Ela não "provocava transe" em quem se aproximava dela, como diziam alguns a respeito da múmia da Princesa Kherima, nem "batia papo" com o imperador Pedro II, como a cantora-sacerdotisa Sha-amun-en-su - ambas parte do acervo do Museu Nacional, que foi perdido para as chamas ano passado. Mesmo assim, quase 70 anos depois de sua "descoberta", a Múmia da Chaminé Gallotti, como ficou conhecida, continua a intrigar alpinistas e estudiosos no assunto.
O mistério teve início na manhã de 19 de setembro de 1949.
Lá pelas sete da manhã, cinco amigos - Antônio Marcos de Oliveira, Laércio Martins, Patrick White, Ricardo Menescal e Tadeusz Hollup - se encontram na Praça General Tibúrcio, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro, com o objetivo de escalar o Pão de Açúcar, um dos morros cariocas mais conhecidos.
Lá pelas sete da manhã, cinco amigos - Antônio Marcos de Oliveira, Laércio Martins, Patrick White, Ricardo Menescal e Tadeusz Hollup - se encontram na Praça General Tibúrcio, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro, com o objetivo de escalar o Pão de Açúcar, um dos morros cariocas mais conhecidos.
Não era uma escalada como outra qualquer. Em vez de simplesmente subir o paredão de 396 metros de altura por uma das três vias de acesso já desbravadas, os montanhistas, membros do Clube Excursionista Carioca (CEC), decidiram explorar uma quarta trilha, ainda mais perigosa e arrojada que as anteriores. Ninguém havia tentado aquela aproximação do cume por tal ângulo e a escalada seria arriscada.
"Os conquistadores levaram quase cinco anos para concluir a rota que ficou conhecida como Chaminé Gallotti, em homenagem ao senador Francisco Benjamin Gallotti (1895-1961)", contava Tadeusz Hollup, "Durante anos, aquele trecho foi considerado uma das mais difíceis escaladas do montanhismo brasileiro."
Ainda na clareira que dava acesso ao paredão, Hollup, então com 19 anos, começou a desconfiar de que algo estava errado quando viu um sapato de mulher, deteriorado pelo tempo, em plena Mata Atlântica. Não era algo normal de ser encontrado em uma localidade tão isolada.
"Será que, daqui a pouco, vamos encontrar a dona do sapato?", perguntou ele, em tom de brincadeira aos demais.
"Mesmo assim, não demos muita importância. Joguei o sapato fora e continuamos a subir", explicou em sua última entrevista, dada ao programa Esporte Espetacular, da TV Globo, em 22 de outubro de 2017.
Tadeusz Hollup, o último dos desbravadores da chaminé Gallotti, morreu no dia 27 de agosto de 2018, aos 88 anos. Ele continuava perfeitamente lúcido, principalmente quando contava a experiência daquele dia em particular.
Sem que soubessem, a escalada desafiadora não resultaria na tomada do cume, mas em uma descoberta muito mais estranha.
Alguns metros acima daquele ponto crucial de difícil acesso, Oliveira, o caçula do grupo, então com 18 anos, resolveu desbravar a encosta do morro. Começou a explorar a área, mapeando os caminhos e trechos mentalmente. Não poderia imaginar o que encontraria ao observar a fenda apelidada de Chaminé pelos alpinistas. Era por volta das 11h30 da manhã, quando ele se deparou com um cadáver, preso pela garganta, na estreita fenda de rocha.
Oliveira levou o susto de sua vida. Voltou correndo para os colegas sem conseguir conter a excitação pela macabra descoberta que havia feito. Ao contrário do que se poderia imaginar, o defunto não estava em estado de putrefação e, sim, mumificado.
"Quando o vento bateu mais forte, o cabelo da múmia, que era muito longo, pousou no meu ombro. Foi aí que vi que era uma pessoa entalada na fissura. Fiquei apavorado!", relatou Oliveira no documentário Cinquentona Gallotti (2004), escrito e dirigido por Priscilla Botto e Paulo de Barros.
Na mesma hora, berrou para os amigos: "Venham aqui, tem uma pessoa morta!".
Hollup e Menescal caíram na gargalhada. "Que história é essa?", quis saber Hollup, aos risos. Era inusitado, quase impossível que naquele lugar ermo estivesse um cadáver humano. "Achou a dona do sapato?", fez graça Menescal. Os dois levaram na brincadeira. Mas Oliveira, não.
Quando chegaram ao local, tomaram um susto daqueles. A coisa era séria mesmo! O cadáver estava preso na fenda através de uma corda rudimentar que descia pelas suas costas e dava uma volta na garganta, como se esta tivesse sido usada para descer o cadáver e depositá-lo gentilmente naquele lugar.
Quando chegaram ao local, tomaram um susto daqueles. A coisa era séria mesmo! O cadáver estava preso na fenda através de uma corda rudimentar que descia pelas suas costas e dava uma volta na garganta, como se esta tivesse sido usada para descer o cadáver e depositá-lo gentilmente naquele lugar.
Diante da "descoberta" macabra, os amigos resolveram suspender a escalada, voltar e avisar a polícia. A tão sonhada conquista da Chaminé Gallotti - proeza alcançada só cinco anos depois, em 1954 - teria que ficar para outro dia.
Na manhã seguinte, os cinco voltaram à Urca, acompanhados de policiais, repórteres e legistas. A descoberta movimentou o imaginário popular da cidade. Alguns acreditavam que a vítima pudesse ser alguém assassinado e escondido naquela mata distante. Outros pensavam que pudesse se tratar de algum índio, possivelmente um chefe ou feiticeiro colocado ali pela sua importância. Outros imaginavam que o cadáver poderia pertencer a um macaco ou outro animal silvestre, capaz de escalar a Chaminé. Haviam muitas teorias... poucas certezas.
Chegaram ao local e constataram que o cadáver estava lá e não era tão antigo quanto parecia. A primeira coisa que descobriram é que não pertencia a uma mulher, como imaginaram à princípio. Os cabelos eram longos, mas sem dúvida a múmia era de um homem de aproximadamente 35 anos, como mais tarde confirmou o legista. Munidos de grampos, martelos e brocas, o grupo de resgate atingiu o local em que ele estava encravado. Em seguida, com todo cuidado, iniciaram o trabalho de resgate visando descer o cadáver até a clareira, onde aguardavam os bombeiros. Naquela época, os escaladores usavam cordas de sisal e coturnos com tachas. Tudo muito rudimentar para os padrões atuais, ainda assim o resgate foi feito com grande presteza e habilidade.
A "descoberta" da múmia virou notícia em todos os jornais da época. O achado repercutiu em todo Brasil e chegou a ser noticiado outros países. As pessoas se perguntavam quem seria aquele indivíduo e como havia ido parar naquele local. Segundo a nota publicada na edição do dia 20 de setembro de 1949, do jornal O Globo, os restos mortais pertenciam a um "indivíduo de cor branca, com 35 anos presumíveis, de 'compleixão' (sic) franzina e com 1,60 m de altura". Ainda de acordo com o laudo, o defunto vestia um suéter e uma camisa sem mangas de algodão, não apresentava sinais de fratura, nem vestígio de bala ou facada. Não havia como dizer que ele morrera. E o pior: não trazia documentos ou qualquer tipo de identificação.
"Os legistas concluíram que o cadáver estava lá havia uns seis meses, pelo menos", relata Oliveira. Para alguns foi uma notícia triste, pois pensavam ter feito uma descoberta arqueológica sem igual. Alguns supunham que o homem poderia ser um dos míticos fenícios que teriam explorado a Costa do Rio de Janeiro muitos séculos antes da chegada dos portugueses. Quando concluíram que o cadáver era mais recente foi uma decepção geral.
Ainda assim, restavam as grandes questões a respeito de quem seria o sujeito, como ele chegou lá em cima e o que levou alguém a colocá-lo ali?
Tudo era muito estranho e ninguém tinha qualquer ideia a respeito de sua identidade. Naquela época havia um número reduzido de praticantes de montanhismo na cidade e nenhum dos membros habituais havia sumido pela Chaminé Gallotti. Seria virtualmente impossível que o sujeito fosse um montanhista desconhecido em busca de fama, escalando sozinho a montanha. Ninguém poderia ser tão tolo ou descuidado a ponto de tentar alcançar o cume por conta própria, sem avisar ninguém, mas ainda assim, é o que parece ter acontecido.
A polícia fez questionamentos, abriu um inquérito, fez retrato falado e espalhou o retrato do cadáver pela cidade toda, mas não apareceu ninguém capaz de reconhecê-lo. Jamais foi descoberta a identidade do homem.
A única certeza que se tinha é que ele havia sido mumificado devido à maresia. O químico Emiliano Chemello, da Universidade de Caxias do Sul (UCS), explica que a maresia pode ter sido um fator determinante na mumificação do cadáver. Isso porque o sal absorve a água, retardando processo de decomposição do corpo.
"Os antigos egípcios usavam um minério chamado natrão, rico em carbonato de sódio. Eles empacotavam o natrão, em pequenas bolsas, dentro do corpo da múmia, além de jogarem um punhado do minério sobre o cadáver. Quarenta dias depois, o defunto estava encolhido e duro", conta.
A diferença é que no caso do alpinista misterioso, o processo teria ocorrido naturalmente. O sol e o ambiente seco também contribuíram para a mumificação e fizeram a sua parte. A mumificação é um processo curioso, ela só ocorre quando certas circunstâncias estão presentes, tire um elemento e ela não acontece, mas no caso do homem misterioso, tudo conspirou para que seu corpo fosse preservado daquela forma sinistra.
Apesar de toda a repercussão nos jornais da época, nenhum amigo, parente ou familiar apareceu no Instituto Médico Legal (IML) para reconhecer o corpo. A identidade da "múmia", sete décadas depois, continua ignorada.
Há quem sustente, ainda, a tese de que o corpo seria de algum morador de uma favela próxima, localizada entre o Morro da Urca e o Pão de Açúcar. Mas novamente, a questão de como ele chegou ali se mostra de difícil entendimento.
O historiador Milton Teixeira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), rebate essas teorias com a sua própria. Ele acredita que, no Pão de Acúcar, existia uma caverna e que, nos anos 1940, um português ali se estabeleceu. O homem vivia da pesca e da venda de artesanato e seria uma espécie de eremita. Em dado momento, o sujeito simplesmente desapareceu e muitos acreditavam que teria simplesmente morrido.
A explicação é boa, não fossem relatos posteriores que davam conta de que o tal português viveu até os anos 1960, acompanhado em determinado momento por um casal de retirantes nordestinos que passaram a lhe fazer companhia. Em 1968, militares escalaram a montanha e ordenaram que eles deixassem a caverna, ou assim contam alguns.
Na impossibilidade de se chegar a uma conclusão sobre a identidade da múmia, alguns passaram a vê-la sob um ponto de vista esotérico. Teria sido ele alguém transportado por uma passagem ou portal até aquele ponto? Teria sido ele sacrificado em algum tipo de ritual bizarro? Ou seria ele simplesmente alguém que descobriu um acesso até então desconhecido e que tentou a sorte pagando com sua vida pela sua ousadia?
A explicação é boa, não fossem relatos posteriores que davam conta de que o tal português viveu até os anos 1960, acompanhado em determinado momento por um casal de retirantes nordestinos que passaram a lhe fazer companhia. Em 1968, militares escalaram a montanha e ordenaram que eles deixassem a caverna, ou assim contam alguns.
Na impossibilidade de se chegar a uma conclusão sobre a identidade da múmia, alguns passaram a vê-la sob um ponto de vista esotérico. Teria sido ele alguém transportado por uma passagem ou portal até aquele ponto? Teria sido ele sacrificado em algum tipo de ritual bizarro? Ou seria ele simplesmente alguém que descobriu um acesso até então desconhecido e que tentou a sorte pagando com sua vida pela sua ousadia?
Finalmente, há uma última questão intrigante: Que fim levou a "múmia" do Pão de Açúcar?
Após o exame pericial, a múmia teria ficado no IML por pelo menos um ano. Findo esse prazo, ela deveria ter sido sepultada em alguma cova não identificada, como indigente. Há boatos, todavia, de que ela teria sido reivindicada por peritos da Universidade de Antropologia e Arqueologia que achavam interessante estudar o processo de mumificação salina pelo qual ele havia passado. Há registros de que o cadáver foi entregue aos cuidados de tais pessoas, mas nenhum nome foi anotado.
Supõe-se que depois disso ela possa ter sido enviada para o acervo do Museu Nacional. Múmias, afinal de contas, eram parte importante do Museu e nada mais justo do que uma múmia tipicamente brasileira ser integrada a coleção. Infelizmente, se esse foi o caso, a exemplo das peças egípcias que faziam parte do acervo de 20 milhões de itens do Museu Nacional, ela também teve um destino trágico.
A Múmia acabou se tornando uma curiosidade, quase uma Lenda Urbana na Cidade Maravilhosa , justamente em um dos seus mais famosos cartões postais.
Após o exame pericial, a múmia teria ficado no IML por pelo menos um ano. Findo esse prazo, ela deveria ter sido sepultada em alguma cova não identificada, como indigente. Há boatos, todavia, de que ela teria sido reivindicada por peritos da Universidade de Antropologia e Arqueologia que achavam interessante estudar o processo de mumificação salina pelo qual ele havia passado. Há registros de que o cadáver foi entregue aos cuidados de tais pessoas, mas nenhum nome foi anotado.
Supõe-se que depois disso ela possa ter sido enviada para o acervo do Museu Nacional. Múmias, afinal de contas, eram parte importante do Museu e nada mais justo do que uma múmia tipicamente brasileira ser integrada a coleção. Infelizmente, se esse foi o caso, a exemplo das peças egípcias que faziam parte do acervo de 20 milhões de itens do Museu Nacional, ela também teve um destino trágico.
A Múmia acabou se tornando uma curiosidade, quase uma Lenda Urbana na Cidade Maravilhosa , justamente em um dos seus mais famosos cartões postais.
muito bom!
ResponderExcluirÓtimo artigo
ResponderExcluirNunca tinha escutado essa história até agora. Irado, ótima escrita. Abraços
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