quinta-feira, 18 de junho de 2020

Revisitando Lovecraft - Relemos o macabro conto "A Casa Abandonada" (1924)


Bem vindos de volta a Revisitando Lovecraft, onde nós fazemos uma releitura de algumas das histórias do velho Cavalheiro de Providence em busca de coisas que deixamos passar e curiosidades escondidas no texto.

Nesse artigo vamos esmiuçar uma de suas primeiras histórias, uma das menos conhecidas e que se enquadra à primeira vista em um tipo de terror mais convencional envolvendo uma casa assombrada. Contudo, a primeira impressão pode enganar: Observando com um pouco mais de cuidado, esse pequeno conto revela uma série de elementos consagrados do cânon lovecraftiano: velhas maldições, bruxaria, horrores de além das esferas e uma criatura simplesmente tenebrosa - ou ao menos o cotovelo dela (!!!).

Estamos falando de "A Casa Abandonada" (The Shunned House), escrita em outubro de 1924 e publicada pela primeira vez em 1928 em uma pequena tiragem. Foi para todos os efeitos o primeiro trabalho em forma de livro publicado por Lovecraft. Posteriormente ela foi aprovada para publicação na edição de número 30 da Weird Tales em outubro de 1937.


A Casa Abandonada teve como inspiração uma construção real existente na amada cidade natal de Lovecraft, Providence, estado de Rhode Island. A construção em questão se localizava no número 135 da Benefit Street e sempre foi uma casa que chamou a atenção de Lovecraft no período em que ele viveu em Providence. Uma tia de Lovecraft chamada Lilian Clark chegou a morar no endereço, conhecido como "Babbitt House", trabalhando lá como zeladora. Lovecraft fez uma ou duas visitas a ela nesse período, ocasião em que admirou a fachada da propriedade que ao mesmo tempo lhe era atraente e de alguma forma assustadora. Sua tia ficou no endereço por apenas um ano e saiu de lá alegando que a casa era grande e úmida demais. Lovecraft lamentou essa mudança, mas continuou interessado na propriedade escrevendo de cabeça a respeito de seus detalhes com uma minúcia impressionante.

Sumário:

Um narrador não identificado começa a histórica apontando a ironia de que durante a estadia de Edgar Allan Poe em Providence, o mestre do macabro passou várias vezes diante de uma casa na Rua Benefit sem perceber a aura de estranheza que reina sobre o local - "verdadeiro símbolo de tudo que é indizivelmente tétrico".

A Casa Abandonada fascina o narrador desde menino. Seu pátio é incrivelmente esquisito, com um gramado de cor pálida, árvores retorcidas e uma singular ausência de pássaros. Seu interior apresenta a desolação de uma ruína negligenciada há tempos, enquanto apenas o mais bravo dos exploradores se mostra capaz de visitar seu sótão. Mas o pior, de longe, é o porão. Mesmo com uma porta e escadas levando ao seu interior, o fedor que contamina o lugar é mais forte lá. Fungos brancos e fosforescentes brotam do chão de terra e um estranho bolor se ajunta ao redor da lareira. De tempos em tempos, o padrão de crescimento do bolor lembra uma silhueta humana esparramada no chão, e certa vez, o narrador vê o que parece ser uma emanação amarelada se erguendo dessa figura.   

O tio do narrador, um médico e antiquário chamado Elihu Whipple, também possui um fascínio mórbido pela casa. Ele eventualmente compartilha os frutos de suas pesquisas a respeito do endereço. A casa teria sido erguida em 1763 por um tal William Harris. Pouco depois da família se mudar para lá, sua esposa Rhoby perde o bebê que estava esperando. Por mais de 150 anos, nenhuma criança nasce vive na casa. De fato, crianças e empregados morrem no endereço com notável frequência, como se fossem lentamente consumidos. Rhoby passou os últimos anos confinada no sótão após sua sanidade declinar na velhice. Mais estranho, ela parece proferir palavras em algum dialeto francês, uma língua que jamais aprendeu.


Um filho do casal sobrevive e se muda para outra casa mais saudável. Ele planeja alugar a casa para inquilinos que invariavelmente acabam vítimas de doença e morte. Em 1861, a casa é abandonada de vez e deixada para se desintegrar lentamente sem cuidados ou manutenção. 

O narrador mergulha mais fundo na história da casa. Ele descobre que uma empregada dos Harris suspeitava que um vampiro havia sido enterrado no porão e que ele se alimentava das energias dos habitantes, o que os levava à morte. Algumas vítimas que pereceram na propriedade tinham um terrível estado de anemia. 

Por sorte o narrador fica sabendo que a casa havia sido projetada por um refugiado francês chamado Etienne Roulet. Este misterioso francês lia livros estranhos e desenhava diagramas esquisitos e seu filho Paul era tão detestado que acabou incitando um levante que resultou no linchamento de todo o clã. O nome Roulet segundo o narrador pode estar ligado a um certo Jacques Roulet que em registros de 1598 teria sido considerado culpado do assassinato de uma criança. Roulet segundo as más línguas era um vampiro ou lobisomem, provavelmente descendente do vampiro mencionado. 

Certa noite, o narrador visita a casa à noite. Ele constata a forma estranha do bolor no porão e o vapor que se ergue dele e assume formas bizarras. Ouvindo isso, Whipple insiste que uma nova vigília seja feita e que eles se preparem para destruir seja lá o que habita aquela casa.

A teoria dos protagonistas tem base científica. Eles acreditam que a coisa habita ao mesmo tempo o nosso mundo e uma realidade adjacente, conseguindo se manifestar brevemente para drenar a força vital das pessoas na casa, permanecendo dormente no restante do tempo. Eles decidem utilizar um aparato que produz radiação para destruir a criatura, e se isso falhar estão preparados para usar lança-chamas.


Armados, os dois acampam no porão e aguardam a coisa se manifestar. Em meio a uma noite marcada por pesadelos, Whipple acaba sendo dominado pela entidade alienígena e é dissolvido pela criatura que dele se alimenta. Radiação e lança chamas se mostram ineficazes e em pânico o narrador foge.

Dias mais tarde ele retorna ao porão decidido a destruir a criatura que levou seu querido tio. Ele dá início a uma escavação no porão que revela um tipo de substância medonha e uma parte da gigantesca anatomia da criatura. Sem pestanejar ele sai do buraco e começa a derramar nele o conteúdo de garrafas de ácido sulfúrico que havia trazido consigo. A coisa enfim é afetada pela substância corrosiva. Vapor esverdeado se ergue do porão e uma fumaça virulenta é expelida pelas janelas e chaminés. Como resultado o fungo se desmancha em uma poeira cinzenta o que evidencia que a coisa foi destruída de uma vez por todas. 

Na primavera seguinte o dono da casa a coloca para aluguel. No quintal, as antigas árvores pela primeira vez dão fruto e os pássaros retornam aos arredores.

O que é tipicamente Lovecraftiano:

Cogumelos! Lovecraft parece obcecado por eles nesse conto e os menciona várias e várias vezes, em algumas ocasiões com alguma variação: Fungo, Fungoso, fúngico... As descrições do porão da Casa Abandonada sempre incluem uma menção aos cogumelos bizarros que brotam no local. Nós sabemos que Lovecraft é conhecido por escolher cuidadosamente as suas palavras, então causa um pouco de surpresa a repetição que soa em alguns momentos até excessiva.


A localidade abandonada, o senso de decadência e o isolamento estão presentes quando o narrador e o tio exploram o porão. Lovecraft descreve esse lugar insalubre como se fosse a superfície de outro planeta e não um porão localizado em Providence.

A forma como os protagonistas escolhem enfrentar o monstro, com preparativos e buscando respaldo na ciência ao invés de folclore é bem lovecraftiano. Em momento algum os heróis (homens esclarecidos) se rendem a convenções de superstições e crendices. Mesmo quando mencionam a possibilidade de ser um vampiro que habita o porão, eles deixam claro que não se trata de um vampiro clássico.

O que é Degenerado:

O francês Etienne Roulet e sua família são o típico exemplo de indivíduos degenerados, alterados por seu envolvimento com o sobrenatural. Há uma menção ao filho de Roulett e que as ações deste acabam levando todos à morte. Lovecraft não deixa claro do que se trata, mas fica implícito que o comportamento destes forasteiros bate de frente com a "retidão moral" das pessoas da Nova Inglaterra.

Em outro momento ele deixa claro que os empregados da casa e camponeses são dados à acreditar em superstições e espalhar rumores. De fato, é com base em um desses boatos que eles passam a  conjecturar a possibilidade de se tratar de uma entidade vampírica.

O que pertence ao Mythos:

Embora o conto em momento algum faça uma conexão direta da criatura do porão com os Mythos, parece claro que a entidade é algo vindo de outra realidade. A descrição da coisa como uma "geleia congelada semipútrida, com impressões de translucidez" remete aos horrores viscosos e rastejantes do Mythos, no qual os Shoggoth são os representantes mais famosos.


A cena em que o tio é morto pela criatura que o engloba e começa a derreter seu corpo, fazendo surgir uma sucessão de faces e corpos de vítimas anteriores também sugere um horror saído do Mythos: imortal, implacável e incompreensível.

Tomos e Livros:

Poe é citado rapidamente, mas a obra do autor gótico tão admirado por Lovecraft passa batida. Ao invés disso, é comentado que o tio possui uma biblioteca com vários livros curiosos que auxiliam os protagonistas a entender a natureza da Coisa do Porão.

Etienne Roulet é descrito como um sujeito sinistro que lia "livros estranhos e desenhava gráficos" o que remete ao trabalho de um estudioso das artes ocultas. Não há citação a nenhum desses "livros estranhos" ou o conteúdo deles, mas conhecendo Lovecraft ele deve ter pensado ao menos brevemente em citar um ou dois de seus tomos blasfemos aqui.  

O que é Insano:

Rhoby Harris uma das primeiras moradoras da casa termina trancada no sótão por sofrer de uma gradual insanidade provocada pela criatura no porão. Não é para menos: seus filhos morreram e ela assistiu a saúde de cada um se deteriorar lentamente. O fato dela gritar em francês, língua que não conhecia, sinaliza que ela estava sendo tomada pelo espírito de um dos Roulet o que é por si só muito bizarro!

Após o primeiro embate com a criatura, o narrador foge em disparada pelas ruas de Providence e vaga sem destino por várias horas até recobrar seus sentidos. 

O tio também parece deslizar para a loucura poucos momentos antes de ser vítima de uma fagocitose. Os gritos de "minha respiração, minha respiração" são um indicativo de que a sanidade do pobre tio Elihu desceu a ladeira...  

Comentários:

Na superfície "A Casa Abandonada" é uma típica história de lugar assombrado. Inspirada por lendas locais sobre vampiros e se passando em uma casa realmente existente de Providence, a história apresenta um Lovecraft inaugurando seu próprio estilo. Assim como em outras histórias,a ciência desempenha um papel importante na luta contra o sobrenatural.  


- A "Casa dos Babbitt" como Lovecraft se referia à estrutura, realmente existe e se localiza no endereço descrito no conto, 135 da Benefit Street, hoje em dia é chamada de John Mawney Manor ou Stephen Harris House. Em 1920, ela pertencia a Sophia Babbitt, e após sua morte, foi herdada por outros membros da família que lá viveram. A tia de Lovecraft, Lillian viveu lá por pouco mais de um ano. Até onde se sabe, jamais foi maldita ou assombrada.

- Ao visitar New Jersey anos depois, Lovecraft conheceu uma casa na cidade de Elizabeth que lembrou a ele a Casa dos Babbitt em Providence. Ele usou essa casa como inspiração adicional para o conto afirmando que era perfeito para uma história de terror. A casa em Elizabeth tinha uma arquitetura semelhante à de Providence, mas Lovecraft em uma carta para uma tia a descreve nos seguintes termos: "Um lugar velho e terrível! Verdadeiramente uma casa infernal, onde coisas obscuras devem ter acontecido no início do século XVII", ele continua mais tarde "a pintura escura, o telhado estranhamente íngreme, e os degraus externos levando para o segundo pavimento, tudo sufocado por uma parede de erva daninha tão densa que é impossível evitar imaginar o lugar como amaldiçoado".

- O sobrenome do tio do narrador, Whipple, é coincidentemente o sobrenome da família dos parentes de Lovecraft por parte de mãe. O nome foi preservado como o primeiro nome de seu estimado avô materno, Whipple van Buren Phillips. Lovecraft viveu na casa de Whipple boa parte de sua infância e foi esse período que despertou no jovem Lovecraft o interesse por literatura, já que o avô tinha uma vasta biblioteca cujo acesso era franqueado ao neto. Foi nessa biblioteca que Lovecraft leu pela primeira vez "As 1001 noites" que teve enorme importância em sua carreira e onde ele alegou ter sonhado vez com os Nightgaunts.

- O trecho sobre vampirismo foi inspirado diretamente pelo folclore da Nova Inglaterra. Queimar o coração de um vampiro e reduzir o órgão à pó era segundo as superstições regionais o método mais garantido para liquidar a ameaça desses mortos vivos. A condição "vampirismo" segundo o folclore local engloba uma série de doenças debilitantes, mais ou menos parecidas com a tuberculose na qual a vida da pessoa era gradualmente consumida (daí decorrendo o nome em inglês "Consumption"). Ainda segundo o folclore local trata-se de uma doença espiritual e não física, causada pela presença de uma entidade capaz de se alimentar da energia vital da vítima (ou do sangue dependendo da versão).


Conforme o folclore local, se um cadáver desenterrado tivesse "sangue residual no coração" isso significa que ele era um vampiro que havia roubado esse mesmo sangue de alguma vítima. Os camponeses da Nova Inglaterra no século XVII exumavam cadáveres em busca dessa evidência reveladora e quando a encontravam procediam com as medidas para destruir o vampiro, o que envolvia queimar o coração. As cinzas deste podiam ser então usadas para criar uma bebida mágica que era dada aos afligidos pela doença. Segundo a crença aqueles que bebiam restauravam suas forças e sobreviviam à experiência.

- Essas estranhas práticas mortuárias da Nova Inglaterra se tornaram bastante conhecidas e serviram como inspiração para Bran Stoker quando ele estava escrevendo Dracula. Em 1896 ele foi revisor em um artigo publicado em uma revista a respeito dos "Vampiros da Nova Inglaterra".

- Não existe atualmente uma vila chamada Caude na França. Lovecraft pode ter usado outras como inspiração, possivelmente Caudecoste ou Gaude. Os huguenotes eram um movimento protestante surgido na França do século XVI. Com o Édito de Nantes eles ganharam certa autonomia no país, mas esta não durou muito. No século seguinte as Guerras Religiosas causaram uma série de perseguições que levaram os huguenotes a se exilar no Novo Mundo.      
  
- Um Tubo de Crookes é um instrumento desenvolvido pelo médico britânico William Crookes. O objeto em questão tem a forma de uma ampola comprida de vidro preenchido com gás pressurizado. Quando os elétrons saem do cátodo, colidem com moléculas do gás e ocorre a ionização deste e a liberação de luz que ilumina toda a ampola. A "ampola de Crookes" é feita de vidro ou quartzo e dentro dela se faz o vácuo. Ela contém duas placas metálicas ligadas a uma fonte de tensão elétrica. O instrumento era usado por médicos como uma espécie de precursor dos raios-x.


- Diferente de muitas histórias de Lovecraft, A Casa Abandonada possui um final atípico e relativamente feliz. Embora sofra com a morte do tio, o narrador é capaz de destruir a criatura maligna que habita a Casa fazendo com que a presença dela deixe de incidir sobre o local. Nem sempre os protagonistas lovecraftianos tem essa sorte, de fato, são bem poucas as vezes em que um final reflete esperança nos dias vindouros.

Bem é isso...

Comentários e sugestões são bem vindas. 

4 comentários:

  1. Que bom que esta série esta de volta! Minha sugestão para o próximo conto a ser analisado é Sussurro nas Trevas

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  2. Revisitando o Horror de Red Hook - Referências e Lugares Assustadores:
    https://mundotentacular.blogspot.com/2020/06/revisitando-lovecraft-relemos-o-macabro.html

    Saindo das Trevas - Falando de Herbert West Re-Animator:
    https://mundotentacular.blogspot.com/2014/04/saindo-das-trevas-falando-de-herbert.html

    Revisitando Lovecraft - "Dagon" (1917):
    https://mundotentacular.blogspot.com/2018/12/revisitando-lovecraft-dagon-1917.html

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  3. Em 2013, nos comentários, como podem ver no link abaixo, eu coloquei esse conto no meu TOP 5. Ainda o mantenho... http://mundotentacular.blogspot.com/2013/03/os-cinco-fundamentais-de-lovecraft.html

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