O artigo anterior a respeito dos Goblins de Hopkinsville deixa em aberto a origem e a identidade das misteriosas criaturas responsáveis pelo cerco a Fazenda Sutton. Como todo bom enigma sobrenatural, é praticamente impossível determinar o que eram os seres se é que realmente existiram. Entretanto, podemos levantar hipóteses e suposições (afinal, todos os alegados especialistas fazem isso).
Lendo o texto é impossível para quem conhece a obra do romancista galês Arthur Machen dissociar esses "goblins" do lendário Povo Pequeno (Little People) que figuram de forma proeminente em várias de suas estórias.
Após ler a estória dos Goblins, achei que seria um bom momento para falar do Povo Pequeno.
Após ler a estória dos Goblins, achei que seria um bom momento para falar do Povo Pequeno.
Segundo a literatura de horror de Machen, o Povo Pequeno, conhecido no folclore da Irlanda como Daione Sidhe e pelo nome Tylwyth Teg no País de Gales constitui uma raça nativa das Ilhas Britânicas. Essas criaturas viviam originalmente na superfície e eram de muitas formas semelhantes aos humanos, embora tivessem pequena estatura e feições delicadas. Os primeiros colonos humanos a chegar às Ilhas teriam sido os Celtas, que desembarcaram no litoral por volta de 1000-15000 aC. Eles encontraram o povo pequenino e imediatamente começaram a disputar espaço com ele. Sucessivas lutas fizeram com que o Povo Pequeno fugisse para a segurança de subterrâneos escavados sob montanhas e ravinas nas partes mais remotas do interior do país. Eles passaram a habitar essas regiões primitivas, criando ali os últimos refúgios de sua raça em meio a completa escuridão e isolamento. Geração após geração, essas criaturas privadas da luz do dia começaram a mudar, sofrendo uma progressiva degeneração que os transformou em monstros de pele almiscarada, olhos brilhantes e aparência bestial.
Ainda conforme a mitologia de Machen, a humanidade perdeu o contato com o Povo Pequeno após seu êxodo para as profundezas da terra. Aos poucos, os homens esqueceram desse povo e de que ele realmente existiu em uma passado distante. As únicas lembranças a respeito deles, passaram a figurar no reino das lendas e dos mitos. A memória do Povo Pequeno foi gradualmente esquecida e absorvida pelo folclore das Ilhas Britânicas, incorporado ao conjunto de crenças sobre os sidhe, fae ou como chamamos hoje em dia, fadas.
Elfos, anões, duendes, sprites, trolls, goblins, brownies, ninfas, dryades e todos os mitos primevos que segundo o folclore das ilhas habitam as florestas, teriam surgido a partir das esparsas informações remanescentes sobre o Povo Pequeno.
Mas Machen deixou uma brecha aberta na relação entre humanos e o Povo Pequeno e explorou essa ligação em sua Literatura de Horror.
Em contos como "The White People", "Out of the Earth", "The Novel of the Black Seal", "The Shinning Pyramid", Machen considera que embora os humanos acreditem que o povo pequeno não passa de uma lenda inofensiva, na realidade tais seres continuam existindo. Mais do que isso, o povo pequeno guarda um rancor duradouro contra os humanos que os forçaram a uma existência lúgubre nas entranhas da terra. Eles sabem que os humanos foram os responsáveis pela sua degeneração e pelo confinamento imposto aos seus ancestrais, e esse sentimento se traduz em um ódio cego. Quando humanos inadvertidamente adentram seus domínios, existentes nos ermos mais selvagens além da fronteira da civilização, as consequências tendem a ser dramáticas.
Pessoas sensíveis são capazes de sentir a presença do Povo Pequeno espreitando e vigiando. Talvez esse "sexto sentido" tenha sido herdado de nossos antepassados que enfrentaram esse mesmo povo. Muitos ao sentir essa "presença invisível" preferem se afastar, cheios de maus pressentimentos e sensações desagradáveis. Contudo, aqueles, alheios ao perigo ou os que preferem ignorar seus pressentimentos e continuam se embrenhando cada vez mais fundo nos domínios do povo pequeno acabam invariavelmente caindo em uma de suas armadilhas. E para esses não há retorno.
É claro, na obra de Machen, nem todo o contato entre humanos e o Povo Pequeno resulta em morte. Por vezes, coisas mais tenebrosas que a morte, podem ocorrer...
Em "The White People" a jovem protagonista ingenuamente entra em contato com o Povo Pequeno acreditando que eles são bondosas entidades dos contos de fadas. Ela não imagina o perigo que corre ao trocar presentes com as criaturas.
Em "The Novel of the Black Seal" o personagem tenta trazer à tona os segredos de uma civilização pré-humana nas montanhas do País de Gales e descobrir a verdadeira natureza de uma criança que parece esconder um segredo assustador.
Já em "The Shinning Pyramid" um homem encontra estranhas pedras cobertas com a confusa escrita Aklo do Povo Pequeno, e ao tentar decifrar esses objetos acaba despertando a ira das criaturas.
Mas em nenhuma outra estória a presença do Povo Pequeno causa tanta repulsa e horror quanto em "The Great God Pan". Não por acaso, na opinião de H.P. Lovecraft esta é uma das maiores obras de literatura fantástica escritas. Nessa genial estória, o Povo Pequeno age de forma demoníaca e absolutamente maligna. Em "O Grande Deus Pã" as criaturas estão dispostas não apenas a assassinar, mas violentar e enlouquecer a protagonista a ponto de fazer com que a realidade perdesse o sentido na sua mente combalida.
Arthur Machen talvez tenha sido o primeiro dos autores de ficção fantástica a tratar do Povo Pequeno e das fadas perversas, mas com certeza ele não foi o único. Jovens autores são inclinados a emular escritores que eles admiram e respeitam, Robert E. Howard não era exceção. O autor americano, muito lembrado pelos seus contos dentro do gênero Sword & Sorcery (Conan, Kull, Solomon Kane) demonstrou claramente sua afinidade com a obra de Machen ao utilizar o Povo Pequeno em muitas (e excelentes) estórias.
Howard tomou emprestado o Povo Pequeno para alguns de seus mais celebrados contos dentro do gênero Horror. Coube a ele também fazer a ligação entre o Povo Pequeno e as entidades do Mythos de Cthulhu.
Na concepção de Howard, o Povo Pequeno é o blasfemo resultado da união de uma raça anti-diluviana, o Povo Serpente da Valúsia com seres humanos. Os primeiros homens a colonizar as Ilhas Britânicas encontraram ali uma sociedade formada por medonhos Homens Serpentes, espécie ancestral cuja civilização, em um determinado tempo extremamente avançada na ciência e na magia, vinha decaindo gradativamente. Incapazes de enfrentar o grande número de humanos que migrava para seus domínios, o Povo Serpente foi retrocedendo cada vez mais para o interior da ilha. Logo eles tinham razões para temer sua própria extinção. Como forma de perpetuar a espécie, alguns tentaram procriar com fêmeas humanas gerando criaturas híbridas que não podiam se passar por humanos, mas que guardavam algumas similaridades com estes.
Vistos com desconfiança e repulsa pelos conquistadores humanos, os híbridos se refugiaram sob ravinas e montanhas, escavando túneis cada vez mais profundos no solo. Numerosos refúgios existiriam na Britânia Central e no País de Gales, locais até pouco tempo intocados pela presença humana. O tempo e o completo isolamento, em conjunto com as costumes selvagens por eles praticados, terminaram por sepultar de vez qualquer traço de humanidade que um dia vieram a possuir. O resultado foi uma progressiva degeneração em uma raça primitiva, bárbara e feroz.
Chamados em algumas estórias de "Vermes da Terra", o Povo Pequeno de Howard é tão (ou até mais) perigosos do que o criado por Machen.
"The Little People" foi o primeiro conto de Howard trazendo a raça de híbridos degenerados que habitam as montanhas selvagens do País de Gales. Um dos personagens, um jovem dono de terras recém chegado a isolada região cita Machen e "The Shinning Pyramid" referindo-se ao ambiente tenebroso onde escolheu fincar raízes. Pouco depois, horríveis criaturas tentam raptar sua irmã e arrastá-la para os subterrâneos. Ele deve resgatá-la de um destino pior do que a própria morte.
No conto seguinte, "The Children of the Night" (considerada uma de suas melhores estórias de horror) Howard aprofunda a ligação entre o Povo Pequeno e o Mythos de Cthulhu relacionando as criaturas com seu próprio Tomo de conhecimento profano, o Nameless Cults. Nessa estória, o narrador acidentalmente descobre ter sido lançado em um passado ancestral, habitando o corpo de uma prévia encarnação, na época em que homens enfrentavam o Povo Serpente pelo controle das Ilhas Britânicas. Após lutar com dezenas de híbridos com feições reptilianas, ele retorna a sua época deparando-se com uma revelação chocante.
"People of the Dark", o conto seguinte envolvendo o Povo Pequeno também está inserido no universo do Mythos. Nessa aventura negra, o narrador novamente é transportado para o corpo de um antepassado - no caso ninguém menos do que o próprio Conan o Bárbaro (personagem icônico de Howard). Uma vez habitando o corpo do cimério ele enfrenta uma situação, que guarda estranha similaridade com os acontecimentos recentes de sua vida. Ele tem que enfrentar um rival, resgatar sua amada e ainda confrontar horrendas criaturas que habitam o interior de uma caverna.
Finalmente "Worms of Earth" é o conto mais significativo da série de Howard a respeito do Povo Pequeno (e de longe o meu favorito!). Na trama, o líder bárbaro Bran Mak Morm (anteriormente citado em "The Children of Night"), promete vingança contra os romanos que invadiram as Ilhas Britânicas e massacraram seu povo. Ele se alia aos vermes da terra, uma raça de seres banidos para as profundezas pelos seus antepassados e que se transformaram em monstros bestiais. Para forçar os vermes da terra a conquistar seu intento, Bran deve recuperar um artefato perdido e assim fazer com que as criaturas obedeçam suas ordens. Mas prestes a conquistar sua tão desejada vingança, Bran descobrirá que algumas alianças não devem ser forjadas, nem mesmo contra o poder de Roma.
Pioneiros da ficção fantástica como Arthur Machen e Robert E. Howard conseguiram subverter os contos de fadas pintando as lendas infantis com cores sombrias e sinistras. Sua contribuição continua gerando frutos ao longo dos anos com contos de fadas nada indicados para crianças. Se obras como o filme "O Labririnto do Fauno", as séries "Grimm" e "Once Upon a Time" ou os quadrinhos da Vertigo intitulado "Fábulas" existem hoje em dia, devem muito aos precursores que trilharam antes esse caminho.
Ótimo post !!!
ResponderExcluirShow, bom demais esse artigo
ResponderExcluirVou separar um tempo para reler "O Grande Deus Pan" de Arthur Machen.
ResponderExcluirExcelente! Excelente texto. Sou muito fã da obra do Robert E. Howard e estou explorando os genias escritos do Machen atualmente. Ótimo artigo, ótimo blog. Iä! Iä! Cthulhu fhtagn!
ResponderExcluirEu traduzi "The Great God Pan" de Arthur Machen e coloquei na Amazon. Ótimo texto, é interessante ver como Lovecraft e Machen adaptavam lendas tradicionais para suas histórias.
ResponderExcluirhttps://www.amazon.com.br/Grande-Deus-Ana-Lima-Mello-ebook/dp/B017HPH8XM/ref=sr_1_1?s=digital-text&ie=UTF8&qid=1458157594&sr=1-1&keywords=arthur+machen