Uma das imagens do artigo a respeito da "verdadeira" fábula da Bela e a Fera sempre me intrigou.
Trata-se da imagem, de uma pintura à óleo renascentista que mostra um homem bem vestido à moda da época, mas com a face completamente tomada de cabelos (é essa encabeçando esse artigo). Não por acaso, a imagem é frequentemente relacionada com o conto de fadas, mais especificamente com a personagem da Fera. Eu já havia visto essa imagem, mas nunca busquei sua origem.
Fiz uma pesquisa e acabei encontrando alguns detalhes a respeito dela. Quem é a pessoa retratada?Qual a sua origem? Como veio a ser retratada já que é algo que demandava muito dinheiro?
A história é mais incrível do que se poderia imaginar. começa na metade do século XVI na França, justamente na coroação de Henrique II. De acordo com registros de época, o jovem Rei recebeu um presente incrivelmente exótico de um dos seus nobres convidados, um "homem selvagem" aprisionado em uma jaula dourada.
"Homens Selvagens", ou woodwose, eram criaturas fabulosas meio-humanas e meio-animais parte da mitologia da Europa medieval. Eles eram retratados como seres cobertos de pelos que se tornavam furiosos à noite. Algumas histórias davam conta que eles eram responsáveis por roubar e devorar crianças. A presença de um alegado homem-selvagem capturado na corte de Rei Henrique causou sensação e foi fonte de enorme excitação entre os cortesões. Todos ficaram impressionados com a descoberta e pediam para vê-lo.
Temendo que tal coisa pudesse constituir um perigo para a criatura e obviamente para o público, os conselheiros do Rei enviaram o espécime para as masmorras afim de estudá-lo.
Uma ilustração medieval que mostra um Woodwose - Hopmem Selvagem |
Após uma investigação cuidadosa, os médicos da corte e acadêmicos reais determinaram que a estranha criatura não era realmente um homem-selvagem ou mesmo um homem, mas uma criança. Sua face e membros eram estranhamente cobertos de um cabelo grosso de cor castanha, mas fora isso, ele era uma criança normal.
O menino havia sido capturado nas Ilhas Canárias - um território da Espanha na costa do Marrocos. Ele foi pego por marinheiros portugueses e levado para a embarcação como curiosidade, posteriormente foi enviado para a Europa e vendido a um nobre que então o presenteou ao Monarca francês acreditando se tratar de um ente mágico. A criança de aproximadamente dez anos, sabia falar e disse que seu nome era Pedro Gonzalez. Os médicos observaram o comportamento do menino e concluíram que ele não era tomado da selvageria que caracterizava os homens-selvagens das histórias. Pelo contrário, ele se comportava como uma típica criança de 10 anos.
Hoje, acredita-se que Pedro sofria de uma doença congênita chamada Hipertricose (Latim para "Muito cabelo"), uma condição genética extremamente rara. Embora a Hipertricose seja melhor compreendida hoje em dia do que nos tempos de Pedro, ela ainda constitui um desafio para os pesquisadores. De acordo com dermatologistas os casos confirmados são raríssimos, limitando-se a menos de 100 indivíduos adequadamente identificados na literatura médica desde 1600. Com isso, é realmente difícil analisar a doença.
No século XVI, as pessoas ainda acreditavam na existência de seres fantásticos como gigantes, anões, fadas entre outros. Algumas pessoas que fugissem do padrão de normalidade, que fossem muito altas, muito baixas ou com aparência diferente, podiam ser vistos como descendentes ou parentes dessas criaturas mágicas. Era exatamente o caso do menino das canárias: sua aparência lhe valeu o apelido de "fera", "besta" e "lobisomem". Alguns não tão fascinados pela sua aparência clamavam para que ele fosse executado ou ao menos mantido preso na masmorra.
Contudo, a rara condição de Pedro fez com que ele passasse a ser visto com enorme curiosidade. Ele foi apelidado de "Barbet", uma raça de cão belga de pelagem comprida. Tendo concluído que o menino não era perigoso, o Rei da França ordenou que ele fosse tratado com respeito e que recebesse educação digna de um nobre. Recebeu ainda um fundo para se sustentar, além de um nome latino - Petrus Gonsalvus. Em determinado momento de sua vida, Gonsalvus chegou a ocupar uma posição relativamente importante na corte.
Catarina de Medici ao lado de Pedro Gonzales, chamado de Barbet. |
Henrique II morreu em 1559 após receber um ferimento fatal em uma justa. Sua viúva, Catarina de Medici, eventualmente se tornou a regente do trono. Caterina decidiu que Petrus poderia continuar na corte e mais, ordenou que ele deveria se casar e ter herdeiros. Um dos objetivos da Rainha ao invetivar isso era saber se os filhos de Petrus nasceriam com a mesma condição do pai.
Petrus desposou uma mulher que também se chamava Catherine de sobrenome desconhecido. Acredita-se que a mulher escolhida não sabia da aparência de seu futuro noivo até o dia que foi apresentada a ele, justamente no dia da cerimônia. Petrus deveria ter 25 anos na época, a noiva 17.
Um ano após o matrimônio, Catherine deu a luz a seu primeiro filho - um menino que nasceu sem a condição do pai. O segundo filho também nasceu imune a hipertricose. Catherine deu a luz a pelo menos mais quatro crianças, em um total de seis. Destes três nasceram com hipertricose, condição que foi transmitida hereditariamente a pelo menos 3 netos.
Catherine e Petrus viajaram através da Europa com suas crianças e foram fonte de enorme curiosidade e fascínio onde quer que chegassem. Até onde se sabe, a família sempre foi tratada com gentileza. O Imperador Rodolfo II dos Habsburgos, considerado um intelectual esclarecido e excêntrico, convidou a família a visitar a Corte em Viena. Lá ele comissionou artistas a fazer um retrato da Família Gonsalvus - trajando roupas formais. Acredita-se que posteriormente a família tenha se fixado em Parma, na Itália, onde foram empregados pelo Duque Ranuccio Farnese.
Esse seria o fim da história, mas indo além descobri mais um pouco.
Entre os tesouros que um dia pertenceram a poderosa Dinastia dos Habsburgos encontra-se uma curiosa coleção de quadros executados no final do século XVI.
A jovem Antonietta |
Um desses quadros é de uma menina chamada Antonietta. A menina tinha entre 8 e 9 anos quando foi retratada, ela veste um traje amarelo fino, uma grande joia em forma de cruz e tem uma expressão plácida bastante singela. Ela poderia ser facilmente confundida com uma jovem aristocrata qualquer, não fosse um pequeno detalhe: seu rosto estar coberto de cabelo.
Antonietta é a filha mais jovem de Pedro Gonzales, tratada assim como seu pai como uma curiosidade em toda Europa. Os Habsburgos criaram um Gabinete de Curiosidades, um tipo de Biblioteca e Coleção de objetos estranhos trazidos de várias partes do mundo no Castelo de Ambras, na cidade de Innsbruck. O retrato da menina costumava ficar na parede do Gabinete. Ela teve direito a estudo e educação patrocinados pela poderosa família.
Os Habsburgos também encomendaram a criação de um tomo científico com o título "Animalia Rationalia et Insecta" que dedica um capítulo inteiro aos Gonsalvus.
A Coleção encomendada pelos Habsburgos |
Ironicamente, a linhagem dos Habsburgos, enfraquecida por sucessivos casamentos consanguíneos, acabou chegando ao fim - ao menos na Espanha, onde se extinguiu por completo. Já a Família Gonsalvus, os primeiros indivíduos documentados com hipertricose na história, continuaram gerando herdeiros. Um dos filhos de Antonietta teria trabalhado para um Cardeal em Capodimente e outro se tornou um poderoso mercador. Eles se espalharam pela Europa e pelo Novo Mundo gerando inúmeros descendentes, alguns com a condição, mas a maioria sem ela.
Não há como saber quando Pedro Gonzales passou a ser associado com a fábula da Bela e da Fera, ou mesmo se tal coisa aconteceu durante sua vida, ou apenas depois de sua morte. O quadro em poder dos Habsburgos, entretanto, foi muitas vezes associado ao conto de fadas elaborado por Madame Villeneuve. Para todos os efeitos ele se tornou a imagem da Fera.
Como dizem, as fábulas, mesmo as mais fantásticas, tendem a refletir o mundo real e ao que parece "A Bela e a Fera" tem bases bastante sólidas, plantadas na história...
E numa imagem.
E numa imagem.
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