Nos anos 2000, a Chaosium, editora responsável por Chamado de Cthulhu, deu início a um projeto que tencionava lançar vários suplementos para seu RPG mais famoso. A ideia era publicar trabalhos de autores menos conhecidos ou material de fãs em um formato mais acessível e barato. Esse material foi chamado de Monografias e cerca de 40 delas foram publicadas até meados de 2010. Algumas monografias eram boas, a grande maioria tinha qualidade mediana e algumas infelizmente eram bem ruins.
Uma desses trabalhos, no entanto, se destacou desde o início e acabou se tornando a mais bem sucedida e conhecida dentre todas monografias. Escrita por Bret Kramer e publicada pela primeira vez em 2004, Machine Tractor Station Kharkov-37 (doravante apenas Machine Tractor), é um cenário one-shot com personagens prontos se passando na gélida União Soviética no ano de 1933.
Cenários de Chamado de Cthulhu tendo como pano de fundo momentos históricos tumultuados não são exatamente uma novidade, mas na época em que foi lançada, Machine Tractor era uma tremenda inovação. Ela tirava os jogadores de sua zona de conforto, a cidadezinha assombrada de Arkham ou alguma metrópole americana na Era do Jazz, e os lançava em um ambiente insalubre, repleto de desconfiança e paranoia, no auge dos expurgos de Stalin.
Um cenário nesse contexto já seria interessante por si só, permitindo ao Guardião explorar um ambiente no qual os personagens teriam de transitar nos bastidores do poder, lidando com burocratas, informantes e membros do partido dispostos a tudo para provar sua devoção ao Estado, inclusive denunciar os menores deslizes dos seus colegas. Junte a esse pesadelo orweliano uma pitada generosa de Horror Cósmico e pronto, temos a receita para algo realmente atraente.
Machine Tractor é um cenário bem montado sobre uma premissa aparentemente simples. A trama se desenrola em duas ou três sessões no máximo. Os investigadores assumem o papel de militares e técnicos de comunicação filiados ao Exército Vermelho que recebem uma missão de rotina. Eles devem seguir para uma comunidade isolada, uma fazenda coletiva chamada Kharkov-37 afim de reestabelecer as linhas de telégrafo que foram cortadas durante o inverno. Sem comunicação, ninguém sabe ao certo como estão as pessoas que trabalham na fazenda e como passaram o inverno. No entanto, desde o início parece haver algo muito estranho acontecendo.
Não é apenas o que cerca a missão, mas os segredos dos próprios personagens que ajudam a impulsionar a trama. De fato, a maioria dos personagens não são exatamente quem dizem ser e logo fica claro que cada um recebeu suas próprias ordens e que estas devem ser cumpridas. Além do que, alguns tem agendas particulares que podem entrar em choque com os objetivos designados pelos seus superiores e custar muito caro. Bem vindo à paranoia!
Sem saber quem é amigo ou inimigo, os personagens terão de lidar com situações imprevisíveis enquanto seguem à caminho da Estação Motorizada, encontrando lá algo ainda mais aterrorizante e profundamente perturbador.
Não vou dar spoilers à respeito do cenário, mas posso assegurar que o reconhecimento de Machine Tractor como uma das melhores monografias, senão a melhor, é bem merecido. O cenário consegue equilibrar pesquisa histórica, terror e situações viscerais de uma forma muito eficiente. As cenas parecem ser costuradas com o intuito de tornar o jogo cada vez mais sufocante, realçando os elementos de isolamento e desesperança que permeiam a trama inteira. Eu gostei do trabalho de pesquisa, com o autor fornecendo informações úteis para direcionar o Guardião e dicas para situar os jogadores na trama. É claro, conhecer minimamente esse período histórico ajuda a criar uma atmosfera mais adequado para a sessão.
O único senão à respeito de Machine Tractor é que a criatura envolvida, responsável pelo horror sobrenatural, acaba sendo um tanto quando óbvia para jogadores veteranos. Não é preciso mais do que algumas descrições para que os jogadores mais tarimbados saibam o que terão de enfrentar (e o quanto estão ferrados!) logo de início. Não chega a ser uma falha, mas se os indícios fossem mais nebulosos, a aventura poderia render ainda mais .
Ainda assim, Machine Tractor fornece uma trama diferente cujo maior atrativo é justamente fomentar o clima de desconfiança não apenas diante de criaturas ou de NPCs, mas entre os próprios jogadores. A medida que eles tentam cumprir suas ordens especiais, de preferência sem que os demais saibam, o nível de tensão segue crescendo até o momento em que o grupo terá de prestar tanta atenção nos colegas quanto nos horrores que os cercam.
Eu gostei muito dessa aventura, achei a premissa dela extremamente interessante, mas como é de hábito, fiz uma série de adendos e inseri uma trama paralela envolvendo uma nova ameaça além da que está presente no roteiro original. No fim, muita coisa acabou mudando.
Além das alterações na trama, incluí também alguns novos recursos e pistas para serem coletadas enquanto o grupo busca desvendar o mistério. Nas duas vezes que narrei o cenário, a primeira seguindo o roteiro original à risca e a segunda com as minhas mudanças, o resultado foi excelente. Modéstia à parte, as mudanças ajudaram a esconder um pouco melhor a identidade do monstro e criar um clima de suspense. Além disso, na segunda oportunidade, o cenário terminou com apenas um sobrevivente escapando de forma épica.
A seguir estão fotos do material de jogo que produzi para Machine Tractor Station Kharkov-37.
MATERIAL DO CENÁRIO
Machine Tractor é um cenário investigativo bem interessante, ele possui um mistério central que exige dos jogadores certo grau de experiência. Eles vão precisar interrogar suspeitos e conversar com um bom número de testemunhas para saber o que está acontecendo. Em um ambiente de desconfiança, terão de alternar momentos em que precisam convencer e bajular, com outros que será necessário intimidar.
Além disso, há uma boa quantidade de pistas físicas para serem processadas e relacionadas com a história. Eu cheguei a criar algumas adicionais para a minha versão.
Uma visão geral do material de jogo que inclui além dos Recursos, cartas, mapas, documentos, passaportes, registros e fotografias. O material é perfeito para a imersão dos jogadores.
Comprei a versão em PDF de Machine Tractor e mandei para a impressão. O suplemento não é grande, com algo em torno de 110 páginas. O miolo é preto e branco e com uma formatação que deixa um pouco a desejar. Eu soube que em 2008 foi produzida uma nova edição que corrigiu erros de digitação e clarificou alguns trechos confusos. Não tenho como avaliar como ficou pois só tenha a primeira versão, mas a revisão é muito bem vinda.
Visualmente o livro recorre a fotografias e desenhos, sobretudo de cartazes de propaganda reais usados na URSS no período em que se passa a trama. Eu gostei desse estilo que confere ao material um ar documental, mas os poucos desenhos relativos à história em si são bem ruins, uma amostra de como a arte no material da Chaosium pré-7a edição era tosca.
Ao menos as fotografias são boas, assim como os desenhos de veículos e equipamentos à disposição dos personagens. Uma nova edição, adaptando o material para a atual edição poderia ser uma ótima pedida.
FICHAS DE PERSONAGENS
Eu adaptei as fichas de personagens para a 7a edição e imprimi o material com essa fonte vermelha que me pareceu bem adequada.
Cada ficha acompanhava uma fotografia e o histórico, além de um cartão com o nome, a ocupação e o símbolo da divisão para a qual o personagem trabalhava, por exemplo, Exército Vermelho, TASS, Serviços Especiais etc.
Com nomes um tanto complicados e agendas particulares, achei que seria mais fácil para os jogadores poderem ler e entender quem é quem no grupo.
O grupo incluía alguns dos personagens prontos cujas fichas estão no final do livro, mas preferi adaptar algumas coisas e incluir mais alguns detalhes.
O grupo era composto dos seguintes personagens:
Capitão
Grigori Fyodorov, veterano do Exército Vermelho e comandante da missão.
Sargento Nicholai Dugov, militar auxiliar e homem de confiança.
Comissário
Pietr Ivanovich, Secretário de Ideologia do Partido.
Especialista
Técnico Yuri Kopolev, engenheiro e técnico em comunicações.
Oficial
Médico Visarion Iurikov Liubimov, médico à serviço do Exército Vermelho.
Professor Yevgeny Vassilovich Ullonov, Cientista com formação em Física e Astronomia.
Inclui também uma medida do quão fiel e devotados os personagens são aos seus superiores e ao Estado Soviético. Isso ajuda a estabelecer quais deles estão mais propensos a se desviar de suas ordens e quais seguirão à risca as diretrizes que lhes foram traçadas.
ORDENS INDIVIDUAIS
Eu escrevi as ordens secretas e agendas particulares de cada personagem para que eles pudessem se guiara través delas no curso da aventura.
Coloquei as ordens dentro dos envelopes com o nome e símbolo de cada facção para a qual os personagens trabalham. Na minha opinião, esse foi o ponto alto da história, com os jogadores preocupados em cumprir as ordens à risca e outros tentando cobrir qualquer rastro de atividade ilícita.
É claro, como manda a cartilha da paranoia, nem todos personagens eram quem diziam ser. Alguns estavam lá para observar e reportar, alguns para espionar e outros para cumprir ordens ainda mais drásticas sabendo de antão algumas informações sigilosas.
Entre os objetivos particulares, a missão colocava à prova as convicções de cada personagem, na medida que alguns deles podiam aproveitar os incidentes para garantir benefícios futuros ou ainda acertar velhas disputas de uma vez por todas.
O CÓDIGO SECRETO DA NKVD
Esse provavelmente foi meu recurso favorito no cenário. Com certeza, foi o que deu mais trabalho para fazer...
Ele simula um cartão de código usado pela NKVD para passar pistas e informações secretas aos seus agentes de campo.
O cartão postal com uma cena do Camarada Lenin discursando possui várias perfurações. Ao ser colocado sobre um mosaico de letras misturadas, ele revela uma mensagem secreta que apenas um agente da NKVD de posse do cartão seria capaz de decifrar.
Esse tipo de recurso interativo sempre é muito bacana nas aventuras, pois obriga o jogador a processar a pista. Se ele não encontrar ou for incapaz de decifrar simplesmente perde a pista e a solução do mistério pode acabar comprometido.
A CAIXA DE CIGARROS
Eu queria outro recurso interativo para a aventura e resolvi fazer essa caixa de cigarros soviéticos.
A ideia é que uma pista importante ficaria escondida dentro dela. Na época do jogo, comprei um maço e coloquei os cigarros dentro da caixa para disfarçar onde estaria a pista.
Funcionou muito bem, levou algum tempo até o grupo encontrar a pista.
Eu encontrei o modelo da caixa na internet, imprimi e colei ela em cima de uma caixa de cigarros de verdade, tampando as propagandas modernas. Com o tempo, a cola ficou meio frouxa e ela está precisando de um conserto.
Se eu for narrar de novo esse cenário, vou providenciar uma reforma.
OS MAPAS
Machine Tractor possui alguns mapas prontos dos assentamentos que o grupo explora e da Estação Kharkov. Eu não gostei muito dos mapas que acompanham o livro, são bem simplórios pra falar a verdade.
Fiz um mapa à mão, ficou um pouco melhor, mas ainda daria para fazer algo com acabamento mais cuidadoso. É outra coisa que vou precisar trabalhar se narrar esse cenário novamente.
Já o mapa da União Soviética eu encontrei em um Atlas antigo. Fiz algumas marcações de onde se passa a história.
O PASSAPORTE SOVIÉTICO
O passaporte soviético de um dos NPCs era originalmente de outro cenário se passando na Guerra Civil Espanhola. Mas ele serviu como uma luva para Machine Tractor.
Eu precisava identificar um dos NPCs e os documentos dele ficariam bem mais interessantes emitidos dessa maneira do que através de um simples documento de identificação.
Ali atrás tem uns cartões postais com propaganda estatal da época.
O interior do passaporte identifica seu dono e posto no Partido Comunista Soviético.
E sim, eu fiz uma pequena bandeira soviética para servir de prop na aventura.
HANDOUTS (RECURSOS DO GUARDIÃO)
A aventura em si tem uma boa quantidade de recursos para serem encontrados pelos jogadores como podemos ver nessa foto.
Eu complementei com mais alguns handouts adicionais e fotografias.
Esse é outro recurso que deu trabalho para fazer mas que teve um bom resultado. A carta foi escrita por alguém que logo em seguida meteu uma bala na própria cabeça, manchando o papel.
Procurei algumas palavras em russo e aproveitei para fazer um glossário com termos que poderiam ser empregados pelos jogadores. Na segunda vez que jogamos, eles entraram na brincadeira e foi um tal de Tovarish pra cá e pra lá.
Bom é isso,
Das vidaniya, camaradas!
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