quinta-feira, 1 de novembro de 2018

A Maldição da Residência Hill - Resenha completa da série do Netflix


"Nenhum organismo vivo pode existir muito tempo com sanidade sob condições de realidade absoluta; até cotovias e gafanhotos, supõem alguns, sonham. Hill House, desprovida de sanidade, se erguia solitária contra os montes, aprisionando as trevas em seu interior; estava desse jeito havia oitenta anos e talvez continuasse por mais oitenta. Lá dentro, paredes continuavam de pé, tijolos se juntavam com perfeição, assoalhos estavam firmes e portas estavam sensatamente fechadas; o silêncio se escorava com equilíbrio na madeira e nas pedras da Casa da Colina, e o que andava ali, andava sozinho".

Esse trecho do clássico romance de Horror "A Assombração da Casa da Colina" (The Haunting of the Hill House) de Shirley Jackson talvez seja um dos mais citados e admirados da literatura de horror. Uma construção perfeita que serve para introduzir a incrível história que virá a seguir.

É ele que dá início ao romance seminal lançado no distante ano de 1953 que arrepiou gerações e fez com que casas assombradas ganhassem popularidade. Esse mesmo trecho é repetido no primeiro episódio da série "A Maldição da Residência Hill" que foi lançado recentemente pelo canal Netflix.


Mas pouca coisa tem ligação com o livro original. A série da Netflix, com 10 episódios encadeados e fechados em um formato que privilegia quem gosta de fazer maratona, é uma mega produção que consegue ser ao mesmo tempo inovadora, respeitosa e ousada.

Ao longo de sua titânica duração de 10 horas, A Assombração na Casa da Colina (daqui em diante Hill House), consegue manter o interesse de cada  episódio sem perder o fôlego em momento algum. Não existe o que os críticos chamam de "barriga", aquelas partes da série que são mais arrastadas e que servem apenas para costurar os acontecimentos entre um capítulo e outro. Tudo tem importância, tudo é bem aproveitado! Tudo faz sentido para o contexto final! Dentro da melhor tradição de sustos, a série lembra uma montanha russa de emoções, com surpresas, revelações e reviravoltas que vão se juntando como nuvens negras, até despencarem nos episódios finais, como uma tempestade perfeita.

O título, leva a crer que a série conta a história da infame Casa da Colina, mas parte da ousadia do roteiro é mudar o foco da Assombração em si, para os ocupantes da Mansão Gótica da Nova Inglaterra. A casa, é claro, continua sendo importante como o elemento que conduz a narrativa, contudo é no núcleo dos personagens que reside a força e o maior interesse de Hill House. Isso em parte se deve a ousadia de pegar uma história clássica de horror e subverter a maioria de seus elementos para que ela gere algo completamente diverso, mas ainda assim tão assustador quanto sua inspiração original.


Em primeiro lugar, a série, ao contrário do livro, se concentra na trágica saga de uma família. Os Crain são pessoas comuns pelas quais sentimos empatia quase imediata, não apenas pela forma como são apresentados, mas por serem dotados de inúmeras camadas. A família formada pelo pai e mãe, além de cinco crianças, cada qual com suas próprias características, virtudes e (principalmente) defeitos é muito bem construída. Ajuda muito que cada um dos sete capítulos iniciais da trama gire em torno de um membro da família, contando não apenas a sua origem, mas como os personagens se tornaram quem eles são, na segunda parte da trama.

E essa é outra sacada fantástica, que talvez deva tributo a IT (de Stephen King), já que a história transita entre diferentes épocas, mostrando os Crain de ontem (cerca de 20 anos atrás) e os dos dias atuais. A história viaja de uma época para a outra, acompanhando as indas e vindas do clã e os acontecimentos que incidiram sobre eles e transformaram suas vidas para sempre. 

É fascinante acompanhar cada episódio que aos poucos apresenta peças soltas que vão se encaixando e formando um grande quebra-cabeças que conta o que aconteceu com essa família dividida pela amargura, medo e segredos.


É notável como os roteiristas conseguiram respeitar a trama original usando para isso nomes, frases, incidentes e detalhes do romance original. Quem leu o livro vai se sentir recompensado por uma série de easter eggs pipocando aqui e ali que remetem diretamente ao livro. De fato, os roteiristas afirmaram em entrevistas que tencionavam desde o início contar uma história diferente, mas ao mesmo tempo, não queriam se afastar demasiadamente de sua inspiração, simplesmente por adorar demais a história de Shirley Jackson. Se o objetivo era contar uma história diferente e ainda assim manter os pés cravados no clima do romance, parabéns, conseguiram com louvor.

Para quem não sabe, o romance já teve duas adaptações para o cinema com resultados bastante distintos. O primeiro data de 1963, e deu origem a um excelente filme de horror atmosférico chamado "Desafio ao Além" (The Haunting), dirigido por Robert Wise. Já o segundo é mais recente, e foi chamado "A Casa Amaldiçoada" (também The Haunting no original). Embora contasse com um elenco de primeira e efeitos especiais incríveis, ficou devendo. A série, ainda que bem menos fiel é uma das melhores produções do ano no catalogo do Netflix. Vou mais longe, em se tratando de terror, não há nada que chegue perto.


A trama acompanha a Família Crain (que curiosamente era o nome do construtor da casa no romance!). A mãe Olivia (Carla Gugino) e o pai Hugh (Henry Thomas) assumem a tarefa de restaurar uma imensa mansão gótica erguida na Nova Inglaterra. O objetivo deles é devolver à colossal propriedade, sua glória, restaurá-la e vendê-la para assim ficarem ricos. Olivia e Hugh não são más pessoas, eles não são movidos por ganância ou avareza, seus planos são perfeitamente compreensíveis. Ademais, a chance de trabalhar na lendária mansão os enche de satisfação.

Os dois decidem se mudar para a propriedade, trazendo consigo seus cinco filhos, em ordem de idade: Steven (Paxton Singleton), Shirley (Lulu Wilson), Theo (Mckenna Grace), e os gêmeos Nell (Violet McGraw) e Luke (Julian Hilliard). Cada criança possui o seu próprio background, e estes são tão bem construídos que o espectador imediatamente se afeiçoa a eles.


Steven, o primogênito quer provar ao pai que pode ser útil e ajudar nas obras de restauração. Shirley alterna sua devoção aos pais com o fato de estar crescendo. Theo dá mostras de uma personalidade forte e uma sensibilidade para captar o mundo a sua volta d euma maneira única. Já os gêmeos vêem a casa como um imenso playground a ser explorado, um que vai se mostrar bem perigoso. Cada criança encara a mudança para a Mansão de uma maneira particular e será afetada por ela. Também ao redor da família orbitam os zeladores originais, o Sr e Sra Dudley (Annabeth Gish e Robert Longstreet), que embora trabalhem na propriedade tem o bom senso de jamais ficam após o anoitecer.

A temporada que mudará a vida da família e irá afetar decisivamente seu futuro é contada na forma de flashbacks de uma maneira muito eficiente com os acontecimentos sendo lembrados pelos Crain dos dias atuais.


Os Crain de vinte e poucos anos mais tarde são um clã partido: Olívia não está mais na fotografia, ela morreu em circunstâncias que aos poucos serão explicadas; o pai (Timothy Hutton) também se mantém afastado e raramente procura seus filhos. Steven (Michiel Huisman) conseguiu o sucesso escrevendo romances que exploram fenômenos fantasmagóricos, embora ele próprio afirme jamais ter visto uma assombração. Shirley (Elizabeth Reaser), descobriu quando criança que tem uma forma particular de encarar a morte e se tornou uma agente funerária especializada em conceder dignidade aos mortos em sua despedida. Theo (Kate Siegel) é uma psiquiatra infantil trabalhando com crianças traumatizadas e com um estranho dom para psicometria - a capacidade de ler objetos e pessoas através do toque. Nell (Victoria Pedretti) leva uma existência complicada, marcada por tragédias e tentativas de preservar os laços da família. Finalmente Luke (Oliver Jackson-Cohen) recorre às drogas como uma forma de esquecer os traumas pelos quais passou e que ainda o assombram.

Embora tenham um vínculo de sangue, os Crain não possuem mais uma unidade familiar. Brigas, discussões e ressentimentos fez com que cada um deles seguisse seu próprio caminho. Alguns ainda mantém um contato ocasional, mas outros preferem simplesmente o afastamento. Ocorre que uma tragédia irá forçar os Crain a uma reunião em Boston, na qual fantasmas do passado (alguns metafóricos, outros nem tanto) os visitarão.


A medida que acompanhamos a história individual de cada personagem, vamos compreendendo que a temporada na Mansão Hill foi determinante para mudá-los para sempre. O curto período em que viveram na casa maldita estilhaçou algo dentro deles, deixando cicatrizes profundas. Quando os Crain se vêem forçados a se reencontrar, as lembranças vêm à tona como um caldeirão borbulhante de traumas.  

O diretor e co-criador da série Mike Flanagan cria uma atmosfera constante de tensão recorrendo de modo extremamente eficiente às ferramentas habituais do horror - música sinistra, cortes rápidos, enquadramentos estranhos e surpresas macabras. Tudo isso resulta em sustos, MUITOS SUSTOS! A série consegue pegar o espectador de surpresa, tornando impossível evitar os arrepios e saltos na cadeira. Alguns episódios tem um clima tão sinistro e funesto que chega a faltar ar. Eu chamo a atenção para os capítulos cinco e seis que são simplesmente uma aula de como construir tensão e fazer com que o espectador veja o que não está lá. Outro mérito do roteiro é que ele faz com que a platéia chegue às conclusões por conta própria interpretando (e não explicando) o que está acontecendo. 


O magnífico epísódio 6, que reúne todos os personagens possui uma longa tomada ininterrupta que dura 23 minutos, seguida de uma segunda de quase a mesma duração, antes de retornar aos cortes de edição convencionais. O resultado é de tirar o fôlego! O efeito teatral, com diálogos cortantes e roteiro incrivelmente bem escrito introduzem inúmeras reviravoltas sem jamais parecer forçado. É preciso ressaltar o talento de todo elenco, destacando entretanto, Carla Gugino, que encara o desafio de interpretar uma mãe afundando numa espiral de insanidade e autêntico terror. As cenas em que ela se deixa levar pelo desespero e loucura, e se entrega às presenças malévolas que habitam a casa são de quebrar o coração. 

Com uma produção impecável, é possível dizer sem medo de exagerar que Hill House é uma das melhores séries de terror da ultima década, muito superior a American Horror Story ou mesmo Penny Dreadful, que até então haviam estabelecido o patamar a ser alcançado. A série consegue superar todas expectativas, resultando em um clássico instantâneo. Fala-se já em uma segunda temporada, focando nos incidentes anteriores a chegada dos Crain e em como se formou a maldade que inundou a casa. Quem eram os habitantes originais? O que eles fizeram? E qual foi seu destino?


A Maldição da Residência Hill mostra que o verdadeiro terror não está em choque, sangue ou vísceras. Terror autêntico vem dos momentos em que nosso cérebro não é capaz de compreender o que estamos vendo e ainda assim, não conseguimos olhar em outra direção. Daquele pressentimento que algo assustador vai acontecer, um segundo antes de se concretizar. Em experimentar uma ansiedade crescente e implacável a cada porta aberta e curva de um corredor escuro.

Ela é recomendada tanto para quem ama o gênero, quanto para aqueles que adoram uma história bem contada. 

Não deixe de assistir!

Trailer:



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