segunda-feira, 14 de março de 2022

Segredos da Ucrânia - Adaptando os Mistérios do país para Chamado de Cthulhu


Nas últimas semanas o Mundo Tentacular colocou no ar uma série de artigos cobrindo mistérios e segredos da Ucrânia, país que possui o seu quinhão nada pequeno de estranhezas e bizarrices. O material pode ser usado facilmente como background para cenários e aventuras nesse lugar ou nos territórios vizinhos do Leste Europeu.

Mas que tal dar uma boa olhada nos elementos oferecidos nesses artigos e trazer tudo para um contexto onde os horrores lovecraftianos existem? Pegar cada um dos elementos e passar através do prisma distorcido dos Mythos de Cthulhu e ver no que vai dar.

Sem mais delongas eis aqui algumas ideias para encaixar o Mythos em elementos dessa série especial.

O MONSTRO DO LAGO SOMIN


O Monstro do Lago Somin parece ser algum tipo de aberração única, uma criatura surgida em alguma época ancestral. Possivelmente ele adormeceu e despertou milênios depois para aterrorizar indivíduos que jamais poderiam imaginar que tal coisa existisse em um mundo coerente e racional.

Embora a tentação de relacionar esse monstro reptiliano com a raça dos Lloigor seja grande, prefiro não fazer essa conexão. Os Lloigor são criaturas incorpóreas que escolhem adotar a forma de répteis terríveis, semelhantes a uma mistura de Dragões mitológicos com os muito reais Dragões de Comodo. Mas ao contrário do Monstro do Lago Somin - que parece realmente um predador que age pelo instinto, os Lloigor são perversamente inteligentes e ardilosos.

Essa criatura poderia ser resultado de um experimento ancestral do Povo Serpente que manipulava a ciência genética e a feitiçaria com igual habilidade. Posso enxergar o Lago Somin tendo ocupado o espaço que pertencia a uma cidadela de basalto negro que hoje se encontra nas profundezas. Talvez essa cidadela tenha servido de estação para experimentos genéticos que visavam criar uma espécie de guardião ou protetor para o Povo Serpente. Talvez ainda, por considerar o resultado demasiadamente instável, eles resolveram prendê-lo em uma câmara de êxtase que o manteria preservado por eras. Infelizmente, em algum momento do início do século XX essa jaula apresentou "rachaduras" e através delas, o profano resultado dos experimentos escapou de seu cativeiro disposto a espalhar terror no Lago Somin.

Perfeitamente adaptado a esse novo ambiente, a criatura se torna um predador extremamente perigoso e dá início as lendas sobre o monstro. Talvez algo em sua fisiologia o force a hibernar de tempos em tempos explicando a razão pela qual os ataques são separados por tantos anos.

AS CRIATURAS DE CHEMER


É possível pensar essa criatura bizarra simplesmente como algum monstro nativo da região, um criptídeo ainda a ser descoberto pela zoologia. Nessa interpretação eles seriam tão somente uma espécie de animal selvagem que reclamou a área em questão como seu território de caça. 

Mas para relacionar com o Mythos, eu não consigo deixar de pensar nesses seres através da ótica dos Carniçais. Essa raça de escavadores vorazes, sempre habitam próximo de assentos humanos, de preferência cidades com grande população, onde eles possam se aproveitar dos mortos de quem se alimentam. Não por acaso, eles vivem nos subterrâneos, escavando túneis que lhes permitem acessar os cadáveres para suas ceias noturnas. Mas o que aconteceria se eles fossem forçados a viver da caça em regiões pouco populosas. E se um Carniçal não tiver nada para comer por muito tempo isso não o deixaria mais agressivo?

Nem Lovecraft e menos ainda o RPG Chamado de Cthulhu expõem que os Carniçais possuem subdivisões raciais, menos "civilizadas" que adotam um comportamento e forma ainda mais animalesca. Mas que tal pensar nesse sentido?

As Criaturas de Chemer podem ser uma subespécie perdida de Carniçais, forçada a se adaptar a uma falta de alimentos que os forçou a regredir ao ponto de se tornarem totalmente selvagens e quase irracionais. Ao passo que os Ghouls lovecraftianos são em sua maioria humanos que regrediram a condição bestial pelo consumo de carne humana, esses seres teriam ido além, teriam se tornado completamente animalescos. Não guardariam apenas uma aparência canídea, teriam se convertido numa matilha selvagem que vaga sem destino. Com efeito eles andariam de quatro, teriam um olfato apurado e seriam carniceiros implacáveis em busca de presas que saciassem sua fome.

Outra interpretação poderia ser que eles são grandes cães que passaram pela mesma transformação que os humanos sofrem à caminho de se tornar Carniçais. Eles começam a existência como animais normais e aos poucos, através do consumo de carne contaminada, acabam se tornando algo muito mais assustador. Talvez uma matilha de cães das estepes em algum momento do passado tenha consumido a carne de carniçais e isso tenha dado início a sua transformação. Há possibilidades, muitas...        

BAGRES MUTANTES DE CHERNOBYL


Os Bagres Mutantes são um conceito interessante para lidar com os horrores nucleares resultantes de Chernobyl. A ideia de monstros mutantes criados pela dispersão radioativa do reator não é exatamente nova, na verdade é bem batida e já gerou todo tipo de criatura e aberração, sobretudo nos anos 1950 - com o Terror Nuclear.

Eu gosto especialmente da noção de que o lago radioativo criado após o desastre de Chernobyl possa ser habitado por toda sorte de horror mutante. Nesse caso, os Bagres Mutantes seriam uma raça menor de peixes assustadores e possivelmente carnívoros. Posso imaginar um cenário em que um grupo de televisão ou de pesquisadores resolve explorar a região para validar a lenda sobre esses peixes, descobrindo algo muito pior do que poderiam imaginar.

Além disso, eu sempre imaginei o acidente de Chernobyl como um tipo de experimento soviético para invocar Azathoth usando para isso um Reator Nuclear como templo. Os Insetos de Shaggai pelo que se sabe, fazem algo semelhante, invocando Azathoth para alimentar com energia as suas "naves templos piramidais". Não poderiam os cientistas soviéticos estar tentando a mesma coisa? A busca por uma fonte de energia inesgotável poderia passar pela invocação de Azathoth em uma tentativa absurda de controlá-lo. Usar o Caos Nuclear que o constitui como uma forma de energia ou quem sabe, arma mais poderosa que qualquer Bomba Tsar. É claro, o plano não teria dado certo e o resultado teria sido acobertado como o desastre de Chernobyl.

Mas o que os Bagres Mutantes tem a ver com isso? Bem, que tal imaginar que as energias dispersas por Azathoth ajudaram a criar essa raça de peixes que não apenas tem um gosto por carne humana, mas que veneram o Caos Primordial que lhes deu inteligência como seu Deus. Estariam eles em busca de sacrifícios e de uma maneira de contatar sua divindade? E se eles tiverem sucesso o que poderia acontecer?

Hmmm.... material para um cenário à vista! 

ARANHAS GIGANTES RADIOATIVAS


As aranhas gigantes podem estar inseridas no mesmo caso acima: Horrores Mutantes modificados por Chernobyl. Se funciona para Bagres, por que não com Aranhas Gigantes? E nada mais legal do que jogar uma horda de aranhas gigantes contra os investigadores.

Mas também é possível pensar em outras opções.

Os Ucranianos tem uma longa tradição cultural no que diz respeito a Aranhas. Segundo o folclore local, dá um azar enorme romper teias de aranha, pois elas são vistas como um símbolo de prosperidade. Pensei em explicar essa devoção para com aranhas através da existência de cultos ancestrais da Deusa Aranha, Atlach-Nacha. Essa divindade aterrorizante habita um covil coberto de teias que quando concluído, segundo as lendas marcará a destruição do mundo.

Talvez as Aranhas Gigantes presentes nessa Lenda Urbana sejam Filhas de Atlach-Nacha, membros do Culto que sofreram uma metamorfose bizarra e se transformaram em aranhas gigantes com rosto humano. Um Culto num vilarejo ou região urbana, devotado a Deusa Aranha seria bem interessante. Talvez esses cultistas realizem incursões na Terra dos Sonhos onde a deusa aracnídea tem enorme influência. Lá eles mantém um templo onde comungam com sua divindade e recebem seus favores.

Outra possibilidade seria usar as Aranhas de Leng, um tipo de aracnídeo gigante que pode ser trazido fisicamente da Terra dos Sonhos por intermédio de portais. Quem sabe um desses portais se encontra no poço de elevador, numa casa abandonada ou num porão, mantido ali há gerações pelos cultistas. Algumas Aranhas de Leng possuem uma amarga rivalidade com Atlach-Nacha na dimensão onírica. Isso explicaria porque elas estariam invadindo o Mundo Desperto. Seu objetivo seria desarticular o Culto e ficar com o seu portal. Nesse caso, os investigadores se encontrariam no meio de uma disputa entre Seres do Mythos e seus oponentes, membros de um Culto. 

De que lado os investigadores irão ficar?   

LIVRO DE VELES


O Livro de Veles é uma bela incógnita e pode ser usado de várias maneiras em um cenário se passando na Ucrânia.

É óbvio assumir que ele seja um Tomo com conhecimento blasfemo do Mythos. Escrito com símbolos misteriosos e glifos estranhos, ele precisaria de testes sucessivos de Cthulhu Mythos para reconhecer e estabelecer sua origem. Os símbolos podem ser algum dos idiomas proibidos do Mythos, possivelmente as Runas Mi-Go, já que Shub-Nigurath no contexto dessa ambientação tem importância na região e os Fungos de Yuggoth a veneram. Outra opção é o Aklo, uma espécie de idioma comum de vários povos ancestrais aprendido por feiticeiros e sacerdotes que estabeleceram contato com os seres do Mythos.

Segundo as lendas, o Livro de Veles é um grande tratado à respeito do misticismo, superstição e lendas das tribos eslavas primitivas. Seria interessante manter isso, acrescentando que alguns rituais e cerimônias descritos no livro são dedicadas a divindades do Mythos sobretudo Shub-Niggurath. Rituais envolvendo o florescimento e fecundidade do solo seriam de grande importância no tratado que conteria magias para invocar a Deusa e seus mil filhos.

A outra opção para o conteúdo de Livro de Veles seria ele versar sobre o Mito dos deuses irmãos Chernobog e Belbog. Nesse contexto o livro traria informações pertinentes sobre rituais e feitiços dedicados a essa entidade (que logo adiante veremos encaro como um avatar de Nyarlathotep).

De toda forma, o Livro de Veles poderia ser a fonte de horríveis revelações, conhecimento místico perigoso e de uma busca pelo Leste Europeu. Talvez ele contenha informações que justifiquem uma expedição ao Leste Europeu ou determine a localização de um local ou artefato desaparecido.

Sabendo que os soviéticos tem interesse em reaver ou até destruir o livro, ele pode atrair a atenção de perigosos oponentes. Alternativamente, os jogadores, no papel inverso, como agentes da NKVD podem ter sido enviados para subtrair o Livro de Veles e levá-lo de volta para a Mãe Rússia. Uma vez obtendo o livro, eles descobrem que tem em suas mãos algo extremamente perigoso e um dilema moral à respeito de entregá-lo ou não. 

A CIVILIZAÇÃO CUCUTANI-TRYPILLIAN


Civilizações misteriosas e perdidas são uma marca registrada presente em vários cenários de Chamado de Cthulhu. Há algo de profundamente misterioso e atraente em tentar determinar o que aconteceu com um povo antigo, conhecer suas tradições ancestrais e uma cultura esquecida.

Nesse contexto a Civilização Cucuteni-Trypillian oferece uma série de opções que podem, até com certa facilidade serem adaptadas ao horror do Mythos de Cthulhu.

O grande enigma sobre essa Civilização envolve seu desaparecimento. Os estudiosos buscam determinar o que aconteceu com eles, para onde foram e quais os fatores determinaram a destruição de suas cidades e cultura. Uma vez que trabalhamos com o folclore local, adaptando as crenças eslavas para o Mythos, me parece perfeitamente razoável encaixar que esse povo se dedicava aos Deuses da Dualidade (Belbog e Chernobog), louvando o primeiro, na mesma medida que temiam o segundo.

É possível que uma revelação aterrorizante, talvez o surgimento de uma Profecia tenha motivado a autodestruição da Civilização. Mas que revelação poderia ser essas que mobilizariam a população a apagar suas maiores realizações e anular sua passagem pelo mundo? Para um cenário envolvendo terror, uma revelação mística sempre cabe como uma luva. Talvez a tal Profecia envolva o fim dos tempos, a vinda de entidades poderosas, o despertar dos antigos ou quem sabe, algo ainda mais chocante.

Gosto de imaginar essa civilização diante de uma revelação bombástica que despedaçou seu sistema de crenças. Talvez eles tenham descoberto algo sobre a verdadeira natureza de seus deuses, quem eles são na verdade e o que representam. Talvez ainda eles tenham encontrado uma maneira de se comunicar com novos deuses ou seres vindos do céu e isso desestruturou sua sociedade? Ou ainda, que agentes da Grande Raça de Yith, tenham descoberto que essa civilização simplesmente precisava desaparecer pois representava um perigo para seus planos de conquista temporal.

Há muitas opções; uma Civilização como a Cucuteni-Trypillian permite imaginar uma infinidade de cenários. De uma expedição arqueológica enviada ao Leste Europeu no início do século XX até um pequeno grupo de estudiosos, reunidos para estudar um artefato recém descoberto pertencente a esse povo. O grande mistério seria determinar o que levou esse povo a desaparecer e se tal coisa poderia acontecer novamente em outro lugar nos dias atuais.

O SEGREDO DOS CAMPOS DOURADOS


Conforme foi comentado em mais de um artigo nessa série, a Ucrânia é um dos maiores produtores de alimentos da Europa. Ela é responsável por boa parte do pão que sustenta a Europa com exportações anuais de trigo na casa das milhares de toneladas.

Mas de onde viria toda essa abundância?

Já que estamos conectando a região com os Mythos que tal uma explicação medonha, que no entanto se encaixa como uma luva. Sim, a Ucrânia possui vastos campos dourados à perder de vista e um solo propício para o plantio, mas que tal determinar que isso tem um custo?

Desde o início dos tempos, a população local teria estabelecido uma espécie de pacto para promover a fecundidade do solo, a bonança das colheitas e riqueza agrária quase inesgotável. E quando se fala de abundância, fecundidade e fertilidade, é claro, estamos falando de Shub-Niggurath. A entidade é sinônimo de todas essas coisas, já que essa Deusa Exterior representa o conceito cósmico do crescimento e proliferação. Talvez os primeiros camponeses tenham estabelecido esse pacto que vigora até hoje, no qual eles recebem como benefício colheitas abundantes. Contudo, é claro, existe um preço a pagar e este é a subserviência total à Cabra Negra.


Não estou dizendo que todos os camponeses ucranianos seriam seguidores fiéis de Shub-Niggurath, mas que uma boa parte deles no passado distante assim fizeram. E algumas dessas tradições pagãs de adoração sobreviveram. Por exemplo, um determinado povoado isolado poderia realizar uma curiosa cerimônia de consagração dos campos na qual leva uma jovem virgem para lançar as primeiras sementes no solo. No entanto, outro vilarejo poderia ir mais longe, realizando um sacrifício anual antes da semeadura que garantiria a produção. Entre os rituais pagãos devotados à Deusa haveria espaço para sacrifícios, invocações e festivais.

Eu consigo imaginar enclaves afastados da Ucrânia, onde camponeses ainda mantém acesa a velha chama de adoração à Deusa de outrora. Lugares em que vigora uma espécie de sincretismo cristão-pagão que aos olhos de forasteiros poderia ser aterrorizante. Nesses lugares cobertos de imensos campos de trigo, as crias de Shub-Niggurath encontrariam um verdadeiro paraíso terreno. Os filhos da deusa protegeriam os campos e o abençoariam com sua semente profana. Tudo, dos frutos aos animais, do leite ao pão seria de alguma forma tocado pela deusa que poderia até mesmo ser invocada de tempos em tempos para rituais realmente importantes. Consigo imaginar até mesmo estações científicas operadas pelos Mi-Go com o objetivo de manipular geneticamente os grãos produzidos. 

Fico imaginando um cenário envolvendo forasteiros em viagem pelo interior da Ucrânia tencionando realizar um estudo antropológico sobre antigas tradições pagãs. Ou quem sabe técnicos agronomos em busca de informações sobre o solo local ou ainda fiscais do partido tentando encontrar soluções para uma crise de abastecimento nos anos 1930. 

Há muitas opções para tratar desse tema.   

HOLODOMOR


A Grande Fome é uma fonte quase inesgotável para cenários na Ucrânia nos anos 1930. Tragédias humanitárias, crises nacionais e incidentes marcantes podem servir de pano de fundo para cenários em Chamado de Cthulhu e não raramente resultam em excelentes aventuras investigativas, conferindo um viés de veracidade às tramas fantásticas. Nada mais assustador, afinal de contas, do que conectar a ficção com a realidade.

Acredito que um dos elementos mais interessantes num cenário envolvendo o Holodomor seria explorar as dimensões da tragédia. A fome, as privações, as injustiças e o caráter desesperador são combustível para descer rumo a um pesadelo repleto de desesperança niilista. 

As causas para o Holodomor poderiam ser humanas, mas incluir elementos do Mythos parece perfeitamente plausível. Quem sabe a coletivização imposta pelos soviéticos possa ter desarticulado a forma como o plantio era feito desde o início. Talvez as autoridades estatais, preocupadas com superstições e crendices, tenham ainda proibido a realização dos rituais pagãos, enfurecendo a Deusa que repentinamente ficou sem os seus sacrifícios. Quem sabe ainda, essas mesmas autoridades tenham descoberto, chocadas, que seres não totalmente humanos vagam pelos campos. Eles então teriam realizado missões para capturar ou destruir as crias de Shub-Niggurath. Finalmente, a destruição de alguns vilarejos pode ter motivado camponeses a rezar à Deusa e pedir que ela intercedesse enviando guardiões para confrontar os invasores.

Alternativamente, o Horror do Holodomor poderia atrair uma infinidade de criaturas do Mythos. 

Os Lloigor, seres dimensionais que se alimentam da desesperança e que adoram predar sobre populações expostas à tragédias são uma ótima pedida nesse caso. Seria fácil imaginar um ou mais Lloigor se estabelecendo na região durante o auge da carestia para atacar os camponeses. O suplemento Colheita Fria (que inclusive foi editado aqui no Brasil pela New Order) oferece um cenário que lida com esse contexto.


Outras criaturas que poderiam ser atraídas pela miséria humana seriam os nefastos Insetos de Shaggai. Essas pequenas monstruosidades vindas do espaço são atraídas pelo sofrimento humano e se deleitam em impingir sofrimento em suas vítimas. Uma vez que eles podem controlar humanos entrando em suas mentes, áreas onde vigoram regimes totalitários oferecem um perfeito ambiente para estas cruéis criaturas. Assumindo o controle de comissários, fiscais ou militares soviéticos, os Insetos poderiam estabelecer uma influência assustadora sem serem impedidos por ninguém. Comandando figuras chave na estrutura de governo, eles estariam em uma posição confortável para fazer o que desejassem.

Finalmente, os carniçais sem dúvida seriam atraídos pelo Holodomor, quase como moscas para o mel. Guiados pela quantidade sem precedentes de cadáveres, eles naturalmente viriam para a superfície afim de  se banquetear com a desgraça reinante. Os ghouls lovecraftianos aliás, experimentariam uma época dourada graças ao Holodomor, não apenas pela fartura de comida à sua disposição, mas com a chance de aumentar as suas fileiras. O tabu do canibalismo supostamente caiu por terra em algumas áreas assoladas pelo espectro da fome e isso pode motivar o surgimento de uma população cada vez maior dessas criaturas. 

Um líder carismático entre os ghouls poderia se destacar e dar início a uma terrível ameaça criando um reinado de carniçais na região. Fortes, em grande número e bem alimentados, eles não temeriam mais os homens e viriam à superfície reclamar aquilo que acreditavam lhes pertencer. A série Love, Death + Robots da Netflix possui um episódio na sua primeira temporada chamado Guerra Secreta. Ele trata de uma premissa muito parecida: um verdadeiro exército de criaturas das profundezas se espalha por uma região da antiga URSS, fazendo vítimas. Apenas a intervenção de militares consegue conter a ameaça, mas com um grande custo. Quem assistiu o episódio deve ter tido imediatamente a sensação de que aquilo serve perfeitamente para um cenário de horror lovecraftiano envolvendo ghouls.  
   
CHERNOBOG, O DEUS NEGRO


O mito do famigerado Deus Negro que personifica a crueldade, infortúnio e azar entre os povos eslavos parece perfeito demais para não figurar entre os avatares de Nyarlathotep.

Chernobog é uma divindade aterrorizante, uma entidade mais temida do que reverenciada, mais aplacada do que adorada. As tribos eslavas primitivas o tratavam como um Deus central em seu panteão e ele estava sempre próximo, disposto a espalhar sua mácula entre os mortais. Num contexto dos Mythos, um culto devotado a ele poderia se formar com o intuito de servi-lo e pavimentar o caminho para a vinda desse aspecto do Caos Rastejante. Seus cultistas seriam indivíduos dementes, desesperados e em busca de poder, pessoas dispostas a matar e sacrificar em nome de seu Deus. Posso imaginá-los como assassinos maníacos, sacerdotes com sede de poder e feiticeiros devotados a necromancia.   

Em um território marcado pela presença maciça de Shub-Niggurath, seria inevitável que não houvesse algum tipo de choque entre os cultistas das duas facções. Os princípios defendidos pela Cabra Negra são, afinal, inteiramente opostos aos do Caos Rastejante, quando ele veste essa máscara. Enquanto um representa a abundância, o outro vive na miséria, um é a fecundidade encarnada o outro a esterilidade completa. Uma guerra entre os membros desses cultos poderia trazer enormes repercussões e representar uma ameaça a todos na região.

Além disso, há um segundo fator a se levar em consideração. Segundo a mitologia eslava, Chernobog possui um irmão chamado Belbog, seu rival, totalmente inverso a ele próprio. Onde Chernobog é trevas e morte, Belbog é luz e esperança. Ainda segundo o folclore local, as duas forças se encontram em uma luta perpétua e de seu embate não é possível haver um vencedor uma vez que o equilíbrio é necessário para o cosmos continuar existindo. O princípio do equilíbrio cósmico entre forças antagônicas está presente em várias culturas e povos, representada mais claramente pela face negra e branca do yin-yang. Mas digamos que toda essa noção místico-religiosa não passa de uma piada cósmica engendrada pelo próprio Caos Rastejante. Não são raros os avatares de Nyarlathotep que se moldam as religiões humanas como uma forma de desdenhar das nossas crenças mais profundas. 

Talvez Chernobog e Belbog nesse contexto não sejam duas entidades distintas envolvidas numa guerra eterna, mas a mesma entidade, o próprio Nyarlathotep divertindo-se com as noções pueris de bem e mal da humanidade.

A revelação de tal coisa poderia causar enorme comoção entre aqueles que depositam em Belbog as suas esperanças de um mundo melhor e que temem Chernobog como o causador de todos infortúnios. Imagino se essa não poderia ser a Profecia que causou a devastação da civilização de Cucuteni-Trypillian que um dia habitou essa região. Talvez tal revelação esteja nas páginas do Livro de Veles, outra razão para o livro ser tão importante e raro.

*     *     *

Bom, com isso concluímos a série de artigos especiais dedicados a Ucrânia. 

O Mundo Tentacular espera que a grave crise seja resolvida o mais rápido possível, preferencialmente por intermédio da diplomacia e que não haja mais nenhuma escalada nesse conflito. O cessar das hostilidades e um cessar fogo são a única maneira de evitar ainda mais derramamento de sangue. 

2 comentários:

  1. Excelente material, mas acho interessante colocar estatísticas de jogo pra facilitar a introdução desses seres nos jogos...

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  2. Interessante! Fiquei curioso para ler algo sobre elementos misteriosos desse naipe na história/cultura brasileira.

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