segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Texto e Arte - Resenha de "O Chamado de Cthulhu" da Editora Darkside

 "A Coisa mais misericórdia do mundo, penso eu, é a inabilidade da mente humana em correlacionar todo o seu conteúdo. vivemos numa ilha plácida de ignorância em meio a mares negros de infinitude e não somos destinados a ir muito longe. As ciências, cada uma delas se estendendo em sua própria direção, nos causaram pouco dano até o momento; mas algum dia, a reunião do conhecimento dissociado revelará paisagens tão terríveis da realidade e de nossa pavorosa posição nela que ou enlouqueceremos com a revelação ou fugiremos da luz mortífera em direção à paz e segurança de uma nova era das trevas". 

H.P. Lovecraft - O Chamado de Cthulhu

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Nota: Para avaliar esse trabalho magistral, resolvi dividir a resenha em três partes: a primeira tratando do Texto de H.P. Lovecraft, a segunda da Arte de François Baranger e finalmente, na terceira tratando da convergência dos dois elementos na forma do livro 'O Chamado de Cthulhu". 

O TEXTO

É com o parágrafo acima, transbordando pessimismo niilista que H.P. Lovecraft abre O Chamado de Cthulhu, um de seus contos mais famosos. Para muitos, Chamado está na lista dos melhores e mais influentes trabalhos do autor. Outros vão além: Chamado de Cthulhu estaria na lista dos melhores e mais influentes contos de horror do século XX, possivelmente da história. E eles não estão exagerando.

É provável que o próprio Lovecraft não soubesse que esse conto seria tão importante na sua bibliografia e que tornaria seu nome permanentemente associado à criatura que ele criou. De certa maneira, Lovecraft e Cthulhu se tornaram quase sinônimos: quando o nome de um é mencionado, quase que imediatamente o outro surge segundos depois. Criador e criatura com o passar do tempo ficaram quase indissociáveis.

Escrito ao longo do ano de 1926, e publicado pela primeira vez em fevereiro de 1928 na Revista Weird Tales, Chamado não conquistou imediatamente seu espaço, embora tenha atraído a atenção de outros autores que viram nele os méritos de uma história complexa e uma evolução nas bases para o que ficaria conhecido como Horror Cósmico. Talvez seja em O Chamado de Cthulhu que Lovecraft define pela primeira vez o que representa o panteão de seres que ele vinha trabalhando, não demônios, mas entidades alienígenas nascidas na vastidão do espaço. Ele também estabelece a importância cósmica dessas criaturas, seu poder esmagador e influência tóxica na história do planeta. Lovecraft trabalha o conceito de como a presença desses seres ancestrais ainda se faz presente, e como as emanações psíquicas desses horrores, no caso Cthulhu, são captadas pela humanidade. O toque de Cthulhu, seu Chamado, motiva a criação de cultos ao redor do mundo, seitas que veneram essa entidade com fanatismo bestial, oferecendo a Ele sacrifícios e pranteando o Seu retorno. O conto consolida a noção de que a proximidade do Mythos ocasiona alucinação, pavor e loucura, outra pedra angular do gênero.

Em resumo, alguns dos principais elementos que delineiam o Horror Cósmico são apresentados nesse conto de modo incrivelmente imaginativo e inovador.

Lovecraft contava que a inspiração para Chamado veio de um sonho que ele teve em 1919. Ele descreveu a experiência em duas cartas enviadas a seu colega de correspondência Rheinhart Kleiner em 21 de maio e 14 de dezembro de 1920. No sonho, Lovecraft via a si mesmo visitando um museu de antiguidades em Providence, tentando convencer um idoso curador a comprar uma estranha estatueta que o próprio Lovecraft havia esculpido. O curador inicialmente zomba dele por tentar vender algo feito recentemente para um museu de objetos antigos. Lovecraft então se lembra de responder ao curador que a peça era muitíssimo antiga e que ela havia sido esculpida à partir de seus próprios sonhos. 


Ao acordar, Lovecraft apanhou um bloco de notas e guardou essa informação, além de ter feito um esboço preliminar de como era a tal estátua: Um Deus com cabeça de polvo, corpo humano e asas de morcego, acocorado num pedestal. Um Kraken, um Dragão, uma abominação. Nascia assim o Grande Cthulhu, a Entidade Alienígena que habita as profundezas oceânicas, "não morto, mas sonhando", aguardando o momento certo de reclamar o planeta que um dia lhe pertenceu.

Lovecraft salvou essa sinopse com uma anotação adicional que dizia: "Adicione um bom desenvolvimento e descreva a natureza do baixo-relevo". Nos anos que se seguiram, ele trabalhou em muitos outros contos, mas nunca esqueceu do sonho e dessa ideia. Ele delineou o conceito de deuses alienígenas que habitaram a Terra muito antes da humanidade, que foram forçados a hibernar em lugares ocultos do mundo, mas que estão destinados um dia a despertar com a ajuda de cultos apocalípticos.

Depois de publicado na Weird Tales, o conto ficou quase esquecido e após a morte de Lovecraft, não fosse a intercessão de seus amigos, provavelmente teria se perdido para sempre. Ele foi salvo do esquecimento e republicado pela editora Arkham House junto com outros contos que estavam fadados a desaparecer. Aos poucos, a obra de H.P. Lovecraft foi sendo resgatada e cada vez mais lida. Ela influenciou e ainda influencia uma legião de autores, leitores, fãs e entusiastas que captaram a genialidade ali contida.

E Chamado talvez seja a semente disso tudo.

ARTE

Uma coisa curiosa é que por mais importante que seja, a obra de Lovecraft raramente foi objeto de imagens grandiosas capazes de evocar as cenas descritas nos textos rebuscados. Os primeiros livros do autor contavam com imagens pouco evocativas fosse na capa ou sobre o título, imagens discretas que entregavam pouco sobre as dimensões do horror ali contido. Talvez os ilustradores tentassem se manter fiéis ao princípio estabelecido pelo próprio Lovecraft de que as suas criaturas eram simplesmente indescritíveis e impossíveis de serem retratadas de forma fiel.

Os deuses, seres e monstros Lovecraftianos são contrários à própria ordem natural. Eles desafiam as convenções do que tratamos como convencional e corriqueiro. Eles são por definição absolutamente alienígenas e é isso que causa a loucura naqueles que vislumbram suas formas grotescas e contornos bizarros.

Não deve ser nada fácil trabalhar com essa premissa.

O artista que se propõe a ilustrar um Horror do Mythos parte do pressuposto que a coisa a ser retratada não é apenas estranha, ela é incompreensível. Algo que não pode ser decifrado pelos nossos sentidos  pois não temos como compara-la a nada que conhecemos.

Poucos artistas seriam capazes de trabalhar o desafio de dar forma ao Caos do Mythos.

Entra em cena o conceituado artista francês François Baranger, conhecido ilustrador que tem no currículo o projeto conceitual de vários filmes e games de sucesso. Baranger é um fã de longa data de Lovecraft e de suas criaturas inomináveis, segundo ele, "fonte de inspirações e horrores de todo tipo". 

Ele aceitou o desafio de invocar para o mundo real imagens dignas de pesadelo das criaturas lovecraftianas e materializá-las para a apreciação de nossos sentidos.  

JUNTANDO TEXTO + ARTE

O que acontece quando juntamos um dos textos mais inspirados de H.P. Lovecraft - o Chamado de Cthulhu, com as belíssimas ilustrações de François Baranger?

O resultado é "O Chamado de Cthulhu", um livro nada menos do que sensacional.


Lançado aqui no Brasil recentemente pela Editora Darkside, a versão nacional é um banquete para os olhos. Ela não fica devendo nada em relação à edição original lançada em 2017 e possui o mesmo projeto gráfico. Nem é preciso dizer como a Darkside se dedica na produção de seus livros e trata cada um deles com um esmero invejável que estabeleceu um elevado padrão de qualidade. Livros da Darkside são lindos! Fato que nenhum colecionador contesta.

Ao longo das 64 páginas, encerradas em um volume luxuoso com capa dura e papel couché, o leitor é agraciado com um dos melhores contos do gênio do horror, complementado por imagens deslumbrantes de um artista incrivelmente talentoso. O formato do livro chama a atenção, com 36 x 27 centímetros, mas seu objetivo é óbvio, permitir ao artista aproveitar as dimensões como se fosse uma tela. E ele aproveita cada espaço para invocar imagens incríveis.

Temos três tipos de ilustrações: as de página inteira, as que servem de background para o texto e enormes imagens de páginas dupla que mais parecem pôsteres. Baranger se sobressai em cada uma com seu estilo elegante e ao mesmo tempo sombrio. Ele não se intimida em reproduzir as cenas mais apocalíticas, como a que mostra os detalhes da clareira macabra usada pelo Culto de Cthulhu no coração do pântano da Louisiana. Imagem de arrepiar! Mas sem dúvida, são as ilustrações que evocam o terror alienígena da Ilha Cadavérica de R'lyeh, que chamam mais a atenção. Baranger oferece um panorama aterrorizante que completa a descrição de Lovecraft com maestria, ruínas ciclópicas de eras ancestrais, arquitetura impossível com ângulos incompreensíveis e grandeza avassaladora. Ele também não se intimida em retratar Cthulhu com uma aura de ameaça titânica. É possível entender como a mera visão dele conduz pessoas à loucura.

Entretanto, o uso mais genial de ilustração se ajustando ao texto é quando Beranger reproduz o trecho sobre uma matéria do Sydney Bulletin como se fosse uma página de jornal. Resultado nada menos que notável.

O conto original é reproduzido na íntegra e para os leitores que não conhecem esse clássico imortal do horror, imagino que esta talvez seja a melhor e mais acessível introdução ao Horror Cósmico. Se você quer apresentar Lovecraft e o Horror a um amigo ou conhecido, dê a ele esse livro de presente. Para aqueles que já foram introduzidos nesse universo, essa edição tem o mérito de ser uma das mais caprichadas e bonitas lançadas até hoje. Acredite, ela é praticamente um livro de centro de mesa.

A tradução do texto sob a responsabilidade de Ramon Mapa é competente, sem censurar ou atenuar o conteúdo original. Como deve ser! Na última página há uma Nota do Editor contextualizando a já exaustivamente debatida questão do racismo presente na obra de Lovecraft. A nota é esclarecedora, sem defender ou condenar, recorrendo a especialistas e estudiosos do autor para oferecer diferentes pontos de vista sobre a questão.

Em conclusão, "O Chamado de Cthulhu" é uma história inesquecível quase essencial para os fãs do Horror. As imagens de Baranger complementam cada linha de Lovecraft e expandem a percepção do leitor para além do que ele capta através das palavras, garantindo uma experiência inovadora mesmo para os que conhecem a história de trás para frente.

Essa edição vale muito à pena! Nos resta agora torcer para a Darkside traga também os dois volumes da novela "At the Mountains of Madness" projeto seguinte da dobradinha entre Lovecraft e Baranger. 

Que venham outros!

"O Chamado de Cthulhu" ilustrado por François Baranger pode ser encontrado na loja online da Editora Darkside no link abaixo:

https://www.darksidebooks.com.br/o-chamado-de-cthulhu--brinde-exclusivo/p


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