Ainda assim, para aqueles que pensam ter se tratado de um movimento caótico e confuso de repressão, nada poderia estar mais longe da verdade. Havia todo um sistema norteador das ações da Igreja. Um sistema que estabelecia regras bastante rígidas a serem obedecidas pelos "caçadores de bruxas".
É provável que o mais famoso e influente manual de regras sobre o tema tenha sido liberado no mundo no ano de 1487. Mas como esse estranho tratado sobre bruxaria, demonologia e métodos para combater a escuridão se tornou tão importante? Como esse medonho compêndio que ensinava desde interrogar e torturar acusados, até executar bruxas da maneira adequada, se tornou tão popular?
O célebre Malleus Maleficarum, comumente traduzido como "O Martelo das Feiticeiras", foi originalmente escrito na Alemanha em 1486 por um ex-sacerdote da Ordem Dominicana, feito Inquisidor chamado Heinrich Kramer. Quando colocou a pena sobre o pergaminho, para escrever seu clássico, Kramer já era um veterano no ofício de caçar bruxas e realizar exorcismos. Acredita-se que ele vagava pela parte central da Europa, uma das mais obscuras e supersticiosas, oferecendo seus serviços. Em 1484 ele teria caído em desgraça, sendo afastado da igreja após um escandaloso julgamento presidido no Tirol. Exilado sob acusação de ser "senil e louco", ele teve que reconstruir sua reputação novamente. Para isso, estava decidido a criar o Manual definitivo a respeito de demônios, exorcismo, bruxas e seres das trevas. Esse livro traria todas as informações necessárias para caçar, identificar, enfrentar, interrogar e processar aqueles em conluio com as trevas.
Outra função importante do livro seria provar definitivamente que bruxaria existia, já que na época, aos olhos da Igreja, magia negra nada mais era do que os devaneios de pessoas enganadas pelos demônios. Ou seja, bruxas eram pessoas supersticiosas que acreditavam ter poderes sobrenaturais, quando na verdade os únicos capazes de tal coisa eram os espíritos malignos e demônios que os tentavam. Essa noção seria contestada pelo trabalho de Kramer que se dedicava a provar, sem sombra de dúvida, que os mortais, em consórcio com o Inferno, recebiam dele terríveis dádivas.
Para provar seu ponto de vista, Kramer procurou um conhecido teólogo chamado Jacob Sprenger, um dominicano reformista que de fato não acreditava em bruxas. Sprenger, no entanto, era Chefe Inquisidor nas Províncias de Mainz e Trier, personalidade de grande influência. Para que o livro tivesse as devidas credenciais, Kramer colocou o teólogo na posição de co-autor e se aproveitou de sua fama.
Escrito às pressas por Kramer, repleto de erros gramaticais e trechos incompletos, a primeira edição do Malleus Maleficarum foi submetida a Faculdade de Teologia da Universidade de Colônia com o intuito de ganhar seu endosso. Ele acabou sendo publicado em 1487 em uma pequena tiragem, ainda com os erros que marcavam seu rascunho inicial.
Não se sabe ao certo se a Universidade de Colônia estava realmente de acordo com as teorias contidas no livro. Embora o autor contasse com uma Carta de Aprovação assinada pela universidade, muitos historiadores acreditam que esta foi forjada. Mas isso pouco importava, já que o Malleus Maleficarum logo se tornou extremamente popular e difundido. Em 1490 o livro chegou a ser condenado pela Igreja Católica como antiético e contrário às doutrinas sobre demonologia. Eventualmente, ele entrou para a lista de livros banidos, o Index Librorum Prohibitorum, que versava sobre obras consideradas perigosas aos olhos da fé. Contudo, nada disso conseguiu deter a imensa popularidade do texto, que foi rapidamente traduzido em outros idiomas tornando-se o equivalente medieval de um best-seller. Inquisidores Medievais o adotaram quase de imediato como um manual de bolso para caçadores de bruxos que até então não tinham credibilidade para seu estranho ofício. De fato, muitos desses caçadores eram até então ridicularizados e tratados com desdém. O que o livro deu a eles foi uma aceitação tácita da qual eles jamais haviam gozado.
Em poucos anos, as suspeitas a respeito da Bruxaria e do seu perigo deixaram de ser superstição e se tornaram uma dúvida. Mais algumas décadas e a dúvida se tornou certeza. Incontáveis edições e revisões ao longo dos anos, impulsionaram o livro além das fronteiras de uma Europa que era uma verdadeira colcha de retalhos de reinos e feudos. A invenção da Imprensa, creditada a Johannes Gutenberg deu o impulso final, permitindo sua expansão definitiva. Da Alemanha para a Suíça, de lá para Itália e França e depois Leste Europeu, Espanha, Portugal e finalmente Inglaterra. Da Europa, o Martelo foi carregado para a América colonial, terra que não estava livre da plaga das feiticeiras. Já assimilado pela Igreja de Roma, o próprio Papa emitiu uma bula na qual defendia o propósito e importância do livro.
O conteúdo do Malleus era por si só bombástico: escandaloso, excêntrico, chocante e em última análise sedutor aos olhos de uma sociedade fechada. O propósito dele não era redimir ou reeducar, mas destruir e condenar com unhas e dentes tudo aquilo que fosse considerado sacrilégio. As bruxas assumiam o posto de servas de Satã e discípulas do Grande inimigo de Deus. Elas eram uma força a ser temida e confrontada pelo fogo.
O tratado era dividido em três grandes partes, cada qual lidando com um diferente aspecto da caça às bruxas em detalhes. A primeira parte tinha o título "Das Três Condições Necessárias para a Bruxaria: O Diabo, a Bruxa e a Permissão de Deus Todo-Poderoso". Entre suas principais questões estavam os argumentos que validavam como certo o pecado de não se crer em bruxaria, criticavam a lascívia feminina e sua fácil corrupção, além de exaltar a permissão de Deus para combater as práticas das bruxas. O texto tratava de estabelecer que bruxaria era real e afirmava que ceticismo sobre a magia negra era um perigo extremo.
Esse capítulo acompanhava vários relatos, supostamente verídicos envolvendo possessão e poderes sobrenaturais. Demônios continuavam sendo uma parte importante, tendo agora as bruxas como aliadas. Elas mantinham relações sexuais espúrias com esses seres gerando Incubus e Sucubus, entidades que se alimentavam da energia sexual e através dela disseminavam a corrupção dos inocentes. A versão original trazia descrições que podiam ser facilmente categorizadas como pervertidas, com uma fixação anormal pelo sexo entre mulheres e seres antropomórficos.
A segunda parte tratava mais especificamente de demonologia e sua relação com magia negra. Examinava diferentes tipos de feitiçaria e explicava os poderes e habilidades sobrenaturais das bruxas. Também ensinava como reconhecer o trabalho da bruxa, o malefício, e a forma como este corrompia e pervertia a alma. As magias, maldições e maus agouros eram descritos nesse trecho, com uma quantidade de detalhes bizarros que passaram a povoar a mente das pessoas do período. Temas como infanticídio, canibalismo e outras atrocidades lançaram sobre as feiticeiras uma sombra cada vez mais escura.
Com todo esse panorama atros pintado em cores dramáticas, a terceira parte versava sobre os aspectos legais e persecutórios do combate à bruxaria. Ele era voltado para juízes, advogados, escriturários e Inquisidores que povoavam as cortes legais. Os procedimentos eram dissecados na forma de métodos que deveriam ser adotados à risca. O livro chegava ao ponto de instruir sobre os procedimentos do tribunal, incluindo como deveria se comportar a acusação, como deveria ser realizado o interrogatório e conduzida a tortura das bruxas e testemunhas, bem como as punições às quais elas estariam sujeitas.
A tortura era não apenas encorajada, mas endossada como uma necessidade para separar os acusados. O livro dizia textualmente que era mais provável uma mulher vir a ser corrompida pelas forças nefastas do que um homem, já que elas eram mais propensas a se entregar às relações carnais. O tratado também defendia que a fé das mulheres possuía uma falha que estava ligada ao pecado original de Eva. O livro inteiro, estava infectado com uma profunda misoginia e absurda discriminação contra as mulheres em geral. Kramer dizia várias vezes que as mulheres eram um dos motivos para a corrupção terrena e que a magia negra nascia de suas relações intempestivas.
Não é de se surpreender que Kramer quisesse culpar as mulheres da maneira explicitada no Malleus Maleficarum. Ele foi, conforme todos os registros, um homem pequeno, desprezado e preterido em tudo que fez a não ser pelo seu livro. Jamais se casou ou teve filhos, se dizia um celibatário e tornou-se um sacerdote pela falta de opções. Como caçador de bruxas era implacável, sempre disposto a apontar uma mulher como pivô das tragédias ocorridas. Ele continuou a escrever manuais e tratados sobre bruxaria ganhando status de celebridade entre outros Inquisidores até sua morte em 1505. Seu legado foi perpetuado com sangue, perseguição e horror sem precedente na História da Igreja.
É importante salientar que até a publicação do Malleus, bruxaria raramente era punida com a pena de morte. Ela não era considerada sequer como heresia e portanto, não demandava uma punição particularmente séria por parte das autoridades. Tortura sequer era cogitada, sendo que a maioria das alegadas feiticeiras eram tratadas apenas como transgressoras menores. No máximo bruxas recebiam chibatadas ou eram banidas, ainda que tais penas fossem raras e cumpridas somente em comunidades isoladas. O Martelo das Feiticeiras cumpriu exatamente o que o título insinuava, ele golpeou com violência arrebatadora, colocando as bruxas e de fato, todas as mulheres numa posição de grave risco.
Quando cortes seculares abraçaram o livro com um entusiasmo jamais visto antes, decretaram uma nova e medonha era de paranoia, medo e brutalidade em toda Europa. Suas páginas eivadas de rancor fizeram emergir uma espécie de loucura religiosa e fervor doentio que continuaria presente na Igreja Católica pelos séculos seguintes, produzindo efeitos até o século XVIII. Bruxas se tornaram hereges que estavam além de qualquer redenção e precisavam ser esmagadas. O maior dos pecados era aderir a essas práticas nefastas e não importava se dizer inocente, pois a mera acusação já era capaz de produzir imenso dano.
No centro de toda essa horrenda tempestade de ódio figurava tão somente um livro. Um terrível livro que deflagrou tudo, um testemunho de como ideias podem ser perigosas.
Hoje, historiadores consideram que o Malleus Maleficarum está no mesmo nível de influência perniciosa que o Mein Kampf, que ecoava os pensamentos de Adolf Hitler. Em ambos, horríveis teorias foram capazes de contaminar a mente das pessoas e de se entranhar no tecido social, alterando a forma como as pessoas viviam. Não por acaso, ele é considerado como "um dos trabalhos mais sangrentos da história humana".
A caça às bruxas é tida como uma das piores atrocidades da história, mas se enganam os que pensam que ela é coisa do passado distante. Que esse livro contribuiu para instaurar um dos capítulos mais negros da história é inegável, assim como inegável é o fato de ainda haver perseguições em todo mundo.
Ainda existem muitos aspectos misteriosos no papel do Malleus Maleficarum como catalizador da histeria que se seguiu a sua publicação. Ele permanece como um tema fascinante a ser discutido e estudado. Como um obscuro livro, escrito por um autor mentalmente instável, pode ter ganho tamanha importância? Como suas teorias foram aceitas tão rapidamente e onde estavam aqueles que poderiam ter falado contra ele? Essas perguntas talvez jamais poderão ser respondidas à contento.
O livro abominável, versando sobre um mundo estranho, foi capaz de motivar tragédias, e ainda hoje continua a alimentar uma fogueira que arde vigorosa com preconceito e paranoia. Cabe a nós, que acreditamos ser melhores que nossos antepassados, a eterna vigilância, para que tal horror jamais venha a ocorrer novamente.
Livro de cabeceira do Torquemada, que assassinou e torturou várias pessoas, baseado nessa balela de bruxaria.
ResponderExcluirQuem gosta desse tema, indico os livros do historiador italiano Carlo Ginzburg, que investiga processos da inquisição na Era Moderna.
Cenários medievais, geralmente, quando tem gente da inquisição dão muito mais trabalho que as ameaças sobrenaturais.
Um período mais negro da história principalmente para as Mulheres! Um horror indescritível.
ResponderExcluirEm verdade há muito folclore acerca do papel da igreja católica na caça às bruxas. A maior parte não passa de propaganda iluminista do séc XVII e XVIII. O próprio martelo das bruxas foi proibido pela igreja católica, mas foi distribuído clandestinamente por seu criador.
ResponderExcluirAs fontes indicam que em verdade os tribunais inquisitoriais evitaram muito mais mortes do que causaram. A maior parte dos massacres foram perpetradas pelo braço secular, tal qual o massacre de Worms, no qual centenas de judeus morreram após o assalto à cidade, que foi comandado por Conde Emicho. Os casos de pessoas histéricas massacrando homens e mulheres pela europa são vários, sendo que a maior parte se deu no contexto da luta contra a heresia e os judeus.
Fato é que onde o tribunal se instaurou, vidas foram salvas, pois o processo era rigoroso e dogmático. Na maior parte das vezes havia absolvição ou pagamento de penitencias. A pena capital era rara, sendo que na Espanha, em 300 anos de inquisição, com mais de 325 mil processos, somente se contabiliza cerca de 2% de penas capitais.
Como disse, a maior parte da iconografia atribuída à inquisição nasceu com o iluminismo e espalhou-se com o anticlericalismo da revolução francesa. Não que não tenha havido doses de injustiças, mas fato é que há um exagero realmente desmedido no que foi a inquisição.
Falou tudo, amigo. Há muitos mitos históricos espalhados por aí, e cabe a cada um estudar para se livrar destas ilusões. Uma das maiores balelas são as mortes da inquisição, quando que na verdade que mais matou na História foi o secularismo
ResponderExcluirExcelente texto. Peguei uns trechos e levei para a sala de aula. História é conhecimentos arcanos. Foi bem bacana.
ResponderExcluirAgora, vou fazer um pedido. Tá fazendo falta uma resenha da série Mariane aqui no blog. É bem interessante. Ela cita o martelo das bruxas. Tem citação ao Lovecraft, Hawthorne, etc.
Não é lovecraftiana, mas é relativamente boa. Abraços.
Assistam aos filmes "The mark of devil" I e II (década de 70)
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