quarta-feira, 9 de outubro de 2019

O Sacrifício - Ossadas encontradas em caverna no Nepal evidenciam estranho ritual


"Havia ossos em todo canto", foi o que disse um assustado pastor de cabras chamado Kenui após fazer a descoberta mais apavorante de sua vida em 2017.

Kenui vivia na Região de Mustang, um dos territórios mais isolados e agrestes do Nepal, país conhecido pelo seu alto relevo escarpado que dão forma às majestosas Montanhas do Himalaia. O rapaz, na época com 16 anos, nativo do pequeno vilarejo de Samdzong, conduzia seu rebanho de cabras através de um vale até um povoado vizinho. Tendo feito esse caminho repetidas vezes, ele conhecia bem o percurso e sabia os melhores lugares para acampar em segurança. O vale oferecia várias cavernas e grutas naturais usadas por pastores como Kenui há séculos.

Enquanto se preparava para montar um acampamento, ele percebeu que um dos animais havia sumido. Como um bom pastor, colocou o rebanho em segurança e decidiu sair em busca do animal que havia se desgarrado e encontrá-lo antes do anoitecer. Seguindo as trilhas, ele acabou descobrindo uma estreita entrada para uma caverna onde o animal parecia ter se enfiado. Ouvindo com atenção ele conseguia distinguir os balidos do animal que parecia assustado e incapaz de achar o caminho de volta. O rapaz respirou fundo e começou a se arrastar para dentro da caverna penetrando cerca de 15 metros através de um túnel estreito, ouvindo sempre o ruído do animal lá no fundo.

Finalmente ele emergiu em uma câmara mais larga, onde conseguiu encontrar o assustado animal e algo mais. Na tênue luz de uma vela, o pastor se deparou com uma cena apavorante, o pequeno espaço onde o animal ficou preso estava tomado de ossadas humanas espalhadas pelas paredes em nichos ou dispostas de maneira organizada. Os crânios pareciam sorrir com seus dentes escancarados e espiar através das órbitas vazias.

Assustado, o rapaz agarrou o animal e saiu dali às pressas temendo alguma maldição. Ele então relatou a sua descoberta no vilarejo. Semanas mais tarde, Kenui levou um grupo de arqueólogos até a caverna onde fez sua fantástica descoberta. Não é totalmente incomum encontrar restos humanos nessa região, já que a ocupação de pessoas na área remonta a idade da pedra. Cemitérios antigos como aquele são uma descoberta frequente que normalmente não chamava muito a atenção, mas lá havia algo mais.


Ao explorar a caverna indicada, os arqueólogos descobriram que estavam diante de algo incomum e surpreendente. Primeiro a quantidade e a forma de dispor os corpos chamaram a atenção dos especialistas que contaram 27 ossadas completas de homens, mulheres e crianças em seu interior. Os restos haviam sido colocados cerimoniosamente em nichos escavados na rocha, enquanto outros foram dispostos em uma espécie de semi-círculo com as costas voltadas para a parede. O espaço de aproximadamente 8 metros quadrados estava tomado pelas ossadas. Ao examiná-las repararam que apresentavam marcas de cortes que indicavam algum tipo de ritual e uma cuidadosa preparação dos cadáveres. 

Análises posteriores determinaram que os restos tinham entre 1500 e 1800 anos e que todos pertenciam a um mesmo grupo étnico. Alguns também eram parentes próximos conforme demonstrou o DNA. Ao que tudo indica, eles foram colocados naquela caverna após serem cuidadosamente descarnados em um tipo de preparação ritualística. A maioria dos corpos teve a carne parcialmente removida antes do sepultamento, atividade que envolveu a realização de cortes com machado e posteriormente afiadas facas de metal. Os instrumentos deixaram marcas claras nos ossos encontrados. Após o processo de remoção da carne, o que restou foi acomodado em pequenas caixas de madeira, conforme especularam os pesquisadores. Infelizmente, apenas fragmentos dessas caixas restaram de modo que não é possível precisar sua forma ou se eles continham alguma identificação. 

Uma análise mais criteriosa levou também à descoberta de ossadas de animais em especial cavalos e cabras, o que aponta para um provável componente sacrificial para os mortos, contudo seu propósito permanece um mistério. Os resultados entretanto determinaram que todos os sacrifícios ocorreram em um pequeno espaço de tempo, possivelmente numa mesma ocasião. 


Um dos arqueólogos responsáveis pelos trabalhos, Peter Athans, um britânico que trabalha com a Universidade de Bagmati, comentou a respeito da descoberta.



 "Ainda estamos tentando determinar o propósito desse ritual e seu significado. Infelizmente, a caverna está situada em uma matriz de rocha frágil o que demanda extremo cuidado. É possível que outros túneis, que faziam parte do complexo e que eram usados com o mesmo propósito, tenham desabado no passado".


Athans é especialista em cultura nepalesa, em sua opinião, a remoção da carne aponta para um ritual bastante particular, provavelmente praticado por um pequeno grupo tribal. Ele não descartou a possibilidade do rito envolver canibalismo, embora alguns indícios deponham contra isso. 

"Quando você realiza esse procedimento para obter alimento, o processo de descarnar tende a ser diferente. No canibalismo ao redor do mundo, a base do crânio é geralmente esmagada (para acessar o cérebro) e os ossos são quebrados em busca do tutano. Não há nenhum sinal disso ter acontecido nos ossos recuperados. O ritual, seja ele qual for, foi muito cuidadoso, como se o realizador rendesse a eles respeito".

O pesquisador acredita que as pessoas possam ter passado por um elaborado sacrifício voluntariamente. É possível nesse caso, que a carne deles tenha sido removida e oferecida a alguma entidade da mitologia nepalesa. Athans acredita que para esse fim, as partes retiradas teriam sido queimadas em uma pira junto com madeira. A noção é que ao queimar a oferenda, esta se transformaria em fumaça que elevada aos céus encontraria a direção da morada celestial.

O folclore nepalês está repleto de entidades, deuses e demônios, que culturalmente aceitam sacrifícios, algumas vezes humanos, para garantir assim favores e intervir no mundo físico. Anteriormente, na mesma região foram encontradas evidências de rituais no qual vítimas foram enterradas vivas em cavernas, afogadas em lagos, lançadas de montanhas ou imoladas em piras. Em um ambiente com clima e condições naturais severas, sujeito a terremotos e estações de monções, os povos primitivos nepaleses frequentemente recorriam a sacrifícios como uma forma de contornar dificuldades e garantir o favor divino. 

A remoção da carne, no entanto, intriga os especialistas já que tal procedimento tende a ser raro em regiões tão ao norte. Casos semelhantes podem ser encontrados mais ao sul, entre praticantes de ramos do Zoroastrismo. Estes praticam o descarnamento como uma espécie de comunhão com a natureza, deixando, contudo, seus corpos para alimentar animais, não os lacrando em cavernas. Povos antigos no Alto Mustang adotaram algumas tradições funerárias similares a dos Zoroastristas que passaram por ali enquanto viajavam para o oeste. Mas o método usado por esse grupo em especial possui algumas diferenças marcantes.


Niles Turin, arqueólogo da Universidade de Cambridge, também especialista em cultura nepalesa aponta uma outra possibilidade. Ele acredita que o sacrifício possa ter atendido algum propósito muito sério. 

"Não se realiza um sacrifício desse tamanho, com tanta elaboração, sem que haja uma razão importante", defende o acadêmico. Ele acredita que as 27 vítimas do sacrifício possivelmente compunham uma mesma tribo ou grupo comunal que em algum momento decidiu se oferecer para um sacrifício essencial, que aos seus olhos salvaria uma região ou satisfaria as entidades por muito tempo. "Existem casos registrados de sacrifícios de clãs inteiros com o intuito de acalmar entidades responsáveis por tremores de terras ou avalanches. Os registros mencionam tal coisa, mas jamais havíamos encontrado nada semelhante".

Turin teoriza que a carne das vítimas do sacrifício tenha sido removida com o intuito de alimentar simbolicamente uma ou mais entidades sobrenaturais e assim saciar sua fome. O mais impressionante é que essas pessoas teriam concordado com essa provação, almejando com isso um bem maior. 

Na mitologia nepalesa os espíritos malignos são chamados Asuras, seres que se alimentam tanto da carne quanto do espírito de seres humanos. Os Asura são entidades malignas, podendo ser interpretados em termos ocidentais como demônios. Elas lutam constantemente com suas contrapartes benevolentes, os Deva que são seres iluminados. Presentes no hinduísmo, essas crenças sofreram diferentes interpretações e tiveram mudanças significativas ao serem assimiladas pela cultura do Nepal. Os nepaleses acreditavam que as Asuras não apenas batalhavam com os Deva em um plano espiritual, mas disputam os favores dos mortais, perambulando pela terra, trazendo caos e ruína em seus passos. Um terremoto, uma enchente, avalanche ou outro cataclismo natural poderia ser interpretado como a ação desses demônios. Nesse contexto, é possível que esse clã tenha testemunhado um acontecimento marcante e decidido pelo sacrifício para que este não voltasse a acontecer.

Ao ofertar sua própria carne a esses espíritos famintos, as pessoas que participaram do sacrifício acreditavam estar assim extinguindo a sede de sangue ou o próprio mal dos Asura, garantindo o futuro de sua terra e de seu povo. 

Na hipótese levantada por Turin, através de rituais e preparações específicas, o espírito dessas pessoas teria sido devidamente  preservado, ainda que seu corpo fosse simbolicamente oferecido para ser devorado. Um dos aspectos mais interessantes desse tipo de ritual diz respeito a escolha de um membro do clã, incumbido de realizar sozinho todo o ritual.


O procedimento envolveria dopar cada membros do clã - incluindo parentes e amigos, e depois cortar suas gargantas com uma lâmina, obedecendo a instrução de fazê-lo da direita para a esquerda. A seguir, essa pessoa seria responsável por realizar o descarnamento dos corpos e oferecimento do sacrifício aos Asura em uma pira flamejante montada com madeiras sagradas. Sua tarefa final teria sido levar os restos para a caverna e sepultá-los para que elas encontrassem o merecido descanso.

Curiosamente, o responsável por tal ritual após sua conclusão passa a ser considerado "amaldiçoado". Seus atos, embora necessários, não poderiam ser relevados e ele próprio estaria fadado s ser evitado por todos. Não por acaso, vigora a crença de que a pessoa incumbida dessa tarefa poderia se tornar um Asura.

Diante da descoberta, um conselho de anciãos do Vilarejo de Samdzong decidiu convidar monges budistas para purificar a região e livrar o lugar da influência de possíveis espíritos malignos. Mais de um milênio após o corajoso sacrifício, a descoberta do sepulcro ainda poderia enfurecer os Asura e por isso todo cuidado era pouco. Com seu canto sagrado, os monges esperam que o lugar tenha sido corretamente purificado. 

Ao que parece as crenças das pessoas que se ofereceram como sacrifício ainda estão presentes em seus descendentes, evidenciando que o respeito por essas tradições é algo muito forte no país. O Nepal, é um lugar de velhas tradições, mistérios e comprometimento.

Um comentário:

  1. Que bizarro. Me lembrou um ótimo mangá one-shot do Junji Ito chamado "unbearable maze"

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