quarta-feira, 5 de maio de 2021

Lendas do Fogo e Gelo - A mítica Caverna do Gigante na Islândia


Mesmo com nosso mundo em constante transformação, há lugares no planeta que preservam segredos enterrados no passado, ocultos da luz do progresso e dos olhos da civilização. Tais lugares e os povos antigos que ali viveram, quando descobertos, nos surpreendem a medida que tentamos encaixar os fragmentos deixados por eles e entender o quadro geral. Em um recanto isolado da fria Islândia encontramos uma antiga caverna cheia de lendas, mitos e mistérios sem solução.

Ao longo da paisagem gelada do deserto islandês, apenas algumas horas de carro da capital Reykjavík, fica um vasto sistema de cavernas formada por tubos de lava chamado Hallmundarhraun. Ele se estende por mais de 145 quilômetros de um terreno rochoso e escarpado. Trata-se de uma geografia recortada, de aspecto grosseiro, repleto de crateras, fissuras que expelem fumaça e túneis criados pela passagem da lava. A aparência geral é de um mundo alienígena. Observando a beleza estranha desse cenário é fácil entender porque essa terra um dia inspirou dezenas de lendas nórdicas. Os navegadores vikings que estiveram lá no século VIII nada sabiam a respeito de geologia, portanto precisavam recorrer aos seus mitos para explicar aquele lugar incomum. 

As lendas associadas a esse lugar se refletem no nome escolhido para as Cavernas. A maior delas  Surtshellir, por exemplo, foi batizada em homenagem a Surtr, o Gigante Elemental do Fogo, uma das entidades mais temidas do Panteão Nórdico. Inimigo mortal dos Deuses e conhecido por nomes ameaçadores como "Abrasador" ou "Cremador", Surtr era tão assustador que as profecias afirmavam que seria ele quem traria o Ragnarok, o Fim dos Tempos. Para isso, ele teria de acender a sua colossal espada e usá-la para ceifar toda a vida. 

A Caverna Surtshellir se estende para dentro da terra por quase 170 metros, com paredes que medem mais de 12 metros de diâmetro, e com um teto que varia entre 2 e 10 meros de altura. É um lugar estranho e incrivelmente traiçoeiro para visitar: o chão coberto de uma película escorregadia de gelo e fragmentos afiados de pedra vulcânica aqui e ali, tudo imerso em uma escuridão perpétua.  Pessoas que exploram esse lugar precisam tomar muito cuidado, pois um mero escorregão pode ser fatal, já que as pontas que se projetam nas paredes e no chão podem cortar através de casacos grossos e produzir horríveis sangramentos difíceis de serem estancados. Além disso, há deslizamentos frequentes e tremores que fazem despencar pedras igualmente afiadas. 


Através desses caminhos formados por tubos de lava e cavernas naturais, não faltam formações estranhas como as espeleotema - sedimentos de rocha cristalizada quase translúcidas. As cavernas se conectam com os complexos de Vígishellir, que significa "Fortaleza de Gelo" e Beinahellir, a "Caverna dos Ossos" cavernas igualmente profundas. Elas oferecem visões incríveis de tirar o fôlego seja quando iluminadas por lanternas ou pelas tochas trazidas pelos seus primeiros exploradores. Com certeza, foram eles os responsáveis por criar as lendas e a peculiar história que permeia esse lugar mágico.

O povo nórdico da região a considera um antigo lar dos Jotuns, ou Gigantes que caminham na Terra desde o início dos tempos. Os recessos escuros de Surtshellir foi o covil deles, dividido com espíritos malignos e fantasmas. Aqueles que penetram em suas profundezas devem estar cientes de seus muitos perigos. A maioria, segundo as lendas, não voltava a ver a luz do sol novamente pois acabavam devorados pelos gigantes ou escravizados pelos espíritos malignos. 

Antigos mitos dizem que o próprio Surtr um dia habitou as câmaras mais fundas. Lá, além de seu tesouro inestimável, que agitava a imaginação e cobiça dos homens, encontrava-se escondida a devastadora espada de fogo fadada a destruir o mundo inteiro. Muitos homens tentaram chegar até esse lugar inacessível, mas apenas os maiores heróis conseguiram fazê-lo. Acredita-se que aquele que chegasse lá poderia empurrar a espada de volta à bainha, adiando assim, ainda que temporariamente, o Ragnarok. 

Mas nem mesmo todas essas lendas a respeito de horrores mortos-vivos e implacáveis gigantes foram capazes de dissuadir um bando de foras da lei no século X de usar a caverna como esconderijo. De fato eles usaram os mitos para afugentar qualquer um que viesse atrás deles. Poucas pessoas estavam dispostas a invadir cavernas com tamanha fama de serem assombradas.


Banidos da sociedade, esses criminosos não tinham muito a perder. Eles fortificaram a entrada da caverna transformando-a em uma posição defensiva quase inexpugnável. Dia e noite haviam sentinelas com arco e flecha prontos para atingir qualquer um que se aproximasse. Era dali que os guerreiros partiam para realizar invasões e saques nas fazendas e vilarejos que pontilhavam a costa. A pilhagem era toda carregada para as câmaras, bem como escravos, rebanho de animais e alimentos.

Os foras da lei deixaram evidência de sua passagem na forma de pilhas de ossos de animais espalhadas pelas cavernas. Lá dentro eles faziam suas refeições, talhavam os objetos de uso cotidiano e forjavam suas armas. Durante o inverno o lugar era um abrigo quente e protegido que chegou a abrigar mais de cinquenta guerreiros, além de suas esposas, filhos e escravos.

Entretanto, apesar de todo interesse histórico sobre o covil de saqueadores, existem outros enigmas arqueológicos na caverna. Um desses mistérios envolve a existência de uma enorme parede medindo 12 metros de comprimento por 4,5 de altura, e erguida com enormes pedras, cada uma pesando pelo menos 4 toneladas. Levantar uma parede dessas dimensões certamente seria um projeto impressionante, quanto mais na escuridão gélida da caverna. Os pesquisadores que estudam a história de Surtshellir não sabem explicar como ela pode ter sido construída em um local tão insalubre. Como pedras tão pesadas puderam ser carregadas pelos corredores e túneis estreitos? Outro ponto é a forma como ela lacra o espaço da caverna, selando a passagem perfeitamente. Não há porta através ela, nem uma escada ou mesmo janela que permita ver o que existe do outro lado.

O muro é considerado a maior construção de pedra da Era Viking na Islândia. A quantidade de trabalho que essa construção demandou sugere que ela foi o resultado do esforço de muitos homens. Um enorme empreendimento que comprova a engenhosidade do povo nórdico. O propósito da muralha indica que ela deve ter sido erguida como proteção, mas outros supõem que ela está ali para impedir que algo vivendo no fundo da caverna viesse à superfície.  A quantidade notável de símbolos de proteção talhados nas pedras reforça essa suposição.


Teria um grupo de saqueadores e bandidos sido capaz de coordenar uma construção em condições tão adversas? Ninguém realmente sabe. 

Dentro da caverna há uma segunda estrutura inescrutável, também construída pelas mãos dos homens. Essa tem a forma de um grande salão, com entradas laterais e nichos escavados por motivo desconhecido. É possível que ali fossem colocados armários para guardar alimentos ou armas. Há ainda um estranho arranjo oval de pedras com quase 3 metros de altura que lembra um barco viking. No interior dele, pilhas de ossos de animais indicam que o sítio foi usado para sacrifícios religiosos. A estrutura anormal do salão pode ter sido usada como recinto para reuniões e rituais. Embora a maioria dos rituais sagrados devotados aos Deuses Nórdicos fossem conduzidos ao ar livre, alguns deles ocorriam em subterrâneos, nas profundezas das cavernas.

Alimentando ainda mais o mistério da caverna há vários artefatos curiosos que foram encontrados. Entre estes vários colares de contas do período Viking, usados tanto por homens como mulheres como adorno. Verdes, azuis e amarelas, as contas nesses colares eram tingidas com um pigmento de arsênico e podiam ser usadas no assentamento como um tipo rudimentar de moeda. Outros itens interessantes incluem pontas de flecha, madeira para fogueira, restos de potes e peças de couro curtido. O item mais curioso, no entanto, era uma cruz de chumbo, um objeto do período primitivo do cristianismo abandonado em um canto da caverna coberto de neve como se tivesse sido enterrado ali. Os restos de ossos de animais apontam para uma longa ocupação da caverna, algo em torno de 80 a 100 anos. As pilhas de ossos aliás chamam a atenção por serem bem construídas e denotarem um cuidado em sua montagem. Tudo indica que os ossos tivessem alguma função ritualística, como pequenos altares dispostos em pontos chave do salão.

Uma das teorias a respeito do local diz respeito ao seu uso como templo pagão. Os colares de contas coloridas eram valiosos e foram descartados, assim como os ossos de animais denotando algum tipo de sacrifício para suas divindades. O povo nórdico do período tinha uma complexa mitologia com deuses, gigantes e espíritos. Considerando a importância de Surtr e sua conexão com o Ragnarok, é possível que os rituais fossem feitos para apaziguar a ira ou buscar a proteção de Freyr, a Deusa da Fertilidade.


Seja lá qual for a verdade, tudo indica que a Caverna foi muito mais do que um simples esconderijo. Seus ocupantes realizavam cerimônias importantes e consideravam os túneis um lugar sagrado, com uma profunda conexão com o mundo espiritual e mitológico. As perguntas cruciais permanecem sem respostas: Quem teria construído as estruturas? Por qual motivo? Como elas teriam sido erguidas? Mais misteriosas ainda são as questões abertas sobre a religião no lugar: Que tipo de rituais aconteciam no Grande Salão? Quem eram as divindades homenageadas? Seria possível que um tipo de magia ainda desconhecida e esquecida há séculos fosse praticada nessa caverna?            

Por enquanto, todas essas perguntas estão fadadas a permanecer sem respostas e por mais que desejemos, não teremos uma solução tão cedo. No entanto, é inegável que ao entrar nessa caverna, o poder das lendas de fogo e gelo se façam presentes, como fizeram no passado.  

2 comentários:

  1. essa você tirou daquele livro - mythic iceland - Legend & Adventure in Viking-Age Iceland?

    https://bardodanevoa.blogspot.com/

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