Midsommar, o Mal não espera a Noite é uma espécie de teatro e como tal começa com a abertura de um painel (ou cortina), onde estão representados elementos importantes para o que será encenado a seguir. É curioso que o painel, que fica exposto por alguns segundos, revela o filme do começo ao fim.
O novo e perturbador filme de Ari Aster, diretor do sensacional Hereditário, é um colorido e bizarro espetáculo sobre crença cega e devoção ardente. O filme se desenrola em uma remota vila no interior da Suécia onde o dia parece interminável. Parece estranho que uma produção de horror tenha imagens tão idílicas e belas, mas é justamente nessa ilusão - de que algo tão belo, que jamais poderia ser terrível, que reside a genialidade de Midsommar.
O esplendor bucólico de acampamento de verão e a exuberância natural das paisagens remetem a um paraíso terreno, mas tal qual um Éden, há serpentes à espreita. E estes são os moradores do local. Não é nenhum spoiler afirmar isso, trata-se de um filme de culto e nada mais óbvio do que assumir isso. A princípio os habitantes locais parecem apenas tranquilos hippies suecos, vestindo camisolas brancas e guirlandas na cabeça, com sorrisos estampados em seus rostos e uma atitude de gentileza escancarada. É claro que o espectador irá desconfiar imediatamente deles; em um filme de terror sobre um culto, os verdadeiros crentes costumam ser amigáveis, para melhor atrair cordeiros para o matadouro. Mas em Midsommar, essa máscara de simpatia holística de Nova Era, nunca se esvai por completo, mesmo quando tem início o derramamento de sangue. E essa é uma grande parte da sacada desse filme, seu poder assustador reside em fazer com que a loucura pareça uma extensão natural da vida daquela comunidade - com pessoas que não vêem a si mesmas como malignas. Aquela é apenas a crença delas, e ela não pode ser má, pode?
O gênero "Horror Folclórico" costuma ser aplicado a essa variedade de terror que explora os mitos e crenças do paganismo. É um subgênero que atingiu seu auge no início da década de 1970 com o clássico britânico "O Homem de Palha". Filmes que encaram os costumes e tradições estranhos e bizarros, como catalizador para neuroses do mundo moderno. Quem estaria certo, afinal de contas, as pessoas que conduzem esses rituais há gerações ou nós que não somos capaz de interpretá-los e menos ainda de compreendê-los?
Talvez essas perguntas ficassem em aberto se o cineasta responsável por Midsommar não fosse tão diabolicamente talentoso. A apoteótica estréia dele em Hereditário, já mostrava uma capacidade de desenvolver uma história aterrorizante ao redor de um cabal repleto de segredos. Mas o horror em Hereditário tinha outro sentido: os arrepios vinham dos recônditos da mente de sua heroína que era um poço de tristeza, amargor e ressentimento. Hereditário assustava por mergulhar o espectador na acachapante tragédia de uma família que por acaso estava sendo manipulada por um culto.
Em Midsommar a abordagem é um pouco diferente, embora a premissa também envolva elementos de uma devastadora tragédia familiar. No filme, Dani (Florence Pugh), descobre a si mesmo sozinha no mundo, sem poder contar com ninguém além de seu namorado, Christian (Jack Reynor). O sujeito, como logo fica claro, não é exatamente o namorado mais compreensivo do mundo. Ele é distante, indiferente e trata do problema de sua namorada como um fardo. Logo no início, fica claro que ele está planejando colocar um fim na relação, plano que fracassa quando a tragédia recai sobre a sua parceira pegando os dois de surpresa. Contudo, a tensão entre eles vai se intensificando depois que Dani acaba convidando a si mesma para participar de uma viagem que Cristian estava planejando com amigos. A ideia deles é visitar a Suécia à convite de um amigo chamado Pelle (Vilhelm Blomgren) que falou a respeito de uma festividade pagã que ocorre em um vilarejo nos confins do país.
O ambiente então muda, da cidade escuras e coberta de neve dos Estados Unidos para os campos verdejantes e ensolarados de Hälsingland, o idílico lar dos Harga, uma tribo de neo-hippies. Logo ficamos sabendo que os Harga possuem seus próprios costumes que incluem as tais cerimônias. Eles esperam ansiosamente por um festival que ocorre a cada 90 anos e que está prestes a ser realizado. A intenção do grupo de amigos é assistir as festividades, conhecer os rituais de um ponto de vista acadêmico, já que um deles é estudante do assunto e se possível tomar parte das festividades.
Como naquela velha piada, na qual os exploradores visitam uma aldeia canibal e perguntam qual o prato do dia, o grupo não tem a menor ideia que está se metendo em algo extremamente perigoso e perturbador.
Após alguns dias no vilarejo desfrutando da amabilidade dos Harga, os visitantes começam a se dar conta de que não apenas viajaram para um local isolado e distante, mas que parecem também ter viajado no tempo. A civilização com a qual estão familiarizados ficou para trás, cedendo lugar a um modelo de tradições incomuns. Quanto mais o grupo se entranha nos costumes dessa comunidade fechada, mais eles começam a entender que algo supremamente bizarro está prestes a acontecer.
O roteiro consegue de forma brilhante causar arrepios involuntários, nem tanto pelo que mostra, mas com sutis sugestões do que está para acontecer. Cada cena parece cuidadosamente construída para despertar uma sensação de estranheza desconcertante. Os Harga são apresentados como uma mistura de várias crenças e tradições pagãs da Europa, sem se identificar com um grupo em especial. Lenta, porém gradualmente, os cultistas vão se aproximando dos forasteiros, sempre sorrindo enquanto se preparam para fechar sua armadilha.
O zelo com que o diretor constrói sequências perturbadoras impressiona. Ele sabe como esticar uma cena até os limites do suspense afim de extrair dela desconforto, confusão e choque em doses cavalares. Em mais de um momento, é preciso desviar os olhos para não encarar o pesadelo que vai se revelando sem pudores. Há uma boa dose de gore, mas o que perturba não é o sangue escorrendo, mas o caráter grotesco e quase antropológico dos rituais primitivos encenados. Em se tratando de um filme sobre as atividades e crenças de um Culto, Midsommar talvez tenha a dúbia honra de fornecer um dos retratos mais excruciantes. É um exame de uma faceta escura da humanidade, pintado em cores vibrantes em plena luz do sol.
Com um elenco extremamente afinado e bem conduzido, uma trilha sonora sinistra e efeitos práticos que funcionam à perfeição, Midsommar é o tipo de experiência que impõe uma espécie de "ame ou odeie" ao seu público. Alguns irão reclamar que os personagens deveriam desconfiar que algo errado está prestes a acontecer, irão se queixar de alguns excessos do roteiro ou até mesmo da longa duração (140 minutos). Apesar disso, é indiscutível que ele tem méritos, inúmeros.
Midsommar definitivamente é um filme que foge do estilo de horror ao qual estamos acostumados, talvez seja até difícil chama-lo de "terror". Ele investe pesado na atmosfera, mas jamais em sustos baratos. O espectador se sente perturbado na poltrona, mas não chega a saltar dela. O horror se insinua por baixo da sua pele e é difícil evitar coçá-lo. Ele é estranho, hipnótico e surreal, como qualquer experiência religiosa deve ser quando assistida pela primeira vez.
Trailer:
Gostei bem do filme, embora eu prefira Hereditary. O talento do diretor é inegável, espero ansioso por mais trabalhos dele. Ótima análise
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