Concluindo a resenha de KULT - Divinity Lost.
Uma campanha de KULT se inicia com um primeiro vislumbre além da Ilusão e a partir daí, os personagens começam a explorar o esquema em busca da verdade. Em um jogo com tal proposta, os personagens não deveriam ser "pessoas normais", por isso o jogo propõe a criação de personages "com algo mais".
Uma campanha de KULT se inicia com um primeiro vislumbre além da Ilusão e a partir daí, os personagens começam a explorar o esquema em busca da verdade. Em um jogo com tal proposta, os personagens não deveriam ser "pessoas normais", por isso o jogo propõe a criação de personages "com algo mais".
Os personagens são indivíduos que de alguma forma sentem a existência de algo além. Eles descobrem que a vida é mais do que trabalhar, ganhar dinheiro, comprar coisas, procriar e morrer. É justamente esse inconformismo que servirá para abrir seus olhos e expôr a mentira que permeia condição humana. Os jogadores podem escolher diferentes arquétipos que fornecem as linhas gerais para a construção dos personagens. Cada arquétipo segue uma proposta dentro da ambientação, e fornece ideias que se encaixam no panorama do jogo.
Uma verdade inconveniente a respeito das edições antigas desse RPG é que as regras eram muito fracas. Elas pareciam incomodamente raquíticas para comportar um jogo dessas dimensões o que acabava amarrando e atrapalhando a fluidez das sessões. KULT - Divinity Lost reparou esses problemas ao converter o jogo para o Sistema Apocalipse World.
Eu não sou um conhecedor desse sistema de regras, então vou fazer um breve sumário de como elas funcionam, sem me aprofundar nos pormenores.
A essência do jogo está em algo chamado Moves (Movimentos) que são testes feitos para serem comparados em uma tabela de resultados. Cada movimento tem um gatilho (por exemplo "Investigar uma cena", "enganar um NPC" ou "reagir a um acontecimento apavorante") e uma tabela que define os resultados. Em geral uma rolagem de 15 ou mais é um sucesso. De 10 a 14 um sucesso parcial. E 9 ou menos constitui uma falha. O jogo usa dois dados de 10 lados que são somados para obtenção do total.
Durante a criação dos personagens, os jogadores distribuem pontos de modificador +2, +1 e +0 para suas estatísticas básicas de Fortitude, Reflexos e Força de Vontade. Cada personagem possui ainda modificadores de +3, +2, +1, +1, +0, -1 e -2 para distribuir em atributos secundários que definem seu Carisma, Frieza, Intuição, Percepção, Razão, Alma e Violência. Como você deve ter intuído, esses modificadores refletem os pontos fortes e fracos dos personagens. Eles serão acrescidos ou diminuídos do rolamento de dado nos testes. Cada movimento é baseado em uma combinação de Atributos que fornecem um bônus ou uma penalidade.
Além disso, o sistema disponibiliza uma extensa lista de vantagens e desvantagens que deverão ser escolhidas pelos jogadores dependendo de seu arquétipo e que irão conceder benefícios ou complicadores adicionais no momento de tentar os Movimentos. Não existe uma lista de habilidades, todas elas decorrem diretamente dos atributos básicos e das vantagens escolhidas.
Famoso nas outras versões do jogo, Divinity Lost reedita os Dark Secrets (Segredos Negros) dos personagens, dessa vez "obrigando" que todos os personagens adotem ao menos um deles. Esses segredos são na nova ambientação uma espécie de catalizador emocional que serviu para "abrir os olhos" dos personagens para a realidade do mundo. Esses Segredos são realmente apavorantes e medonhos, coisas que vão desde ter sido vítima de experimentos, de ter tido contato com espíritos, ter realizado algum pacto demoníaco ou ainda ter cometido algum crime ou atrocidade. Os Dark Secrets ganharam uma importância crucial no jogo e são uma ferramenta para mergulhar na alma dos personagens, por vezes encontrando algo especialmente atroz ou reprovável.
Uma das coisas mais bizarras em KULT é justamente a possibilidade de interpretar indivíduos que não apenas sofreram coisas horríveis, mas que muitas vezes cometeram atos moralmente questionáveis. Mais um motivo para que o grupo tenha maturidade em explorar essas facetas.
Uma das coisas mais bizarras em KULT é justamente a possibilidade de interpretar indivíduos que não apenas sofreram coisas horríveis, mas que muitas vezes cometeram atos moralmente questionáveis. Mais um motivo para que o grupo tenha maturidade em explorar essas facetas.
Sendo absolutamente franco, eu ainda não testei o sistema para dizer se gostei ou não, o que posso dizer é que no papel ele parece bem sólido e promissor. O Apocalipse Engine tem fãs ardorosos que elogiam bastante sua fluidez e simplicidade, o tipo da regra que privilegia o jogo descritivo e rápido. Em resumo: meu tipo de regra e o estilo de jogo que me agrada.
Uma coisa interessante que mesmo um iniciante no sistema pode perceber é que os Monstros e criaturas possuem um bloco de estatísticas com números bem superiores. Isso se dá porque os horrores de KULT são coisas que os personagens não devem enfrentar. Para quem está habituado com Chamado de Cthulhu, não causa surpresa que os inimigos sejam extremamente poderosos. Aqui a coisa é realmente desigual, e a morte pode chegar rapidamente se um jogador quiser enfrentar de peito aberto uma dessas abominações.
O livro é excepcional em explicar as regras e o sistema. Tudo vem acompanhado de exemplos e descrições que ajudam não só a entender a mecânica, como absorver o estilo do jogo e suas muitas nuances. KULT a meu ver demanda um Narrador com certo traquejo e experiência na condução de aventuras. Não estou dizendo que um iniciante não possa narrar uma sessão desse jogo, mas me parece importante saber como transitar entre situações limítrofes e descrever cenas viscerais com detalhes que nem todos teriam estômago para fazer.
Uma vez que a ambientação é tão diferente, o livro propõe dicas e soluções para estruturar a sessão e escrever seu próprio cenário. É claro, muitos podem imaginar que cenários de KULT são estranhos e estes não estão errados em assumir a dificuldade em escrever essas histórias. Eu definiria o jogo como um Horror Hardcore, com doses generosas de investigação e mistério e um pouco mais do que uma pitada de sanguinolência e medo. As informações de como conduzir a narrativa, como centrar o foco nos personagens, manter o ritmo e criar excitação e expectativa são extremamente valiosas, não apenas para esse jogo, mas para qualquer outra ambientação no gênero horror.
O terço final do livro é de longe o meu preferido e que mais me impressionou. Ele trata dos Segredos e Verdades sobre a Ilusão e ergue o manto sobre os seres aterrorizantes e as bombásticas revelações da ambientação. Ali estão não apenas as estatísticas dos horrores mais medonhos que vi em muito tempo (e isso dito de um fã de Cthulhu!), mas ideias para usá-los em sua história e descrições cruas que parecem saídas da cabeça de um demente. Sério mesmo, algumas dessas descrições são combustível de pesadelos que vão fazer o motor de sua imaginação rodar em altíssima octanagem. O livro desfralda ainda as terras além da Ilusão, lugares que os personagens poderão visitar em seu caminho para a iluminação, ou para onde serão arrastados aos berros por algum carcereiro vingativo.
Finalmente temos uma vasta coleção de magias e rituais que os personagens poderão obter e desenvolver ao longo do seu desenvolvimento. Em KULT, não há algo como nível de experiência, mas isso não significa que os personagens ficarão estagnados, pelo contrário, poucos jogos evocam com tanta força a noção de que conhecimento é poder (ainda que extremamente perigoso).
Há diferentes Caminhos que permitem ascender na direção da Divindade - a saber Sonho, Paixão, Morte, Loucura e Tempo-Espaço, cada qual com seus riscos, recompensas e pormenores. Os jogadores podem usar um ou mais destes caminhos em suas buscas, mas nenhum é tranquilo ou "normal". Tudo é profundamente estranho e degenerado, então esteja preparado para assistir e permitir que seu personagem tome parte em situações realmente bizarras.
A despeito de seu teor indigesto, o texto é fluido, bem escrito e incrivelmente cativante. Você sente vontade de continuar lendo e não parar até ter concluído o trecho e então seguir para o próximo. Nada é gratuito, e as informações, embora pesadas, são nada menos do que fascinantes. Eu reconheço que leio devagar e que gosto de voltar e ler trechos novamente, mas aqui, li em uma sentada só.
Finalmente, precisamos comentar sobre o aspecto físico de KULT - Divinity Lost e aqui cabem vários parágrafos. pois o visual do jogo é impressionante.
Falamos muito a respeito do capricho e cuidado que as editoras dispensam ao material de RPG atualmente. Existe um novo e louvável padrão de apresentação e qualidade que os Livros tem seguido - capa dura, papel de qualidade, marcador de páginas, etc. Mas por vezes é necessário elogiar um novo patamar de excelência atingido. E esse livro merece ser elogiado.
A qualidade gráfica é nada menos do que excepcional, com um acabamento e diagramação impressionantes. Tudo ali parece ter sido trabalhado com esmero e dedicação, contribuindo para um resultado notável. O livro oferece uma profusão de páginas escuras de um preto atordoante. Por sinal, jamais vi um livro com tantas páginas escuras. As primeiras 40 páginas do livro (que tem cerca de 350) são PRETAS, com um pequeno texto e uma arte arrebatadora em painel.
A capa é sensacional, uma das minhas favoritas, no mesmo patamar da icônica ilustração do anjo dividido por uma tesoura que ilustrava a primeira edição. Quando participei do Financiamento Coletivo havia a chance de escolher entre duas opções de capa, a primeira com a personagem em destaque vestida e a segunda (exclusiva para o FC) com os seios à mostra. Eu preferi a segunda. É um trabalho fantástico de Bastien Lecouffe Deharme, um dos principais artistas envolvidos no projeto do livro. A personagem em perspectiva parece saída de uma tela renascentista.
A arte é aliás um elemento usado como instrumento para desarmar o leitor.
Não me entenda mal, ela é incrivelmente boa, mas dolorosamente minuciosa. Nunca se viu tantos detalhes anatômicos em estilo full-frontal in your face (total frontal na sua cara). Não me refiro apenas a nudez e sexo, aos corpos mutilados e sanguinolentos, mas a detalhes menores que chocam pelo aspecto visceral. As expressões dos personagens retratados parecem remeter a painéis medievais, extraídos de vitrais góticos ou telas à oleo. Expressões de dor e sofrimento, ocasionalmente de êxtase e prazer se multiplicam pelas páginas escurecidas.
As cenas de paisagens e vistas urbanas são contemporâneas, retratando cidades escuras e sujas, com arranha-céus de aço e concreto desafiando céus enevoados. O ambiente de KULT é o das metrópoles populosas e frias, com arquitetura arrojada e desafiadora, mas ainda assim, prisões que o próprio homem construiu, como gaiolas douradas.
Eu sempre fui um fã de KULT, tanto da ambientação, quanto de sua proposta. Sempre achei ele estranho e fascinante na medida certa. Narrei algumas vezes e joguei ainda menos, mas cada sessão foi uma experiência diferenciada. Há uma mística a respeito desse jogo, algo que beira o proibido e que por isso talvez o torne tão atraente.
O que posso dizer, sendo um veterano do sistema (ouso me considerar como tal), é que KULT jamais esteve tão bem representado quanto nossa quarta edição.
Eu pretendo testar esse jogo em breve, não é o tipo de "fera" que ficará para sempre na estante. Bestas como essa, por vezes querem sair e precisam ver mesa de jogo. Eu só espero estar à altura de controlá-la depois.
Se for te narração de Kult, grava ela e põe no canal ! Quero ver tudo isso em prática hahaha
ResponderExcluirLindo! ♥
ResponderExcluirAmei o seu texto!
Fiquei curioso e tentado em desafiar os limites do meu "medo" escatológico e do distorcido. KULT eu conhecia como uma versão inusitada do "In Nomine", mas não! É muito mais profundo e visceral como o primeiro filme de Hellraiser. (Segundo suas palavras).
Muito Obrigado novamente por seu texto primoroso!
Espero que faça uma resenha tão maravilhosa para o meu RPG favorito "Witchcraft".
Obrigado! ^^b
uma matéria sobre Witchcraft é uma coisa que eu queria ler também...
ExcluirExcelente resenha. É verdade que a Red Box vai trazer Kult, como alardeado na net?
ResponderExcluireu fiquei meio desapontando quando soube do sistema usado nesta nova edição, mas ao que tudo indica, pelo conjunto da obra o jogo parece estar excelente!
ResponderExcluirFaz essa mesa aí on-line. Se puder jogo, senão assisto :)
ResponderExcluirPara quem se interessar em comprar a edição à venda na Amazon, que fique ciente de que é uma versão censurada. Nada de genitais à mostra, nada de crianças acorrentadas. Literalmente é uma versão castrada de Kult. Eu soube disso da pior maneira, espero que outros não cometam o meu erro.
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