quinta-feira, 31 de março de 2022

Sete Obsessões que influenciaram a literatura de Lovecraft

Mais de 80 anos após a morte de H. P. Lovecraft, sua influência sobre a cultura popular não mostra sinais de declínio. Em sua própria época, as influências de Lovecraft incluíam escritores de sucesso como o fantasista Lord Dunsany, os escritores ingleses de terror Arthur Machen e Algernon Blackwood, além é claro, de seu amado Poe, possivelmente aquele que mais o inspirava. Contudo, a ficção estranha de Lovecraft também foi moldada por uma série de eventos particulares em sua vida, interesses pessoais e múltiplas obsessões que foram, cultivadas em alguns momentos, realçadas em outros. A peculiar bibliografia de Lovecraft possui contos que revelam um pouco quem ele foi,  com suas idiossincrasias, preconceitos e brilhantismo.

1. ESPAÇO E ASTRONOMIA

Ao contrário da percepção popular, Lovecraft não se tornou exatamente um recluso quando adulto. Muito pelo contrário, ele possuía um círculo de amigos íntimos e empreendia viagens pela Nova Inglaterra e além para visitá-los.

Durante sua adolescência, contudo, ele foi afligido por doenças misteriosas (que podem ter sido de natureza psicológica), que muitas vezes o mantinham em casa e eventualmente o forçavam a abandonar a escola. Sendo um autodidata muito precoce, Lovecraft aproveitou esse período recluso para se educar em várias disciplinas e desenvolveu um grande interesse pela ciência, particularmente pela astronomia. Aos nove anos de idade, Lovecraft começou a publicar sua própria Gazeta Científica. Mais tarde, ele publicou The Rhode Island Journal of Astronomy e começou a enviar artigos astronômicos para publicações locais. Ele recebeu seu primeiro telescópio aos 13 anos, permitindo-lhe satisfazer seu amor pela observação de estrelas.

O fascínio de Lovecraft pelo vasto cosmos serviu de pano de fundo para o tipo particular de horror estranho que ele criou, em que os confins do espaço são povoados por seres incompreensíveis que, como as próprias estrelas, são estrangeiras e indiferentes às preocupações dos homens. Esse fascínio é visto em toda a obra de Lovecraft, mas em particular em A Cor que Caiu do espaço (The Color Out of Space), considerado por muitos como a obra mais sci-fi de Lovecraft. Nela um meteorito com qualidades desconcertantes cai do céu e altera horrivelmente a terra em que pousa, bem como os habitantes da fazenda. Já em "A Sombra fora do Tempo" (The Shadow Out of Time ) somos apresentados à duas espécies extraterrestres explorando a Terra para seus próprios fins e combatendo uma a outra em uma guerra desesperada por sobrevivência. 

Lovecraft também utilizou a descoberta de Plutão, como pano de fundo para conceder credibilidade à seu nono planeta, o terrível Yuggoth que servia como base avançada para outra raça de alienígenas, os Mi-Go. Na época da descoberta de Plutão, Lovecraft chegou a trocar correspondência com Percival Loew um dos astrônomos envolvidos no estudo. O autor se lastimava que suas notas em matemática nunca foram boas o suficiente para lhe permitir seguir carreira na astronomia, ciência que seria sua escolha mais óbvia 

2. O PASSADO

O profundo interesse de Lovecraft pelo passado formou um contraponto ao seu fascínio pelo espaço e pela astronomia. Quando menino, Lovecraft lia volumes da biblioteca particular de seu avô, tornando-se cativado pelo mito e pela história da Grécia antiga e desenvolvendo uma afinidade vitalícia pela era barroca. Um anglófilo dedicado (uma inclinação que provavelmente foi influenciada pela visão de sua mãe Sarah Susan Phillips Lovecraft de si mesma como uma sangue azul da Nova Inglaterra de ascendência inglesa), Lovecraft se mostrava particularmente fascinado pela Inglaterra do século XVIII e pela era da Guerra Revolucionária - embora em seu caso ele desejasse que os ingleses tivessem vencido. 

Ele também adotou grafias do século 18 (seus personagens muitas vezes se ofereciam para “mostrar” algo de interesse um para o outro), e uma vez apareceu em um jornal local usando um chapéu tricorne.

É o fascínio de Lovecraft pela história colonial e pelo puritanismo da Nova Inglaterra, qeue se reflete em mais de um de seus contos, juntamente com seu amor pela arquitetura colonial. Richard Upton Pickman, o personagem central de Pickman's Model (que é descrito como vindo da "antiga estirpe de Salem") quem afirma sobre sua nativa Boston: “Posso mostrar-lhe casas que existem há dois séculos e meio e mais; casas que testemunharam o que faria uma casa moderna desmoronar em pó.” Da 
mesma forma, há rumores de que Keziah Mason de The Dreams in the Witch House era inspirada por uma ou mais bruxas de Salem.

Não exagero dizer que Lovecraft via a si mesmo como uma espécie de antiquário, com uma grande devoção pelas coisas e modos do passado. Em mais de uma carta ele se disse fascinado pela mundo antigo e pelas conquistas dos antigos na mesma proporção que não escondia o desgosto pelo novo.

3. O PASSADO DE SUA PRÓPRIA FAMÍLIA



O pai de Lovecraft, Winfield Scott Lovecraft, foi confinado a uma instituição mental quando era muito jovem, vítima de sífilis, forçando o jovem Howard e sua mãe a morar com o avô Whipple Van Buren Phillips na mansão da família em Providence. Apesar das circunstâncias tristes da mudança, esses foram anos felizes para Lovecraft. Segundo sua biografia, foi lá que ele adquiriu o gosto pela literatura. 

Contudo, problemas financeiros colocaram a fortuna dos Phillips em risco crescente. A morte do avô Whipple em 1904 deu o golpe final, precipitando a venda da propriedade e forçando Howard, sua mãe e duas tias a se mudarem para uma casa mais modesta a três quarteirões a leste da mansão.

Lovecraft nunca superou a perda de sua propriedade familiar, juntamente com as associações de status e felicidade ligadas a isso. Ele passou a vida inteira ansiando pela antiga vida de sua família e arrastou os itens que foram recuperados da propriedade com ele por toda sua vida. Quando chegou a Nova York em 1924 para iniciar um casamento malfadado com Sonia Greene e dois anos malsucedidos de vida na cidade, ele carregava um baú de linho fino, porcelana e livros da propriedade Phillips, que acabaram se amontoando em um apartamento de solteiro no número 169 da Clinton Street, no Brooklyn, quando o casamento começou a desmoronar. 

A história de Lovecraft "Vento Frio" (Cool Air) reflete uma realidade similar: seu personagem central, Dr. Munoz, ocupa aposentos igualmente modestos repletos de ornamentos cavalheirescos. Na verdade, muitos personagens eruditos na obra de Lovecraft apontam para sua idealização do que seria a vida da classe alta.

Em "O estranho caso de Charles Dexter Ward", segredos de família e a herança do passado genealógico figuram como elementos de  suma importância na trama. Os antepassados continuam sendo importantes para o destino dos seus descendentes séculos depois.

4. FRUTOS DO MAR


Lovecraft amava a ciência e amava a história, mas havia uma ladainha de coisas estranhas às quais ele era avesso. Entre eles frutos do mar parece ser o mais estranho. 

Lovecraft foi mimado durante seus anos morando com sua mãe e tias, que lhe permitiram seguir seu próprio horário de sono e inclinações culinárias. Isso pode explicar por que Lovecraft manteve o paladar de uma criança de cinco anos ao longo de sua vida adulta, saboreando doces, mas rejeitando pratos mais adultos. Seu ódio por frutos do mar era tão forte, porém, que parece desafiar a explicação. Em uma ocasião em que um amigo tentou levá-lo para um jantar de mariscos no vapor, Lovecraft (que raramente xingava) teria declarado: "Enquanto você está comendo essa maldita coisa, eu vou atravessar a rua para comer um sanduíche".

Há também relatos de Lovecraft evitando a todo custo visitar mercados e feiras livres onde frutos do mar frescos eram vendidos. Para um nativo de Providence, a repulsa por mariscos devia ser algo complicado, já que muitos pratos locais  incluem frutos do mar. Além disso, sendo uma cidade costeira, frutos do mar estavam no cardápio de praticamente todos restaurantes.

Seja qual for o motivo do extremo desdém de Lovecraft por bolinhos de caranguejo, cavala e lula à dore, isso se provou uma inspiração fértil para muitas de suas criações horripilantes - desde as pessoas suspeitas em "A Sombra sobre Innsmouth" (The Shadow Over Innsmouth) até o popular deus com cabeça de polvo, Cthulhu.

5. A RELIGIÃO E O OCULTO


As histórias de Lovecraft estão repletas de ocultistas de todos os tipos, desde os adoradores de Cthulhu em O Chamado de Cthulhu até os devotos demoníacos em O Horror em Red Hook e os perigosos autores do temido Necronomicon. Enquanto alguns fãs adoram debater se Lovecraft era um ocultista, o fato é que ele não era.

 Embora confessasse ter “inclinações pagãs” quando criança, Lovecraft era um ateu convicto e um materialista autoproclamado. Foi seu ceticismo que o levou a colaborar com Harry Houdini, que se orgulhava de ser um desmistificador da superstição (a publicação da colaboração de Lovecraft e Houdini The Cancer of Superstition foi interrompida pela morte prematura de Houdini em 1926, embora o manuscrito tenha sido recentemente redescoberto).

Lovecraft era profundamente fascinado pelo ocultismo, apesar de sua estridente rejeição a ele. Essa dualidade se devia, principalmente porque o ocultismo  servia para aprofundar a sensação de pavor em seus contos. Apesar do sabor que os cenários ocultos concediam às histórias de Lovecraft, a magia era frequentemente revelada como produto de alguma forma de ciência que a humanidade não entendia. Seu conceito de Horror Cósmico rejeita os confortos da religião, apresentando um universo frio, indiferente e ausente de um Deus benevolente.

6. XENOFOBIA


O preconceito de Lovecraft tem sido uma questão difícil para muitos fãs de terror e fantasia. A xenofobia, de um tipo ou de outro, está no cerne de muitos dos seres estranhos, alienígenas e vis que povoam as histórias de Lovecraft. 

Seu racismo foi mais estridente durante seus malfadados anos na cidade de Nova York, e isso se reflete em trechos em que cita o “labirinto de miséria híbrida”, os “rostos escuros de estrangeiros” e “adoradores do diabo persas” retratados em The Horror at Red Hook , bem como as “pessoas amarelas de olhos vesgos” que pululam sobre a paisagem infernal no final de He. 

Também ficam evidentes em contos anteriores, como The Facts Concerning the Late Arthur Jermyn and His Family, onde a revelação de que Jermyn cruzou com uma deusa macaco branca aponta para um horror à mistura racial. Alguns críticos também encontraram racismo em outras histórias – como o povo peixe de The Shadow Over Innsmouth, ou pessoas mais suspeitas em The Doom That Came to Sarnath … ou talvez ele realmente não gostasse de peixe?

No final da vida de Lovecraft (ele morreu em 1937 aos 46 anos), ele começou a suavizar suas opiniões e a aceitar mais pessoas que eram diferentes dele, mas ele nunca se transformou no que poderíamos chamar de progressista hoje. Muitos fãs modernos acharam difícil conciliar seu respeito por seu gênio com seu desgosto por suas visões problemáticas.

7. LOUCURA


Os personagens das histórias de Lovecraft estão sempre à beira da loucura. Quer eles comecem uma história tendo acabado de escapar de uma instituição mental (como o personagem-título em O Caso de Charles Dexter Ward) ou se eles enlouquecem no final (como o descendente de la Poer em Os Ratos nas Paredes), os personagens estão sempre descobrindo algum conhecimento proibido que os fará perder sua razão e abraçar a loucura.

Lovecraft teve seus primeiros encontros com a insanidade com a hospitalização de seu pai e a instabilidade geral de sua mãe. Pode ser que ele temesse o mesmo destino para si mesmo, já que era propenso a doenças psicossomáticas e sonhos extremamente vívidos na juventude. Se assim for, certamente explicaria sua adoção feroz do materialismo e do ateísmo. No entanto, Lovecraft também via o cosmos como aquele em que o homem existia lado a lado com um conhecimento que, se compreendido, o levaria à beira do abismo.

A loucura não é um mero coadjuvante nas histórias de Lovecraft, ela está em toda parte, pairando como uma ameaça tão aterrorizante quanto os monstros mais assustadores. A insanidade atinge os que leem os livros blasfemos, nos que adoram os antigos e em meio aos que exploram mistérios proibidos.

*     *     *

Lovecraft com suas peculiaridades, suas idiossincrasias e manias, deixou um legado duradouro e uma brilhante obra que nem ele mesmo, poderia imaginar, se tornaria tão importante.

Um comentário:

  1. gostaria muito de ver uma análise sua do jogo Bloodborne, que é uma das melhores adaptações do horror lovecraftiano. tem tudo isso que está na lista. xD

    ResponderExcluir