sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Cabeça Encolhida - O dia em que tive uma cabeça humana nas mãos


Explorar o centro daquela cidade exótica era por vezes como entrar em uma espécie de túnel do tempo e atravessar séculos de história como quem cruza uma viela.

As ruas estavam sempre cheias de pessoas de todos os tipos: comerciantes, visitantes, trabalhadores, carregadores e gente tratando de seus afazeres diários. Uma cacofonia confusa de sons emergia em diferentes dialetos e idiomas. Odores também emanavam daquele Grande Bazar: das panelas de bronze que cozinhavam iguarias exóticas carregadas de especiarias, da banca que vendida flores raras que formavam um arco-iris de cores e fragrâncias e dos corpos mau lavados dos que labutavam desde cedo.

Uma parte em especial daquela feira chamava minha atenção e do colega que me acompanhava naquela expedição. O local ocupava tradicionalmente uma viela comprida e estreita que descia tortuosa, espremida entre dois prédios antigos de fachada decadente. Chamavam o lugar de Bazar das Pulgas e era um nome adequado. As mercadorias eram dispostas no chão de pedra retangular, em lonas empoeiradas nas quais repousavam tal qual, oferendas a um Deus Pagão. Seus negociantes as haviam retirado do lixo de mansões e palacetes. As haviam colocado em carroções ou carrinhos que eram empurrados pelas ruas. Muitas daquelas coisas não passavam de rejeito abandonado, desencavado por mãos determinadas a transmutar aquele refugo em algumas moedas.

Tendo visitado o Bazar em diferentes ocasiões sabíamos que era ali que verdadeiros tesouros poderiam ser encontrados. Alguns à preços módicos, visto que as mazelas da vida naquela cidade ímpia haviam forçado muitas pessoas à condição de catadores. Haviam aqueles que sabiam o que tinham em suas mãos, enquanto outros alienavam tesoiros diante de qualquer proposta. Não barganhavam como os comerciantes renomados, pois regatear é requisito dos que podem se dar a esse luxo.

Vagávamos por ali em revista pelas bancas sórdidas, quando meu colega apontou para uma das vendinhas mais humildes daquela quadra. Os objetos estavam distribuídos sem qualquer critério. Ele olhou curioso para os itens e sinalizou para que eu desse atenção a alguma coisa ali exposta. Meus olhos vasculharam as coisas ali deitadas, até recaírem sobre uma peça em particular que estava disposta de modo pouco cerimonioso.

Era um objeto pequeno e do tamanho de um punho adulto fechado, confeccionado a partir do que parecia ser um retalho de couro cru. Tinha uma cor desagradável: pardacenta e castanha desbotada e com o topo coroado por longos fios de cabelo formando o que lembrava uma crina de cavalo. A coisa ressecada e diminuta me chamou a atenção imediatamente, mesmo antes de me aperceber se tratar de uma cabeça humana encolhida.

Era realmente hedionda!


Eu sabia a respeito dessas práticas realizadas em aldeias selvagens nos cantões mais remotos do continente. Escrevi a respeito disso em certa ocasião... As cabeças de inimigos ou desafetos dessas tribos ferozes eram decepadas ritualisticamente. Um corte transversal extraía o crânio e a pele era cuidadosamente tratada dali em diante. Os olhos e a boca primeiro eram costuradas com cipó, depois a pele era mergulhada num caldeirão de ferro para ferver em uma mistura de ingredientes naturais. O calor fazia com ela ganhasse rigidez e uma textura de couro batido. Também causava seu encolhimento a quase um terço de seu tamanho normal. Como toque final, os cabelos que haviam sido aparados, eram colados no topo da cabeça.

Instintivamente me abaixei para examinar a coisa e não resisti a apanhá-la em minhas mãos. Ato do qual imediatamente me arrependi: não pela repulsa que emanava da coisa blasfema (embora fosse, em verdade, repugnante!), mas pela noção de que eu tinha em minhas mãos a cabeça de um ser humano que havia passado por uma experiência de vilipêndio inenarrável.

O que me chamou a atenção na cabeça em si é que era leve, não mais pesada do que um saco vazio de veludo. Talvez eu esperasse alguma substância, não sei dizer... Os cabelos eram lisos, porém tinham uma aspereza desagradável e cheguei a pensar que pudessem ser artificiais, mas logo descartei a hipótese. Tudo ali sugeria ser horrivelmente autêntico, medonhamente real.

O vendedor, que por um instante, pareceu aos meus olhos, um representante da decaída raça de maldosos anões conhecida como Tcho-Tchos, surgiu simpático.

"Gostou? Está à venda! Se quiser levar, é sua", sorriu convidativo, mostrando dentes brancos (e serrilhados? Talvez, tenha visto demais!).

"É de verdade? De onde veio?" perguntei tentando desviar a conversa.

"Sim, é real... o dono trabalhava na embaixada peruana. Limparam o lugar e me deram para que eu vendesse", ele explicou.


Me dei conta que ainda estava segurando a maldita coisa nas mãos e então coloquei-a de volta cuidadosamente no lugar. O vendedor comunicou o preço e este era alto demais! Não sei como teria reagido se fosse mais acessível... se levaria ou não aquele objeto medonho para abrilhantar minha coleção de estranhezas. Finalmente, quando o vendedor já impaciente disse que eu podia fazer uma proposta para ter a peça, preferi evitar de fazê-lo.

E se ele, por algum acaso, concordasse na oferta?

Penso em que pesadelos aquela coisa maldita poderia proporcionar caso a tivesse levado para casa? Que sonhos negros, eivados de maus agouros tal objeto daninho poderia suscitar em minha mente dada a portentos de fértil imaginação?

Melhor não pensar a respeito, melhor deixar a questão sem resposta.

*     *     *

E este foi o saldo de uma visita à lendária Feira de Antiguidades da Praça XV no Centro do Rio de Janeiro em que realmente topei com uma cabeça encolhida sendo vendida. Não, o vendedor não era um Tcho-Tcho (ao menos, não que eu saiba). E não, o lugar não é chamado de Bazar das Pulgas - embora eu lutarei com unhas e dentes para que, doravante, o seja.

Por vezes, as aventuras lovecraftianas encontram-se mais próximas do que podemos supor...

Em tempo: Vale a pena registrar a minha expressão pouco confortável, ao segurar a coisa, registrada na foto abaixo.

6 comentários:

  1. Agora a pergunta... como isso veio parar no Brasil?!?

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    1. O Peru não está muito longe, creio que poderia chegar aqui fácil

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  2. Essa feira da Praça XV é muito boa mesmo! Dá pra ver que tem comércio para literalmente todos os gostos...

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  3. A 25 de março tem esse nome porque em 25 de março de 1824 foi OUTORGADA a primeira constituição do Brasil (a constituição imperial).

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Na Feira da Providência, anos 70, no Rio Centro, Rio, RJ, na barraca do Peru tinha duas para vender. As pessoas passavam por ali e nem notavam mas eu conhecia este detalhe da cultura da tribo Jivaro de uma coleção chamada O livro do Como, O livro do Onde,... do Quando e ...do Porque (Era em 4 volumes). Pedi o dinheiro para o meu pai "para eu comprar uma coisa". Ele perguntou o que era, expliquei e ele brigou comigo. Acho que também me chamou de maluco, se não me falha a memória. Eu tinha, acho uns 9 ou 10 anos. Todos os anos íamos naquela feira.

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