Era uma noite fria de inverno em 1933 quando o advogado aposentado de meia idade, Monsieur René Lancelin chegou em sua casa em uma distinta vizinhança na cidade de Le Mans. Ele havia combinado de apanhar a esposa e filha e levá-las até a casa do cunhado para um jantar. Mas ao chegar encontrou a porta trancada por dentro e as luzes apagadas, exceto por uma fraca luz de vela que vinha do sótão. Ele bateu à porta, chamou, mas ninguém respondeu.
Lancelin achou aquilo muito estranho, mas concluiu que a esposa Leonie e a filha Geneviéve haviam seguido para o encontro mais cedo. Chegando lá, ele descobriu que nenhuma delas havia aparecido o que o deixou preocupado. Lancelin foi até a delegacia de polícia e explicou a situação e logo ele foi até a casa acompanhado de policiais. Lá forçaram a porta que havia sido trancada e barricada com um armário. As luzes elétricas não estavam funcionando. Os policiais apanharam lanternas e começaram a fazer uma busca pelo local ainda sem saber o que havia ocorrido. Os homens subiram as escadas onde se depararam com uma cena de horror indescritível.
Mãe e filha jaziam largadas em uma poça de sangue. Elas não haviam sido simplesmente assassinadas, e sim, massacradas com uma selvageria que chocou até os mais calejados agentes policiais. As mortes foram algo hediondo. Havia sinais de tortura: as unhas tinham sido arrancadas, os corpos apresentavam ferimentos de faca e mais terrível, os olhos haviam sido vazados. O golpe final, desferido na cabeça, foi produzido com um objeto pesado que transformou os rostos numa massa sangrenta. O sangue havia escorrido em profusão sendo absorvido pelo tapete.
Lancelin, que estava junto dos policiais no momento da descoberta reconheceu sua mulher e filha. Os policiais perguntaram a ele se havia mais alguém residindo na casa e ele pálido como papel teve a presença de espírito de confirmar, dizendo que duas criadas viviam num quarto no sótão. Os policiais temiam que elas também tivessem sido vítimas de um maníaco, pois apenas um louco seria capaz de crime tão medonho. Enquanto um policial escoltava René para o lado de fora, dois outros subiram as escadas até o aposento no alto da escada. A porta estava trancada e eles bateram repetidas vezes ordenando que quem estivesse lá abrisse imediatamente. Não obtiveram resposta, então resolveram arrombar a porta.
Lá dentro encontraram algo inesperado, duas mulheres nuas deitadas na mesma cama. Elas estavam desgrenhadas, sujas de sangue e aparentavam um estado de confusão mental. Quando um policial se aproximou, uma delas apanhou um lençol e se cobriu enquanto a outra permanecia olhando para o vazio. Elas foram identificadas como Christine e Lea Papin, empregadas que trabalhavam na casa. Quando perguntadas a respeito do que havia acontecido, simplesmente responderam que eram as responsáveis pelas mortes. Após vestirem robes e lavar o rosto sujo de sangue, foram conduzidas até a chefatura de policia para interrogatório. No quarto das irmãs a polícia encontrou uma faca de trinchar, um martelo e um pesado jarro de metal. Os objetos foram usados para matar a patroa e a filha, todos estavam cobertos com o sangue das vítimas.
Uma entrevista preliminar obteve a confissão. A razão para o crime? A irmã mais velha, Christine contou que enquanto passava roupa, o ferro quebrou pela segunda vez na semana. Madame Lancelin reclamou do ocorrido e ela não gostou do tom que insinuava ter sido algo proposital. As irmãs foram presas e autuadas ali mesmo.
O crime sangrento chocou e deixou a população de Le Mans estarrecida. As duas irmãs trabalhavam na casa havia seis anos, desde 1926, quando Christine chegou com a idade de 21 e Léa com apenas 15. As duas tinham reputação de serem jovens esforçadas, quietas e atenciosas em suas tarefas domésticas. Elas não tinham amigos próximos, mas eram tidas como pessoas honestas e de boa índole. Nenhuma possuía passagem criminal ou vícios conhecidos e tinham como hábito frequentar a igreja local todos os domingos.
A pergunta que prevalecia na mente de todos era a mesma: O que teria levado as irmãs a um crime tão medonho, descrito pelos jornais como uma verdadeira orgia de sangue? Os cidadãos de Le Mans suspeitava que algo mais sério pudesse ter acontecido. Rumores davam conta de que as duas pudessem ter sido possuídas por alguma entidade sobrenatural que as obrigou a cometer aquela atrocidade. O caráter bizarro das mortes chamava atenção por envolver uma tortura desprezível.
Após uma briga iniciada na cozinha, as criadas seguiram a patroa escada acima e a esfaquearam na sala onde ela caiu. Genevieve veio em seu socorro, provavelmente atraída pelos gritos, e também foi agredida. As duas caíram, feridas com cortes de faca, mas ainda vivas. Enquanto agonizavam os olhos delas foram arrancados pelas assassinas com as próprias mãos. Um dos olhos de Madame Leonie estava no cachecol que ela usava o outro foi deixado sob seu corpo. Os da filha haviam sido destruídos nos degraus da escada esmagados. O golpe final foi dado com um pesado jarro de metal. Posteriormente uma das irmãs temendo que as vítimas ainda estivessem vivas encontrou um martelo que foi usado para golpear a cabeça delas repetidas vezes. A quantidade de sangue era tamanha que havia penetrado no piso e penetrava no teto do andar inferior. Havia manchas de sangue e massa encefálica nas paredes e no teto, projetadas pelos golpes desferidos.
A descrição causou um terror tão grande que algumas pessoas passaram a desconfiar de seus próprios empregados e funcionários, temendo que aquilo era apenas o primeiro passo de uma revolta coletiva da classe trabalhadora. Muitas pessoas acabaram perdendo seus empregos por conta do clima de paranoia que se instalou.
Da noite para o dia, as irmãs Papin se tornaram conhecidas em toda França. Era o "Crime do Século", como estamparam as manchetes alguns jornais. Correspondentes internacionais levaram a notícia através do Atlântico e o infame caso das Irmãs Homicidas ganhou repercussão na América.
Havia um componente adicional escandaloso ao crime. Muitos especulavam que as irmãs eram amantes por terem sido encontradas nuas na mesma cama. Os rumores davam conta que após o assassinato elas haviam feito sexo na cama que compartilhavam o que chocava ainda mais a sociedade conservadora francesa. Por conta de todos esses elementos bizarros, a sanidade das duas começou a ser questionada.
O caso atraiu o interesse de intelectuais franceses da época, como o cineasta Jean Cocteau, o novelista Jean Genet e o escritor Jean-Paul Satre, que acreditava ser o crime um reflexo da luta de classes. As duas mulheres rotineiramente trabalhavam 14 horas por dia com apenas meio dia de folga aos domingos. No tribunal foi revelado que Madame Lancelin era uma patroa tirânica que usava luvas brancas para verificar se a poeira havia sido tirada a contento. As irmãs também recebiam apenas o almoço e tinham descontado do salário as demais refeições. Elas também não possuíam direito a calefação no sótão em que dormiam e nas noites frias praticamente congelavam. Contudo, o crime continuava parecendo aos olhos da população uma atrocidade.
Enquanto estava na prisão, sob custódia, Christine, a irmã mais velha, começou a exibir um comportamento extremo. De acordo com testemunhas ela afirmava ter visões e alucinações. Via as carcereiras como demônios que vinham torturá-la e os médicos que aplicavam sedativos como monstros aterrorizantes. Ela se atirava contra as paredes e chegou a remover uma camisa de força provocando em si mesma escoriações. Em dado momento se cortou e usou o sangue para desenhar cruzes nas paredes da cela e em seu próprio corpo. Afirmava que estava sendo visitada pelo Diabo que vinha recolher sua alma. Ela também continuava gritando por Lea, que havia sido levada para outro pavilhão.
Quando as duas irmãs eram reunidas, o comportamento de Christine se tornava ainda mais estranho e de natureza inapropriadamente sexual. Ela se dizia "dona" da irmã e seu comportamento possessivo fazia com que Lea simplesmente se encolhesse num canto incapaz de reagir. Em julho de 1933, Christine experimentou um tipo de surto no qual tentou arrancar os próprios olhos e mastigar a língua. Ela foi então isolada em uma cela acolchoada e mantida aprisionada com uma camisa de força. Após o incidente ela disse que havia sofrido um episódio similar poucas horas antes de cometer o assassinato. O relato não foi incluído nos autos do processo uma vez que elas não quiseram alegar insanidade. Lea quando sozinha apresentava um comportamento tímido e inseguro, ficando em silêncio e preferindo não dizer nada sem a presença de sua irmã.
Oito meses após a prisão, as irmãs foram finalmente levadas ao tribunal para serem julgadas. O evento se converteu em um acontecimento nacional, contando com a presença de várias mentes criminais e jurídicas. A polícia teve que providenciar segurança reforçada quando o carro com as irmãs chegou ao tribunal, cercado por milhares de populares furiosos.
As irmãs negaram ter relação sexual, mas não fizeram nenhum esforço para negar os assassinatos. A despeito das evidências colhidas de que a loucura fazia parte da Família Papin (o avô havia sido preso em um manicômio e vários de seus parentes haviam cometido suicídio), as duas mulheres se não aceitavam argumentar esse excludente apesar dos apelos de seu defensor. Elas acabaram então condenadas. Christine recebeu a sentença mais severa, morte na guilhotina, enquanto Lea foi sentenciada a 10 anos de trabalhos forçados. O juri optou por essa pena mais branda por considerar que ela foi coagida pela irmã que a dominava.
Ao longo do julgamento, o triste passado das Irmãs Papin começou a vir à tona. Christine e Lea haviam crescido em um vilarejo miserável no sul de Le Mans. Elas tinham uma irmã mais velha, Emilia, que sofreu abusos por parte do pai alcoólatra e que se tornou uma freira. Após a morte da mãe, o pai as abandonou em um orfanato. Elas ficaram sob a tutela da instituição religiosa e ansiavam por se tornar freiras como Emilia. Contudo após uma entrevista, a madre de um convento afirmou que elas não tinham condições de entrar para a vida religiosa. Christine já perto de atingir a maioridade saiu então para procurar emprego. Lea a acompanhou e elas conseguiram trabalho em uma série de lugares como lavadeiras, operárias e na cozinha de um internato, sobrevivendo assim de pequenos serviços até conseguirem uma indicação para a casa dos Lancelin.
Os registros da entrevista de Christine quando ela tentou ser aceita em um convento foram usados como prova no tribunal. Ela confidenciou ser atormentada por entidades diabólicas, afirmando ser vítima de ataques sobrenaturais desde a infância. Em mais de uma ocasião ela teria sofrido de "possessões", ocasião em que deixava de ser "ela mesma" e se via dominada por uma ou mais criaturas diabólicas. Seguindo o caminho da vocação religiosa ela esperava reduzir ou acabar com esses ataques. Em um interrogatório, Lea reconheceu que a irmã sofria desses episódios, e que se tornava violenta e a agredia. Ela não reconheceu o incesto, mas os especialistas acreditam que esse elemento estava presente na relação das duas.
Conceituados médicos psiquiatras franceses se ofereceram para estudar o caso das irmãs e dar a elas um tratamento após a conclusão do julgamento. Graças a intercessão desses médicos, a pena de morte de Christine foi comutada em prisão perpétua e ela transferida para um asilo em Rennes. Na prisão, a saúde de Christine continuou deteriorando rapidamente. Muito deprimida após ser separada de Lea, ela se recusava a comer e seu estado clínico seguiu piorando. Transferida para outro asilo, ela jamais demonstrou qualquer sinal de melhoria vindo a falecer em 1937. Lea foi libertada da prisão em 1941, com a sentença reduzida por bom comportamento. Ela foi viver em Nantes, onde conseguiu emprego como arrumadeira de um hotel usando nome falso. Não se sabe exatamente quando ela morreu, mas algumas pessoas acreditam que foi em 1982. Entretanto, o cineasta Claud Ventura afirmou ter encontrado a verdadeira Lea vivendo em um asilo em 2000 e chegou a entrevistar a anciã para um documentário que ele estava produzindo. A mulher morreu em 2001, sem que tenham chegado a conclusão se ela era a verdadeira Lea.
Ainda hoje, profissionais tentam compreender qual era o problema das Irmãs Papin.
A corrente majoritária é que Christine sofria de um quadro agravado de paranoia esquizofrênica que começou a se manifestar quando ela era adolescente e a acompanhou até a idade adulta. Nos anos 1930 não existia tratamento para essa desordem mental. Hoje em dia ela poderia ser tratada com um cocktail de drogas que lhe daria alguma qualidade de vida. Lea, por outro lado, nunca demonstrou qualquer sinal de doença mental. Ela sempre aparentou ser muito tímida e ter sua personalidade anulada pela irmã sobretudo durante situações de stress. Os Lancelin não tinham nada contra Lea e chegaram a cogitar despedir Christine e ficar apenas com a irmã mais nova no serviço. A grande tragédia da vida de Lea aparentemente foi ser dominada pela irmã.
Outra corrente assume que as irmãs sofriam de algo chamado desordem paranoica compartilhada. Essa condição tende a ocorrer em pequenos grupos ou pares que se sentem isolados do mundo. Eles estabelecem entre si uma relação intensa, temendo se abrir para novas experiências e se dedicando totalmente um ao outro. Nessa desordem mental é típico que um companheiro tenha controle sobre o outro, por vezes exercendo também um domínio de natureza sexual. As Irmãs Papin parecem ser um trágico exemplo disso.
O dramaturgo Jean Genet ficou tão impressionado com o caso que adaptou o incidente em uma de suas mais famosas obras, "Les Bonnes" ou "As Criadas". O crime continua a fascinar escritores e cineastas na França, assim como em outros países. Ruth Rendall também escreveu um romance que analisa as causas do crime. Dois filmes foram lançados apenas nos últimos dez anos, em inglês e francês.
Chocante e assustador, ainda hoje, passados quase 90 anos, o Caso das Irmãs Papin gera discussão e debate.
Ótimo texto!
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