosos nos dias atuais, dificilmente alguém citaria o Milliner, uma profissão que desapareceu ao longo das últimas décadas. Um Milliner era basicamente alguém que trabalhava no ramo da confecção de chapéus - em bom português, um chapeleiro.

Pode ser uma surpresa para muitas pessoas, entretanto a profissão de chapeleiro era considerada tão perigosa no século XIX que gerou até mesmo um ditado: "mad as a hatter" (algo como "louco feito um chapeleiro"). A expressão era usada para se referia a pessoas que aceitavam fazer trabalhos arriscados por pequenas recompensas. 

Mas por que esse aparentemente tranquilo trabalho era considerado uma profissão de alto risco? 

A resposta carece de certo contexto histórico.

No século XV a sociedade europeia adotou um novo código de vestimenta que incluía uma peça que se tornou comum em todas as camadas sociais. Do mais bem nascido nobre, ao mercador e mais simples aldeão, todos queriam adornar suas cabeças com chapéus. Essa peça de vestimenta se tornou tão difundida na Europa e posteriormente no restante do mundo que era praticamente impossível uma pessoa sair de casa sem cobrir sua cabeça. 

No início os chapéus eram caros e difíceis de serem obtidos, mas dada a demanda do artigo logo começaram a surgir chapéus de todos os preços. Quando as nações europeias se lançaram ao mar e dominaram colônias nas Américas, isso deu ao chapéu um impulso notável. As pessoas desejavam chapéus de pele de animais do novo mundo. Não é exagero dizer que uma indústria inteira nasceu com essa necessidade.

Animais eram abatidos nas Américas e suas peles arrancadas e enviadas para a Europa para serem curtidas, tratadas, preparadas e finalmente moldadas no formato de chapéus. Todo esse processo era realizado pelo Milliner, o chapeleiro.

Ok, mas o que há de tão perigoso nisso?

Bem, com a demanda para uma produção cada vez maior, era importante confeccionar os chapéus o mais rápido possível. Um método rápido que permitia separar o pelo da pele dos animais envolvia mergulhar a matéria prima em uma banheira com produtos químicos. Isso reduzia o tempo consideravelmente, mas o principal ingrediente para essa mistura era o mercúrio.

Acontece que o mercúrio emana um vapor altamente tóxico que se inalado de forma recorrente acaba causando uma doença chamada eretismo.

O eretismo é uma condição grave que nos estagios iniciais causa apatia, irritação, depressão e insegurança. Os efeitos são em sua maioria neurológicos, com a exposição frequente a pessoa exposta começa a apresentar um agravamento e efeitos colaterais cada vez mais complexos.

A exposição aos vapores do mercurio pode provocar tremedeira, tics nervosos, euforia, e finalmente delírios. Os chapeleiros passavam horas expostos a grandes tanques com mercurio, mexiam nas peças ensopadas e manipulavam tudo aquilo sem qualquer proteção. Poucos meses nessa atividade podiam ser o bastante para causar o eretismo.

Não era raro que os Milliner manifestassem sintomas bizarros. Alguns apresentavam tremores que os impediam de trabalhar, tinham tremores faciais que quase os deformavam, ouviam coisas, sentiam gostos e cheiros estranhos e chegavam a experimentar alucinações absolutamente reais. Em Londres no ano de 1786 um famoso Milliner foi preso depois de assassinar a esposa e seus dois filhos afogando-os em uma tina em sua oficina. O incidente causou enorme comoção e consolidou a relação entre os chapeleiros e a loucura.

Muitos chapeleiro começaram a ser vistos como pessoas peculiares e dadas a comportamento excêntrico. Não se  entendia exatamente o que causava aquilo e embora muitos suspeitassem do Vapor de Mercúrio essa era apenas uma suposição que não justificava sua substituição. 

As pessoas definiam o Eretismo como o "Mal dos Chapeleiros" e logo a expressão "louco feito um Chapeleiro" acabou pegando. Estima-se que um em cada quatro Milner acabava desenvolvendo algum grau de eretismo, sendo que muitos terminavam seus dias trancafiados em asilos ou manicômios dado seu estado mental deteriorado. O Eretismo avançado não tinha cura e mesmo se afastando do trabalho insalubre as pessoas continuavam manifestando a doença.

No final do século XIX um estudo realizado pela Academia Médica de Paris determinou a relação direta existente entre os vapores do mercúrio e a misteriosa loucura dos chapeleiros. Um novo composto químico baseado em ácido hidroclorídrico passou a ser empregado em substituição ao mercúrio o que reduziu os riscos da profissão. Curiosamente nos Estados Unidos os profissionais da área substituíram o uso do mercúrio por cloro hidratado no tratamento de peles, somente na década de 1940.

A loucura do Chapeleiro foi imortalizada pelo escritor Lewis Caroll que criou o personagem Chapeleiro Louco para sua obra mais famosa "Alice no País das Maravilhas". Acredita-se que Caroll se inspirou em Theophillus Carter um chapeleiro que vivia perto de sua casa e que era um tipo dado a comportamento peculiar.

É notável como a loucura prolifera nos meios mais insuspeitos, assim como o Caos, ela parece simplesmente surgir onde menos se espera.

sábado, 30 de novembro de 2024

O Culto Heaven's Gate - O aterrorizante ritual de despedida de uma Seita Apocalíptica


Os cultos sempre pairaram à margem das crenças religiosas. Sempre houve aqueles para os quais as doutrinas estabelecidas não respondiam a todas as perguntas. Na ânsia de obter respostas para perguntas fundamentais, os cultos não raramente dão uma guinada acentuada para a bizarrice, abraçando crenças que muitos podem achar questionáveis ​​na melhor das hipóteses, absurdas na pior. E tudo fica ainda mais sombrio quando há mortes envolvidas. Aqui vamos analisar um dos mais infames cultos da história moderna o Heaven's Gate (Portal do Paraíso). Esse foi um grupo de indivíduos devotados a OVNIs, que acabaram cometendo um horrendo suicídio na esteira de suas crenças bizarras.

O Culto nasceu de um encontro bastante casual entre seus dois membros fundadores. 

Tudo começou no inverno de 1972 quando um homem chamado Marshall Applewhite se encontrava desiludido com sua vida. Ele havia acabado de ser despedido de seu emprego como professor na Universidade Thomas, em Houston devido a um envolvimento com um estudante do sexo masculino. Marshall estava sem sorte, confuso e sem rumo para sua vida. Conforme ele próprio contou mais tarde, chegava a contemplar dar cabo da própria existência. Certo dia ele foi encontrar um amigo doente em um hospital e lá conheceu uma enfermeira chamada Bonnie Nettles. Marshall sentiu uma afinidade imediata por Bonnie e disse a ela que estava convencido de que eles haviam se conhecido no passado - talvez em outra vida. Longe de achar aquilo estranho, a enfermeira Nettles levaria o comentário muito à serio. Uma entusiasta de varias crenças, Neetles contou que havia sido informada por "seres superiores" de que encontraria um homem com quem estabeleceria grande conexão e que juntos eles desempenhariam uma missão divina. Foi basicamente amor à primeira vista.

Nos próximos meses, Applewhite alegaria experimentar uma sucessão de sonhos e visões vívidas que o instruíam sobre  que deveria ser feito. Nettles tomou isso como um sinal da profecia que havia sido predita a ela. O fato de Nettles ser casada na época não parece tê-la desencorajado quando ela embarcou em um retiro de 6 meses com Applewhite, durante o qual eles leram extensivamente sobre teologia, filosofia e vida extraterrestre. Também passaram esse período orando, jejuando e engajando-se em longos períodos de meditação transcendental. Através de seus estudos, eles se convenceram de que eles estavam em um nível mais alto de humanidade, e que eles eram as duas testemunhas mencionadas no Livro do Apocalipse, descritas como profetas que morreram, ressuscitaram e foram levados ao céu sobre uma nuvem. Nettles e Applewhite tinham sua própria interpretação a respeito dessa passagem bíblica e acreditavam que a nuvem mencionada na Bíblia era na verdade uma espaçonave alienígena. Eles também estavam destinados a renascer graças a esses seres superiores - na verdade alienígenas.


Influenciados pelas polêmicas teorias dos Deuses Extraterrestres, os dois concluíram que haveria um grande evento que eles chamaram de "A Demonstração". Neste acontecimento, Deus revelaria a sua verdadeira face, a de um ser alienígena super evoluído, que havia semeado a vida na Terra milhares de anos no passado e que nos auxiliaria no próximo degrau da evolução humana.

Apesar de não terem nenhuma prova disso, os dois começaram a fazer planos para realmente realizar seu intento. Eles desejavam entrar em contato com esses alienígenas superiores e comunicar a eles que haviam captado sua mensagem. O primeiro passo seria reunir um grupo de seguidores fiéis. Applewhite e Nettles começaram a buscar indivíduos para formar sua congregação publicando convites para reuniões. Eles diziam aos membros em potencial que eram os porta-vozes dos alienígenas e que planejavam levá-los para um lugar distante no cosmos basicamente associado ao Reino dos Céus. Segundo eles, a Terra estava programada para ser redefinida pois os criadores estavam insatisfeitos com a maneira como a humanidade tratava o planeta. Apenas uns poucos seriam salvos e levados a um “Próximo Nível" para serem aperfeiçoados. Estes seriam os escolhidos para prosseguir quando a raça humano fosse exterminada. 

Embora fossem conceitos bizarros, os ensinamentos de Applewaite e Nettles atraíram alguns seguidores cativados pela narrativa. Estes seguidores foram informados de que, se abraçassem os ensinamentos do grupo, eles se tornariam elegíveis para o "Próximo Nivel". Este envolvia uma mudança no próprio ser, com os candidatos desenvolvendo asas e poderes mentais. Eles se tornariam essencialmente imortais e receberiam um novo e melhorado corpo. 

Através de reuniões eles começaram a atrair um público cada vez maior de interessados nas suas teorias. Eram pessoas de diferentes idades, origem e estilo de vida, incluindo pessoas com boa situação financeira que deixavam tudo para se dedicar de corpo e alma aos ensinamentos d Culto.

Ao entrar no grupo, os seguidores eram obrigados a adotar um estilo de vida extremamente ascético. Eles desistiram de todas as posses e conexões terrenas, incluindo dinheiro, empregos e famílias. Também renunciaram a tendências mais humanas, como sexualidade e sua própria individualidade.  Muitos homens, incluindo o próprio Applewhite, se castraram voluntariamente para escapar das amarras da sexualidade. Eles acreditavam que esta era a única maneira de se condicionarem para a árdua jornada que eventualmente fariam, e isso era entendido como um elevado grau de comprometimento. As mulheres também renegavam ao sexo, aos prazeres mundanos, tudo em troca de uma vida espiritual elevada.


Os membros foram instruídos também sobre a existência de entidades sinistras na Terra que procuravam enganar os humanos através de crenças falsas. Eles usavam de mentiras e tecnologia para impedir as pessoas de evoluir e manter a humanidade em um retrocesso que os impedia de ascender.

Com o tempo, a doutrina do grupo evoluiu e foi sendo refinada para incluir conceitos da Nova Era, como a ideia de que alienígenas poderiam habitar corpos humanos. Também foram incluídas noções sobre viagens astrais, meditação profunda, transes, psiquismo e outras informações. Applewhite e Nettles, que adotaram os pseudônimos "Do" e "Ti", também ajustaram suas próprias histórias, alegando mais tarde que eles não eram apenas representantes terrestres dos alienígenas, mas que abrigavam as almas de seres alienígenas em seus corpos humanos. Da mesma forma que eles acreditavam ter acontecido com Jesus Cristo um dos primeiros alienígenas a viver num corpo mortal. De fato, Applewhite começaria a proclamar ser o sucessor de Jesus.

Em 1979, o grupo desapareceu do radar público, indo para a clandestinidade, movendo-se secretamente pelo país acampando e fugindo da mídia com tanta eficácia que parecia que eles tinham desaparecido da face da terra. Tudo fazia parte de seu plano para alcançar um nível mais alto de existência e se metamorfosear mais completamente em seres superiores. Nettles morreria em 1985, o que estimulou mais algumas mudanças no culto. Até aquele momento, eles acreditavam que seriam fisicamente levados para bordo de um OVNI. Entretanto, quando Nettles morreu de câncer, essa noção foi alterada para comportar a ideia de que apenas a alma ou consciência deles seria transportada, deixando para trás a casca física. Essa ideia foi imediatamente aceita pelos membros. No início da década de 90, a seita estava muito interessada em um projeto chamado “Higher Source”, em que, usando a Internet espalhavam sua ideologia e obtinham dinheiro com apoiadores e simpatizantes. 


Em setembro de 1991, o grupo adotou o nome  "Heaven’s Gate” estabelecendo sua sede numa ampla mansão de 850 m2 na área nobre de Rancho Santa Fe, nos arredores de San Diego, Califórnia. Os recursos financeiros para tudo isso vinha de doações e de um “seguro contra abdução alienígena”, que rendeu uma receita regular para o Culto.

Foi nessa época que o cometa Hale-Bopp que se aproximava da Terra, passou a ser compreendido como um sinal de que o dia do arrebatamento estava próximo. O Culto estava cada vez mais convencido de que no rastro do cometa havia uma espaçonave que finalmente viria buscá-los, e que este era o momento com o qual sonhavam há mais de duas décadas. Applewhite convenceu seus seguidores de que era assim, que eles chegariam ao Próximo Nível.

Na visão de Applewhite, para serem resgatados, eles teriam de abandonar suas formas corpóreas para trás afim de serem transportados em espírito para dentro da espaçonave. A Terra seria destruída por uma súbita mudança no curso do cometa que se chocaria com o planeta. Apenas os membros do Heavens Gate seriam salvos desse Apocalipse. 

Embora suicídio fosse algo contrário as crenças do culto, Applewhite encontrou uma maneira de distorcer isso. Em sua mente, uma vez que seus corpos humanos eram apenas casulos para as almas alienígenas, optar por não ir de encontro a seus irmãos é que seria o verdadeiro “suicídio”. Isso seria negar uma chance de evoluir para o próximo estágio. O raciocínio parece ter sido perfeitamente aceito e tão razoável que eles começaram a fazer arranjos para a partida. 

Eles teriam de realizar um suicídio ritual que lhes permitiria deixar seus corpos físicos de uma vez por todas. 


O site oficial do grupo postou sua derradeira e arrepiante mensagem de encerramento:

"À medida que o Cometa Hale-Bopp se aproxima temos o encerramento do Heaven's Gate. Nossos 22 anos aqui no planeta Terra estão finalmente chegando ao fim com a 'graduação' dos Seguidores para o próximo Nível Evolutivo. Estamos alegremente preparados para deixar 'este mundo' e nos tornar parte da tripulação".

Os dias que antecederam  o arrebatamento foram marcados por muitos preparativos. Os membros gravaram vídeos de sua despedida para os amigos e familiares que eles abandonaram há muito tempo em sua fé distorcida. Em março de 1997 eles deram início a sua jornada final. Um total de 39 membros do grupo vestidos com camisas pretas idênticas e calças de moletom, com braçadeiras que diziam "Heaven's Gate Time Avançado" ingeriram uma dose letal de fenobarbital misturado com suco de maçã. Eles então enrolaram sacos plásticos em volta da cabeça e aguardaram. À medida que cada um morria, seu corpo era colocado com toda reverencia em uma cama beliche e coberto com uma mortalha preta. O ritual foi realizado ao longo de três dias, entre 22 e 25 de março, com três grupos diferentes cada qual instruído para desempenhar uma função. Alguns ficaram encarregados de cuidar dos corpos e enviar as despedidas gravadas em vídeo. Applewhite foi um dos últimos a morrer e, no final, apenas um punhado de membros permaneceu para contar a história.

Em 26 de março de 1997, o Departamento do Xerife do Condado de San Diego obteve permissão para entrar na mansão e encontrou os corpos. A notícia logo se espalhou causando  choque em toda a nação e no mundo. Foi um dos maiores suicídios em massa da história americana. Mais arrepiante era o comportamento alegre e esperançoso que dava o tom das despedidas finais gravadas em videoteipe. Os cultistas demostravam que acreditavam no que estavam pregando. Haveria mais três suicídios dos membros restantes do culto e um suicídio realizado por um homem de 58 anos sem conexão conhecida com o culto. Este deixou para trás uma carta dizendo: "Eu também me juntarei na nave espacial com o Hale-Bopp para estar com aqueles que vieram antes de mim.” 


A notícia foi tão chocante e trágica, que até mesmo o co-descobridor do cometa, o astrônomo Alan Hale, pediu que o Governo se dedicasse a conscientizar as pessoas a respeito de  cultos de isolamento e que exercessem rígida doutrinação. Apesar das ondas de horror e repulsa que o suicídio em massa causou, inacreditavelmente o site Heaven’s Gate permaneceu operacional, administrado por dois membros sobreviventes do grupo e por vários anos assim prosseguiu.

A história do culto Heaven's Gate é um olhar bizarro, aterrorizante e, às vezes, fascinante sobre o sistema de crenças que os cultos podem utilizar para escravizar as mentes de seus seguidores. Que um grupo tão grande de indivíduos perfeitamente sãos possa ser tão absorvido em um sistema de crenças e adotá-lo a ponto de dar cabo voluntariamente das suas próprias vidas é algo aterrorizante. 

No final, 39 pessoas morreram por sua própria escolha, procurando se juntar aos alienígenas que eles tão desesperadamente consideravam reais. Se eles realmente encontraram seu objetivo ou não, pouco importa. Eles deixaram um legado a respeito de um sinistro culto e uma visão sombria da mente humana que provavelmente nós nunca seremos capazes de compreender por inteiro.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Resenha "No Time to Scream" - Três Investigações simples e divertidas para Chamado de Cthulhu


Antologias de cenários curtos para Chamado de Cthulhu não são exatamente uma novidade. Mas acredito que essa preocupação ganhou maior relevância com narradores que não tem muito tempo livre para preparar e desenvolver suas histórias. São Guardiões que gostariam simplesmente de reunir os amigos para uma rodada de jogo rápida e descompromissada.

O suplemento Minions, lançado em 1997 para Chamado de Cthulhu, Quinta Edição talvez tenha sido o primeiro livro com essa proposta. Ele trazia uma dezena de histórias curtas, quase sementes de cenários, que podiam ser jogadas com pouco ou nenhum preparativo. Mais recente, outro suplemento, Gateways to Terror ofereceu uma coleção de cenários curtos especialmente desenhados para eventos e encontros de RPG. Já o ainda mais recente Call of Cthulhu Starter Set expandiu o conceito com uma trinca de cenários clássicos adaptados para serem jogados em sessões com duração de duas ou três horas. O público alvo são os jogadores que não perderam sequer um ponto de sanidade na ambientação e que conhecem pouco (ou quase nada) sobre ela. Essa é uma espécie de porta de entrada para a ambientação.

A proposta é válida! Embora Chamado seja um jogo antigo e popular, sempre há espaço para introduzir novos jogadores e apresentar as maravilhas e horrores de uma investigação lovecraftiana aos neófitos. 

As antologias trazem personagens prontos com suas próprias motivações e que se encaixam bem na história a ser jogada. Não é necessário fazer malabarismos para explicar qual será o papel de cada personagem na trama. Esse formato obviamente funciona melhor para sessões one-shots do que para aventuras sequenciais, ainda que, com algum trabalho, seja possível transformá-los em uma pequena campanha.

Do ponto de vista de estrutura de cenário, eles possuem um padrão. Os jogadores e seus investigadores são apresentados a um mistério, precisam fazer perguntas corretas, obter as pistas necessárias e interpretar o que descobriram. Com base nisso, eles eventualmente serão confrontados por uma ameaça que irá drenar sua Sanidade e colocar suas vidas em risco. 


Em resumo, diversão pura e simples, sem muita firula!

O recém lançado suplemento "No Time to Scream" (Sem Tempo para Gritar, numa tradução livre) é uma espécie de sequência desse estilo de jogo. Os três cenários aqui reunidos foram projetados para serem usados de forma rápida e simples - o Guardião só precisa ler e se familiarizar com a trama. Todo resto, dos Handouts aos personagens, passando pelas dicas, estão ali para serem usados.

Entretanto, em comparação ao Gateways of Terror, os cenários de No Time to Scream são mais elaborados. São também mais longos, com reviravoltas e com a duração estimada de algumas horas, possuindo até mesmo um cronograma aproximado para estabelecer limites de sua extensão. Os cenários funcionam como entretenimento noturno ou de demonstração para convenções. Todos os três são adequados para jogadores novatos, ainda que ofereçam uma experiência agradável também para jogadores veteranos.

A antologia começa com uma visão geral de seus três cenários e uma introdução — ou reintrodução — às regras básicas de Chamado de Cthulhu. Isso é para ajudar o Guardião a apresentar as regras básicas para os jogadores. Embora soe um pouco repetitivo, posso entender que o propósito disso é facilitar o acesso de regras também ao narrador de primeira viagem.


A introdução observa que os cenários contêm textos que podem ser lidos em voz alta e tipos distintos de pistas. Pistas "essenciais" DEVEM ser encontradas como parte da investigação, pois são vitais para sua progressão e não exigem nenhuma verificação de perícia para serem encontradas, enquanto pistas "obscuras" adicionam mais detalhes, mas não são vitais para a conclusão do cenário. Se uma pista "essencial" exigir um teste de perícia, este normalmente determinará quanto tempo o personagem levou para encontrá-lo e se ocorreu alguma complicação para encontrá-la. Essa é a primeira vez que vejo esse pormenor das regras ser tratado de maneira tão direta, já que muitos criticam que a não obtenção de uma pista em Chamado poderia ser um desastre para o jogo na opinião de alguns. De fato, colocar no papel essa "regra tácita" é simplesmente validar o que a maioria dos Guardiões experientes de Chamado fazem desde o início.  

Mas vamos falar dos cenários pois eles são o que realmente importa nesse livro. Cada um é bem estruturado e segue o mesmo formato. Eles começam com conselhos sobre a estrutura do cenário para facilitar a condução do narrador. Em seguida, discute os investigadores prontos para cada cenário, incluindo suas características notáveis ​​e ganchos de interpretação, o que fazer se houver menos de quatro jogadores e o que fazer se houver mais de quatro. Tudo isso antes de mergulhar na essência do cenário em si. Todos os três são muito bem apresentados, claros e fáceis de ler. Além de mapas decentes, cada cenário possui sugestões sobre como cada um dos investigadores reage quando perde sanidade, o que inclui possíveis Ações Involuntárias e Ataques de Loucura.


O primeiro cenário é "A Lonely Thread" (Uma Trama Solitária), se passa na cabana de campo de um velho professor de arqueologia que leciona meio período na Universidade Miskatonic. Um homem culto e simpático, ele regularmente convida hóspedes para visitar sua casa. Infelizmente, logo fica claro que o professor não está bem, está agindo de forma estranha e parece esquecido. É porque ele está doente ou há algo mais acontecendo aqui? Atingir a nota certa de estranheza exige alguma habilidade de interpretação por parte do Guardião e dos jogadores usando as informações que seus personagens tem sobre o professor. O quão cedo os investigadores percebem que há algo errado e o quão cedo eles agem, influenciará o resultado do cenário.

A trama envolve descobertas bizarras, exploração na casa do professor e uma luta contra o tempo. Há a chance de obter pistas que se mostrarão muito valiosas na porção final do cenário e que ensinarão aos jogadores uma valiosa lição: investigadores tem mais chance de sobreviver quando se dedicam a analisar as pistas com calma. O final do cenário provavelmente vai descambar para o lado físico, embora haja opção de tentar escapar ou usar outras opções. No geral, este é um cenário incrivelmente simples, mas deliciosamente divertido de executar.

O segundo cenário, "Bits & Pieces" (Restos e Pedaços), move a ação para Arkham e para o necrotério da cidade. É aqui que os Investigadores se encontrarão em 1927 após receberem o telefonema de um médico que murmura sobre cultistas, ressurreição e a necessidade de purificar o mal pelo fogo. O telefonema reúne um grupo heterogêneo de pessoas, primeiro em seu apartamento e depois no necrotério, onde eles se deparam com uma situação bizarra. Esse cenário tem o mérito de ir direto ao ponto e de beber desavergonhadamente das produções de horror trash com muito, muito gore.


‘Bits & Pieces’ me lembrou muito Reanimator, não o conto de Lovecraft, mas o filme de 1986. Assim como o filme (uma pérola do cine trash) esse cenário é simples, divertido e bobo. Ele consegue combinar horror e situações que beiram o pastelão. Novamente há um limite de tempo no cenário que impõe uma luta contra o relógio para que os investigadores tenham sucesso. Este é um cenário brilhantemente divertido, muito físico e que com certeza será memorável.

O terceiro e último cenário tem o nome "Aurora Blue" (Azul Aurora) e de muitas formas é o mais maduro e complexo dos três cenários em termos de seus temas e ambientação. Isso ocorre porque os jogadores assumem o papel de personagens estigmatizados por sexo ou cor da pele. A trama nos leva ao ano de 1932, quando os jogadores personificando agentes do Departamento de Proibição tentam colocar fim a um estranho caso no Território do Alasca. Logo no início os personagens sabem que estão em uma luta solitária para provar seu valor e que seus superiores os tratam como agentes de segunda classe.

O cenário é muito bem construído e oferece uma ‘Memória’ para cada um dos Investigadores, memória essa desencadeada por uma cena ou encontro específico durante a narrativa. Esses flashbacks são um momento para destacar e personalizar o status de cada Investigador concedendo a eles maior profundidade.

A ameaça central na trama é bastante interessante e o cenário oferece algumas sugestões para disfarçar a natureza da criatura fazendo com que ela seja surpreendente. O texto se refere ao monstro de uma maneira inovadora fornecendo frescor para o uso de uma criatura clássica.


De muitas maneiras, ‘Aurora Blue’ não é um história sutil e irá demandar do Guardião um aproach especial para conduzi-la. O cenário é mais sofisticado do que os anteriores. Os Agentes podem ter sucesso em completar a tarefa que se espera deles mas podem potencialmente tomar atitudes inesperadas. Esse tom de imprevisibilidade torna o cenário bastante curioso.

O livro é completado com dois apêndices e um conjunto de índices. O primeiro apêndice fornece os Recursos para os os três cenários, enquanto o segundo tem as bibliografias dos autores. Os índices ajudam a localizar mais facilmente trechos dos cenários. Fisicamente, No Time to Scream é muito bem apresentado, com mapas decentes e arte de boa qualidade que pode ser mostrada aos jogadores durante o jogo. Os recursos também são bem feitos, em especial uma série de desenhos infantis feitos com giz de cera que fazem parte de Aurora Blue.

O suplemento é uma ótima sequência para Gateways to Terror e se mostra um instrumento útil para jovens Guardiões de Chamado de Cthulhu refinarem seu estilo de narração. Não é exagero apontar este como um dos melhores suplementos de cenários prontos lançados para a sétima edição.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Noites Sangrentas dos Umezzi - Os terríveis Feiticeiros da Tanzânia

Continuando o artigo a repeito de Feitiçaria na África.

A Nigéria não é a única nação africana assolada por uma epidemia supersticiosa de feitiçaria tribal.

Outro país que recentemente passou a enfrentar profundos problemas sócio-culturais relacionados ao tema é a Tanzânia. Localizada no sudeste do continente, esse extenso país conquistou sua independência em 1964 após uma longa história de colonização nas mãos de portugueses, alemães e britânicos. A Tanzânia é um país com múltiplas fronteiras e com pluralidade de culturas, possuindo cerca de 40 tribos fundadoras originais, cada qual com suas próprias tradições e costumes.

O misticismo sempre foi bastante difundido na Tanzânia, sobretudo na região de Tanganica, originalmente uma colônia portuguesa, posteriormente reclamada pela Alemanha no século XIX. Desde o início da ocupação colonial, os costumes locais chamavam bastante a atenção dos europeus. Muitos deles se sentiam intimidados pela ação de líderes tribais que impunham seu poder amparado no terror que conseguiam instilar nos nativos. Esses líderes tribais, não raramente desempenhavam o papel de feiticeiros com amplos poderes. Os nativos que serviam aos colonos brancos ou que simpatizavam com eles, eram perseguidos com violência. A brutal perseguição a nativos que se associavam a estrangeiros era uma questão muito séria.

Um Feiticeiro Umezzi da Tanzânia

Os feiticeiros da Tanzânia, conhecidos como Ma´ku Umezzi eram extremamente temidos e com razão. Eles comandavam grandes grupos de seguidores fanáticos que por sua vez impunham um regime de terror na população. Quando um Umezzi declarava um indivíduo como traidor ele e sua família passavam a viver sob grande ameaça. Os seguidores acreditavam que um Umezzi refletia a vontade dos espíritos e entidades que ele servia. Um traidor deveria ser trazido diante da congregação reunida e enfrentar uma espécie de julgamento pelos seus crimes - que poderiam ser algo como trabalhar para um estrangeiro ou mesmo aceitar presentes deles. Havia vários relatos de pessoas que simplesmente desapareciam na calada da noite, capturados pelos devotos e levados diante do conselho tribal.

Até meados da década de 1950 inúmeras pessoas sofreram com essa perseguição sistemática, criando um medo palpável na sociedade tanzaniana. Os alegados traidores sofriam com torturas aterrorizantes, eram amarrados em árvores e deixados para os animais selvagens, tinham o corpo coberto de mel e lançados em seguida em formigueiros ou eram afogados em lagos de areia movediça. O mais temido, no entanto, era ser sacrificado em algum ritual de sangue.

Quando os tambores tribais se faziam ouvir, ecoando no coração da selva, a população sabia que aconteceria um ritual e que as entidades sombrias receberiam sacrifícios humanos. O Misticismo da Tanganica contempla a existência de vários espíritos primevos que lá viviam antes mesmo dos humanos. Estes eram seres caprichosos demandavam respeito e ansiavam por sangue para aplacar sua ira. Conforme a tradição, apenas os Feiticeiros Umezzi podiam se comunicar com eles e oferecer os sacrifícios que acalmavam sua cólera. Os Umezzi também conheciam rituais e magias usadas para interceder em nome dessas entidades sinistras. Era daí que emanavam seus poderes. 

O ritual envolvendo sacrifício humano era um acontecimento importante e as pessoas eram forçadas a comparecer ao evento. Nessas horríveis celebrações, a vítima era trazida diante do Umezzi que realizava uma dança ritualística que visava abrir o caminho para as entidades se manifestarem. O som de tambores e batuques preenchia as clareiras iluminadas pelas tochas e tomada pela multidão transfixada de terror. As testemunhas recebiam bebidas alucinógenas que causavam visões medonhas. Em meio a gritos estridentes, o Umezzi declarava quando as Entidades Invisíveis se manifestavam e muitas pessoas sob o efeito das potentes drogas viam tais criaturas se materializando. Reações emocionais e surtos eram algo comum, a medida que a celebração prosseguia e o Umezzi fazia o seu trabalho sangrento. A vítima era degolada ou espancada cm porretes ritualísticos, seu corpo mutilado podia ser amarrado a cordas e erguido sobre a clareira, fazendo com que o sangue vertesse em profusão.

Imagem de um artigo britânico de 1930 sobre a feitiçaria na Tanganica

O poder dos Umezzi só começou a ser confrontado quando a Tanzânia conquistou sua independência e se uniu a nação vizinha de Zanzibar que tem uma rígida formação islâmica. Sob pressão de Zanzibar, a prática de feitiçaria foi declarada ilegal e seus utilizadores duramente reprimidos. Muitos feiticeiros foram presos e afastados, fazendo com que a influência desses supostos bruxos diminuísse exponencialmente. O islã condena qualquer prática envolvendo adivinhação, leitura do futuro e mais especificamente feitiçaria. 

Contudo, recentemente a Tanzânia tem experimentado uma espécie de reavivamento das práticas tribais envolvendo os Ma´ku Umezzi e sua feitiçaria. Por décadas esses costumes caíram em desuso, relegados a enclaves rurais mais atrasados no interior do país, mas de algumas décadas para cá eles parecem ter sido redescobertos, experimentando uma espécie de restauração. Até mesmo na capital da Tanzânia, Dodona há sinais de que a feitiçaria é uma prática cada vez mais em voga.

Em 2019 uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Crimes na África apurou que crimes relacionados a misticismo religioso tem crescido na Tanzânia. Crimes graves que incluem agressão, abuso, estupro e homicídios aumentaram incrivelmente tornando-se um problema sério a ser tratado pelas autoridades. Na cidade de Mwanza, a segunda mais populosa do país, crimes motivados por misticismo ocorrem com frequência cada vez maior. Não há números oficiais, contudo é evidente que abuso e agressões tem se tornado cada vez mais comum entre a população que se voltou para práticas tribais até então adormecidas.

"Os Umezzi estão de volta", declara Pbora Mwanani, investigador do Departamento Federal de Combate ao Crime na Tanzânia, um gabinete criado com objetivo de coibir a ocorrência de casos envolvendo cultos e seitas tribais. "A violência tem crescido e estamos em uma verdadeira guerra para evitar esses incidentes".

Bonecos mágicos são parte do folclore dos Umezzi

Tem sido uma batalha difícil, como o próprio Mwanani reconhece: "A situação é preocupante, a influência desses novos Umezzi é muito grande, sobretudo depois que eles começaram a chegar a cidades maiores. As pessoas, em especial jovens, parecem atraídas por velhos costumes que faziam parte da vida de seus avós".

A nova geração de feiticeiros que tem surgido na Tanzânia recorrem às mesmas táticas de terror dos seus antepassados, prometendo intermediar com as entidades ancestrais para garantir benefícios para seus seguidores. Os Umezzi prometem sucesso e riqueza para o rebanho que se reúne ao seu redor, conduzindo rituais para estabelecer o favor dos espíritos. Tudo com um custo! Mediante um pagamento acertado com o Umezzi - como uma forma de tributo, rituais podem ser realizados com o intuito de garantir trabalho, afastar inimigos, ganhar benefícios ou ainda conquistar fama e fortuna.

"As pessoas realmente acreditam que a feitiçaria pode interceder favoravelmente por elas. Que os bruxos conseguem persuadir as entidades a fazer o que eles desejam", explica Mwanani, "Para que a barganha seja bem sucedida, os Umezzi instruem esses indivíduos a obter sacrifícios de sangue".

Conforme as tradições locais, sacrifícios constituem uma espécie de moeda de troca entre mortais e espíritos e quanto maior a oferta, mais provável será obter o que se deseja. Muitos dos rituais de sacrifício envolvem animais como pombas, galinhas, bodes e cabras, mas é o sacrifício humano - em especial de crianças, o que trás melhores auspícios sobre o resultado almejado. Não é segredo que o tráfico de seres humanos, em especial de crianças, constitui um negócio rentável na África, mas nas últimas décadas a compra e venda de pessoas para utilização em rituais se tornou algo cada vez mais comum. Crianças são sequestradas e negociadas no submundo, vendidas para alimentar essa demanda em crescimento. Uma criança pode render um bom dinheiro para esses criminosos, em especial se for uma criança albina. Tradicionalmente albinos são tratados como pessoas tocadas pelos deuses e portanto sacrifícios mais potentes.

O Departamento de Combate ao Crime da Tanzânia investiga conexões dos Umezzi com o tráfico de seres humanos desde 2012 e concluiu existir um envolvimento direto entre eles. Também há raízes ligando esses Feiticeiros com aliciamento, tráfico de drogas e outros crimes. "A luta tem sido dura, mas é uma luta que precisa ser travada" diz Mwanani com resignação, "a outra opção seria fazer nada".

Na Tanzânia, o ditado "Tudo o que o mal oprecisa para triunfar é que homens bons não façam nada" parece encontrar um exemplo real. Felizmente há pessoas que enfrentam esse mal.