sábado, 28 de maio de 2022

A Noite dos Desmortos - Quando Mortos-Vivos caminhavam na Inglaterra do século XII


Ao longo da história sempre existiram lendas e relatos sobre mortos-vivos. Estes assumem muitas formas, incluindo carniçais, vampiros, fantasmas e outras criaturas que não estão nem vivas e nem mortas e que habitam a parte mais escura do reino sobrenatural. Tais contos remontam ao início da história registrada, abrangendo todos os tipos de fenômenos estranhos e inexplicáveis, com relatos obscuros e esquecidos cuja autenticidade é impossível corroborar. 

No século XII, o cronista britânico William de Newburgh escreveu um extenso registro ao longo de vários volumes chamado Historia Rerum Anglicarum, que cobre meticulosamente a história da Inglaterra de cerca de 1066 até 1198. Este texto é um dos mais antigos conhecidos sobre a história do país e um dos registros mais confiáveis sobre sua origem, tanto que ele é tratado com enorme interesse por pesquisadores. Ao longo dos volumes, o autor compila textos e relatos históricos mais antigos que foram transmitidos a ele verbalmente permitindo tecer uma rica tapeçaria sobre os primórdios da história inglesa. Em sua maior parte, tudo parece se basear em relatos e textos fundamentados que foram considerados pelo autor suficientemente confiáveis. 

No entanto, entre as páginas que descrevem batalhas marcantes, intrigas palacianas e uniões forjadas por interesses políticos, existem relatos que realmente se destacam pela sua natureza bizarra. São trechos extensos e incrivelmente detalhados que mencionam criaturas mortas-vivas como algo que faz parte do cotidiano. No quinto volume de seu tratado, ele se dedica a descrever relatos misteriosos sobre mortos-vivos que ele considerou convincentes o bastante para integrar sua obra. 

O primeiro desses relatos conta a história de um estranho misterioso que por volta de 1196 veio da província de York buscando se estabelecer num povoado aos pés do Castelo de Anantis. De acordo com o relato, esse estranho era um homem rico, mas de má índole, e de quem ninguém gostava. O sujeito se estabeleceu em uma rica propriedade e se tornou odiado por todos que precisavam tratar com ele. Ainda assim, conseguiu encontrar uma jovem esposa que controlava com mão de ferro e frequentemente agredia fisicamente. O ciúme doentio que sentia era tamanho que ela sequer podia olhar para outros homens.


Esse tirano passou a suspeitar que a esposa o estava traindo, e então decidiu pegá-la em flagrante. Ele avisou que teria de viajar, mas na verdade se pôs a vigiá-la. Não foi preciso esperar muito, pois logo encontrou a esposa na companhia de outro homem. Furioso, saiu de seu esconderijo com uma faca na mão, tencionando matá-los, mas o amante que acompanhava a mulher foi mais rápido e deu com um porrete na cabeça do vilão. Enquanto o amante fugia, a esposa ajudou o marido a deitar na cama e tratou seu ferimento. Ele ficou acamado por semanas e como os ferimentos eram graves, um monge veio oferecer a extrema unção. O religioso implorou que ele se arrependesse de seus pecados, o que foi prontamente recusado. Disse que preferia morrer consumido pelo ódio que lhe queimava a alma a perdoar o crime da esposa. De fato, ele acabou morrendo naquela mesma noite.

No dia seguinte, foi enterrado e a população local parecia aliviada. A esposa não chegou a ser punida, pois sua devoção em cuidar do marido enfermo foi considerada prova de constrição. Ademais, ninguém estava disposto a recriminá-la por trair um marido tão vil. Contudo, não seria tão fácil se livrar dele. A partir daquela noite, os aldeões começaram a falar sobre uma presença sinistra vista perambulando nas imediações, muitas vezes seguido por um bando de cães ferozes. 

Aqueles que viram aquela figura soturna reconheceram nela as feições cadavéricas do homem recém enterrado. Ele se esgueirava procurando qualquer um que estivesse sozinho; as atacava e as espancava até a morte antes de desaparecer na escuridão que parecia envolvê-lo. Em pouco tempo, a população local foi forçada a se esconder em suas casas à noite, mas nem isso adiantava, pois o morto-vivo usava seu hálito venenoso para encher as casas com uma pestilência que obrigava seus habitantes a abrir as portas em busca de ar puro. As pessoas começaram a abandonar o povoado a ponto dele se tornar uma cidade fantasma. Diz a lenda que, certa noite, o monstro voltou à mansão onde residiu em vida para tomar posse do que era seu. Ele encontrou a esposa e a trancou no porão onde a torturava noite após noite.  


Alguns poucos corajosos decidiram que algo precisava ser feito. Uma dupla de irmãos cujo pai havia morrido vítima do hálito maligno do morto-vivo planejaram sua vingança. Protegidos pela luz do dia, eles invadiram a morada do desmorto com objetivo de achar seu lugar de descanso. Num dos aposentos protegidos com tábuas e grossas cortinas acharam o monstro repousando num caixão. A visão da criatura era ainda mais horrível do que imaginavam: o cadáver emaciado tinha uma face transfigurada pelo ódio e estava coberto de sangue. 

Eles atravessaram uma estaca de madeira em seu coração fazendo jorrar uma quantidade copiosa de sangue, muito mais do que o normal. Isso os convenceu de que ele se alimentava do sangue dos vivos. O arrastaram então para fora e arrancaram sua cabeça antes de incendiá-lo. A essa altura, um grupo de curiosos já havia se reunido para assistir o morto-vivo ser destruído de uma vez por todas. Diz-se que quando ele foi reduzido a cinzas todos aqueles que haviam adoecido pelos olores tóxicos da criatura milagrosamente recuperaram sua saúde. 

Curiosamente, após relatar essa história bizarra envolvendo uma criatura sobrenatural morta-viva, William de Newburgh volta a falar da história normal e mundana da Inglaterra, como se ela não fosse nada de estranho. Mas esse não era o único trecho bizarro na extensa obra de William de Newburgh. Ele voltava a abordar o tema dos mortos-vivos várias vezes ao longo de seu compêndio histórico. 

Em outro trecho, aproximadamente por volta de 1190, é descrita a morte de um homem de posses que foi enterrado em Berwick, na Escócia. Da mesma forma que o morto-vivo da história anterior, este, também se ergue de seu túmulo, vagando acompanhado por uma matilha de cães ferozes rosnando e latindo. A criatura morta-viva de Berwick começou a espreitar pela cidade atacando as pessoas, mordendo-as e drenando seu sangue. O monstro exigia um tributo de sangue toda semana na forma de uma pessoa saudável a ser entregue na porta do cemitério onde havia estabelecido seu covil. Quando as pessoas se negaram a ceder às suas demandas, muitos começaram a adoecer e morrer de algum tipo de pestilência misteriosa. 


Segundo William de Newburgh, uma multidão de aldeões furiosos decidiu fazer justiça. Eles localizaram a tumba do morto vivo e o desenterraram. Em seguida, o empalaram com uma estaca de madeira, o desmembraram e queimaram os restos até se tornarem cinzas, encerrando seu reinado de terror. Mais uma vez, William de Newburgh após narrar esse episódio mórbido volta a abordar a história real. 

No entanto, ele simplesmente não consegue se conter, e algumas páginas mais tarde outras histórias desse tipo invariavelmente surgem.

Uma delas vem do Condado de Buckinham, onde um homem morreu e foi enterrado, apenas para retornar dias mais tarde possuído por uma força nefasta. O morto começa a perambular pelos vilarejos próximos, matando crianças e delas se alimentando para horror de todos. Diferente dos outros mortos vivos, este é descrito como um tipo de assombração ou fantasma incorpóreo, identificado como um miasma de vapor cinzento de fedor nauseante - uma assombração (ou Wraith). O demônio é visto por várias pessoas que testemunham sua aparência degradante. Em dado momento, um sacerdote local escreve uma carta pedindo que alguém seja enviado de Londres para lidar com o problema. 

Um clérigo chamado Chalmers é enviado e este tem a ideia de encontrar o local onde o cadáver foi enterrado. Ele visita o local e encontra a cova cavada de dentro para fora e um caixão arrebentado onde repousa "um cadáver medonho, inchado além da proporção, apodrecido e devorado por larvas de moscas". O religioso ordenou para que lhe trouxessem óleo que ele utiliza para atear fogo nos restos, colocando um fim ao pesadelo.


Finalmente, temos um conto impressionante de um lugar chamado Mosteiro de Melrose, onde um capelão supostamente morreu e foi enterrado. Este capelão em particular parece não ter sido nenhum santo em vida. Segundo rumores ele era um homem perverso que havia assassinado aldeões para roubar suas posses e tomar suas esposas. Ao morrer ele não havia encontrado descanso: Levantava todas as noites para andar em torno de sua propriedade, sussurrando e gemendo. 

A população local estava compreensivelmente angustiada com tudo isso. Tratavam o morto-vivo como um Ghoul (carniçal), um ser que se baqueteava dos restos mortais de inocentes sepultados no cemitério. Um grupo de aldeões pediu ajuda aos monges locais, implorou-lhes que os ajudassem a livrar-se desse flagelo antinatural. Dois frades e dois serviçais que lá trabalhavam concordaram em prestar socorro. Os quatro homens foram ao cemitério do mosteiro e esperaram que a coisa se mostrasse, o que parece ter sido um trabalho tedioso pois três deles se afastaram, deixando um jovem frade sozinho na vigília.

Assim que ele estava sozinho, o capelão morto-vivo surgiu e começou a escavar um túmulo recente em busca de uma refeição cadavérica. O frade assistiu horrorizado a criatura desenterrar um defunto recente e dele se alimentar vorazmente. Enquanto o morto-vivo chupava os ossos em busca de tutano, o frade se esgueirou por trás dele com um machado que havia trazido. Com um golpe bem dado ele enterrou a lâmina no crânio da abominação. O capelão morto-vivo cambaleou para trás e tentou escapar, mas o frade o perseguiu até uma cripta onde ele se enfiou. Felizmente, os companheiros do frade voltaram e, depois de ouvir o que havia acontecido, esperaram até o amanhecer para terminar o trabalho que ele havia começado. Quando a porta da cripta foi aberta, o cadáver estava ali inerte, com o machado e uma “grande quantidade de sangue que havia coberto o piso do sepulcro”. Os quatro arrastaram o carniçal de seu local de descanso, levaram-no para fora do cemitério e o reduziram a cinzas. 


A narrativa é mencionada casualmente em meio a relatos de história legítima, e realmente nos faz pensar por que o autor sentiu a necessidade de incluir tal coisa em sua obra. De acordo com William de Newburgh, esses casos vieram de fontes respeitáveis e eram críveis ao ponto que valia a pena mencioná-los. Embora a palavra "vampiro" nunca seja mencionada em nenhum deles, não é difícil ver como eles podem se encaixar na mitologia dos mortos-vivos.

Diante de todos esses relatos é impossível não nos perguntar o que diabos estava acontecendo na Inglaterra desse período e por que tais registros constam em meio a textos históricos? Isso tudo seria simples folclore ou haveria algo mais? Seja lá qual for a resposta, tais relatos são uma fonte impressionante de informações sobre uma época em que as pessoas viviam com medo, sufocadas pelas suas crenças e superstições.

4 comentários:

  1. Como de costume, ótimo texto, e narrativa. Sou fã do seu trabalho!

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  2. As histórias batem com a lenda do Draugr (vampiro morto vivo nórdico).
    Todos esses, ghoul, draugr, corpo seco(aqui no Brasil), strigois e vrykolakas(que são lendas do leste europeu que deram origem aos vampiros modernos) falam da exatamente mesma lenda, sobre pessoas cruéis e muito apegadas e apaixonadas pela própria vida, que quando morrem ficam presas aos corpos e começam a perseguir e drenar familiares pra se manterem nesse estado de meia vida na qual ficaram presas, por serem apegadas demais aos seus bens.

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