sábado, 6 de agosto de 2022

Império dos Mortos - As mórbidas Catacumbas de Paris


por Jeff Belanger
traduzido e comentado por L.P. Giehl

"Avez-vous vu un fantôme?" eu perguntei ao homem na entrada no meu melhor francês, se ele já havia visto um fantasma. "Je ne sais pas," ele respondeu. O sujeito sorriu e deu de ombros. Na semana passada, passei três dias em Paris, e tive a chance de visitar as singulares Catacumbas de Paris. Eu sabia que existiam ossos guardados em túneis abaixo da cidade, esse é um fato famoso, mas eu não estava preparado para descobrir a quantidade. Eu estava pronto para ouvir relatos a respeito de sombras se movendo e vozes fantasmagóricas se erguendo das entranhas de Paris, mas eu não estava preparado para a forma como a experiência fez com que eu me sentisse.

As Catacumbas de Paris são uma rede de túneis e cavernas que se estendem por mais de 300 quilômetros bem abaixo da cidade. Para construir uma cidade, você precisa de material. Os romanos foram os primeiros a retirar pedras do subsolo em meados de 60 a.C. A medida que a cidade crescia e cobria a paisagem de casas e ruas, mais e mais matéria prima se fazia necessária. As pedras eram levadas para a superfície e um subterrâneo sombrio se formava, conectado por infindáveis túneis e inúmeras vias. Em 1180, Philippe-Auguste se tornou o Rei de França. Ele foi um dos maiores defensores da exploração de pedreiras na área subterrânea de Paris. Foi em seu reinado que o complexo realmente despontou.

Nota 1 - O Monarca desejava construir muros cercando a cidade para protegê-la de invasores. Esses muros construídos com o material retirado dos subterrâneos ainda existe no entorno da parte histórica de Paris e praticamente todo o material foi retirado do subsolo.



As pedreiras subterrâneas cresceram em tamanho e complexidade fornecendo material usado nas construções ao longo dos séculos vindouros. A retirada de material, um trabalho perigoso e que não raramente resultava em tragédias, prosseguiu sem maiores cuidados até que os primeiros problemas começaram a surgir. No século XVIII, Paris continuava crescendo e o peso das construções passou a constituir um grave perigo uma vez que elas estavam edificadas sobre cavernas ocas.

Alguns prédios começaram a ruir e desabar nas cavernas que existiam abaixo deles. Em 4 de Abril de 1777, a Inspection Générale des Carrières foi formada para lidar com o problema, preencher ou lacrar os trechos onde havia maior risco de desabamento. Temia-se que Paris pudesse desabar por inteiro.

Foi mais ou menos nessa época que um segundo problema começou a atormentar os parisienses - os cemitérios da cidade estavam super lotados. O Cimetière des Innocents (Cemitérios dos Inocentes) sozinho comportava trinta gerações de restos humanos. Taara, é a responsável pelo Web Site a respeito das Catacumbas. Ela contou que, "Familias costumavam pagar aos párocos para enterrar seus mortos no terreno das igrejas. Os padres aceitavam o dinheiro, mas logo não havia mais espaço para colocar os corpos. Então os religiosos decidiram criar um a espécie de depósito para os mortos que ficaram conhecidos como "charnier". Os cadáveres eram ali colocados, todos juntos num único e grande buraco cavado. 

"Uma cova comum que não excluía ninguém", ou assim se dizia na época.

Nota 2 - Poucos corpos eram depositados em caixões, pois poucos podiam arcar com esse luxo. A maioria dos cadáveres eram envolvidos em um saco de tecido cru que era então costurado. Sob os corpos era aplicada uma camada de cal virgem para ajudar na desintegração da carne fazendo com que restassem apenas os ossos. No geral, três semanas depois do enterro os corpos já se encontravam, suficientemente decompostos.

"A medida que a cidade emergente cercava os cemitérios, não havia mais lugar para enterrar os mortos senão uns por cima dos outros. Em Cemitérios como o dos Inocentes, que continuavam recebendo cadáveres, o chão se elevava a até três metros de altura com a quantidade absurda de corpos ali depositados. O fedor era um tormento para aqueles que viviam nas proximidades. Em tempos de chuvas, as coisas eram ainda piores: as enchentes arrastavam corpos apodrecidos para as ruas. Doença e pestilência proliferavam entre os residentes dessas regiões".

Nota 3 - Paris é abastecida por rios subterrâneos e fontes de água naturais. O material depositado nos cemitérios contaminava o suprimento de água e era responsável por inúmeras doenças além da proliferação de ratos. No século XVIII Paris não era chamada de Cidade Luz, mas de "Cidade dos Ratos" pois havia segundo estimativas, vinte roedores para cada habitante. 



A decisão de esvaziar os cemitérios não foi muito popular, mas foi a medida necessária para salvar Paris de seus mortos. O local escolhido para depositar os restos foi o sistema de túneis que também constituía uma ameaça para a cidade. Acreditava-se que a medida resolveria ambos os problemas. Em 1785, os ossos começaram a ser movidos para os subterrâneos em massa, as velhas pedreiras se tornariam seu local de descanso.

Nota 4 - Encontrei uma descrição bastante mórbida sobre como os ossos eram transportados do cemitério para as catacumbas. Eles eram levados em grandes carroças cobertas com uma lona preta, sempre à noite, pois ninguém queria topar com essas carroças e seu conteúdo assustador. Os Parisienses acreditavam que se uma dessas carroças parasse ou quebrasse em frente a uma casa, era sinal de que alguém ali morreria em breve. Ninguém queria fazer esse trabalho, então soldados foram enviados para o serviço, muitos deles reticentes em cumprir tais ordens.

A primeira pedreira que recebeu os ossos ganhou o nome de "Carrière de la Tombe Issoire" e os ossos foram lá depositados com enorme cuidado. Perturbar os mortos é um tabu universal, muitas culturas acreditam que os mortos devem ser deixados em paz, e muitas religiões prestam rituais e cerimônias visando garantir um lugar de descanso para seus entes queridos. Isso explica a forma como os ossos foram colocados, quase com reverência pelos operários, contudo uma vez que havia pressa essas medidas foram se tornando cada vez mais simples. Logo os ossos eram simplesmente lançados nas catacumbas que eram lacradas e esquecidas.

Nota 5 - Antes dos restos começarem a ser transportados, seis padres responsáveis por paróquias próximas foram convocados para rezar uma missa coletiva no local onde os ossos seriam depositados. As passagens das cavernas foram abençoadas e até mesmo uma carta do Bispo de Paris foi escrita para tranquilizar as pessoas de que o trânsito dos ossos não importava em heresia. Os mais supersticiosos temiam que o Paris fosse amaldiçoada pelos mortos e muitos habitantes se mudaram da cidade.

Realmente haviam muitos relatos de que os mortos não estavam satisfeitos com aquilo. tetsemunhas falavam de fantasmas acompanhando as carroças abarrotadas de ossos e de almas penadas chorando diante da dessacralização de seus restos. Histórias sobre Ghoules se tornaram populares nas tavernas de Paris, os devoradores de mortos se fartavam roendo os ossos amarelados até o tutano.

Em um ensolarado dia de outono, eu visitei o museu da Catacumba localizado em Denfert-Rochereau na seção Montparnasse de Paris. Por cinco Euros, pude descer e explorar as catacumbas. Desci os 130 degraus e uma rampa em espiral que me conduziu à 20 metros abaixo da superfície. Primeiro encontrei duas salas cheias de fotografias com imagens de antigos rabiscos deixados nas paredes desde a criação dos túneis.

Nota 6 - Esses rabiscos e pichações são bastante curiosas e algumas fazem parte da exposição do museu. Ao longo de sua existência esses túneis foram usados como esconderijo de bandidos e como morada de vagabundos. No romance de Victor Hugo, "Les Misérables" o complexo é citado, o escritor teria visitado os túneis várias vezes.



Após passar pelas duas pequenas salas, eu realmente adentrei as Catacumbas. O teto nos túneis é rebaixado variando entre 1,80 e 3,20 de altura. A iluminação é bem tênue, mas meus olhos se ajustaram rapidamente. Poucas pessoas visitavam o lugar na ocasião. Eu passei por um jovem casal que carregava uma lanterna elétrica e lançava a luz para apreciar os cantos. Observei a textura e contornos das paredes e ouvi o som do cascalho sob a sola de meus sapatos. O único som ocasional era o pingar vindo de algum lugar ao meu redor - parte do teto coleta água, e quando o acúmulo se torna pesado acaba pingando no chão.

Vi alguns entalhes e graffiti cobrindo as paredes mas não consegui ler, mesmo assim segui em frente. O túnel faz uma curva de 90-graus para a direita, e resolvi andar mais rápido. Parecia que eu estava em um túnel normal, nada mais. Comecei a imaginar se estava no lugar certo. Depois de mais alguns túneis, para a direita e esquerda, eu me aproximei de um pilar pintado emoldurando uma estreita abertura. Ali havia uma placa onde se lia: 

"Arrete! C'est ici L'Empire de la Mort" 

"Pare! Este é o Império dos Mortos."

Nota 7 - Essa placa foi colocada pelas autoridades de Paris para afastar os curiosos antes do complexo ser aberto para a visitação pública. O local se tornou uma "atração turística" a partir de 1867, mas mesmo antes disso ele era procurado por curiosos. A morte e as vicissitudes da condição humana sempre atraíram público. Tamanha era a devoção à atração que no século XIX, as Catacumbas de Paris eram uma das principais atrações da cidade. A popularidade era tamanha que os visitantes queriam levar consigo um pedaço do lugar e guardas tinham de advertir turistas de que os ossos não podiam ser removidos de seu lugar. Mesmo assim, ossos sumiam e continuam sumindo de tempos em tempos. A morbidez do ser humano não tem limite!

O complexo fechou temporariamente em 2009, após um incidente de vandalismo, mas foi reaberto no mesmo ano por clamor da população.

Em virtude da diferença entre a luminosidade do túnel onde eu estava e da câmara adiante eu não conseguia enxergar direito o lugar. Fiz uma pausa e lentamente entrei no Ossuary of Denfert-Rochereaux, uma das câmaras principais do complexo. 

Nota 8 - O nome original da entrada para as Catacumbas era "Porte d'Enfer" (Ou Portão do Inferno), ele foi mudado no século XVIII. O nome é curiosamente anterior a utilização dos túneis como ossuário. O Portão do Inferno tinha esse nome pois muitos parisienses na idade média acreditavam que as escavações supostamente haviam aberto túneis que conduziam até o mítico Hades.

Uma lenda atesta que em 1737 habitantes de Paris pediram providências oficiais para que essas portas fossem lacradas já que alegadamente ouvia-se o som do suplício das almas nas profundezas, torturadas pelos demônios. Quando um boato de que se sentia o cheiro de enxofre chegou à população houve o princípio de uma revolta que só foi contornada pela intervenção da guarda real.

A passagem do corredor tem algo entre 1,80m e 2,30m de largura e as paredes possuem pilhas e mais pilhas de ossos e crânios cuidadosamente edificados. Na entrada esses montes de ossos chegam a 1,20 de altura. As órbitas vazias dos crânios saúdam quem entra e seus dentes parecem sorrir com desdém. Já dentro da sala eu parei para olhar ao meu redor. Ossos recobriam toda a superfície da câmara, nada a não ser ossos e crânios até onde a escuridão do túnel, permitia a vista alcançar. Dentro da Catacumba inteira, estima-se existir mais de seis milhões de cadáveres - apenas os ossos. Não sei dizer ao certo quantas milhares de pessoas estão depositadas no trecho de 1,7 quilômetros abertos a visitação pública. Em diferentes seções, o ossuário forma padrões de cruzes feitas de crânios, corações, arcadas, e outras formas geométricas.

Nota 9 - Além dos restos mortais, os primeiros arquitetos da cripta usaram as lápides dos cemitérios para guarnecer as paredes e o piso, mas estas foram retiradas na época da Revolução Francesa (1789) para serem reutilizadas. Os ossos também eram surrupiados por estudantes de medicina e dizem, por seitas de satanistas que os usavam em seus rituais de magia negra. 



As pilhas de ossos são intrincadas, simétricas e extremamente macabras. Eu tentei imaginar como as pessoas que empilharam aqueles ossos devem ter se sentido. Despejar milhões de restos humanos em um túnel 20 metros abaixo do chão não me parece algo muito respeitoso. Talvez o trabalho meticuloso em arranjar os restos em um padrão quase artístico tenha sido a maneira com a qual os operários concederam alguma dignidade e beleza aos mortos.

Nota 10 - Muitos dos operários que trabalharam nas Catacumbas, tiveram garantido o direito de serem enterrados em cemitérios normais. Alguns poucos, no entanto, pediram que seus restos fossem colocados nas catacumbas. Os últimos cadáveres transferidos para o subterrâneo de Paris foram os indivíduos mortos nos distúrbios da Place de Grève em 1788.

O lugar que eu visitei em seguida é o Museu Oficial da Catacumba - os túneis mais adiante estão fora da rota de visitas, pois os turistas podem se perder ali dentro. Os 1.7 quilômetros que se estendem a partir do museu oferecem uma visão de apenas uma ínfima fração do que é o sistema de túneis. Há ossos depositados em outras seções também. 

Segundo os historiadores nas catacumbas fechadas, os ossos não se encontram depositados como nos túneis abertos à visitação. Eles não são tão organizados. Os ossos são simplesmente acumulados ao longo das galerias. Então você tem que rastejar e andar sobre eles. É uma sensação muito estranha, mas depois que você se acostuma, não é muito diferente de andar sobre pedras." disse Taara. Quando era mais jovem ela explorou esses túneis várias vezes. Mesmo com seu trabalho e família, ela ainda visita as catacumbas pelo menos uma vez por mês.

Nota 11 - Os túneis fora do circuito do tour são proibidos para o público, contudo isso não impede que curiosos desçam com o objetivo de explorar o lugar. A polícia parisiense prende e multa em média 100 pessoas anualmente invadindo esses corredores.

Em diferentes trechos dos túneis, existem placas que sinalizam de qual cemitério vieram aqueles restos, junto com a data em que eles ali foram colocados. O processo teve início em 1785, e a seção mais recente que encontrei é de 1859. O processo de transporte dos corpos para as catacumbas foi incessante, e durou pelo menos 70 anos para ser concluído.

Nota 12 - Um dos planos era usar os túneis para receber um fluxo constante de restos mortais, mas a expansão acelerada da cidade permitiu a criação de novos Cemitérios mais afastados do centro que sanaram o problema.



Taara comentou: "Você pode encontrar ossos em praticamente todo o complexo de túneis. A coisa mais interessante a respeito das pedreiras é que elas são testemunhas de grande parte da história de Paris. Por exemplo, você ainda pode ver vestígios da Revolução ou de períodos importantes como a Segunda Guerra Mundial. Você pode encontrar vários lugares com arquitetura fabulosa, o tipo de coisa que marcou cada época e que não se encontra mais. Portanto é realmente um lugar especial, e ficamos orgulhosos de saber que ele está logo abaixo de nossos pés. Muitas pessoas, franceses inclusive, não desconfiam que existe outra Paris sob Paris".

Nota 13 - Durante a Revolução o complexo subterrâneo serviu de esconderijo e rota de fuga para nobres que tentavam escapar da perseguição. Mendigos que viviam no local ficaram ricos escoltando nobres através dos túneis e para longe da plebe sanguinária. Na Segunda Guerra, membros da Resistência que enfrentava a ocupação nazista também usavam os túneis como ponto de encontro. Os alemães por sua vez construíram um bunker subterrâneo abaixo do Lycee Montaigne que era usado como depósito de armas e munições.

Eu encontrei outros americanos visitando o museu e perguntei a eles o que acharam: "É impressionante, todos esses ossos nas paredes" disse Julie Hardman de Tempe, Arizona. Hardman estava lá com sua filha, Megan. Um guarda de segurança que pediu para não ser identificado comentou, "Algumas pessoas vem aqui em baixo e ficam muito assustadas depois de ver os ossos. Alguns dizem que ouvem coisas. Vozes".

Nota 14 - Até a década de 70, a visita das Catacumbas era vedada a menores de 14 anos pois considerava-se que o conteúdo poderia ser chocante para crianças. A visitação hoje é aberta, desde que menores estejam acompanhados ou sob a supervisão de um adulto.



Próximo do fim da visita, parei novamente para lembrar a mim mesmo que todas aquelas pessoas um dia tiveram nome. Cada um deles era uma pessoa, um indivíduo. Eu não conseguia pensar em nada que pudesse fazer para reconhecê-los dessa forma. Não havia nada que eu pudesse dar em sinal de respeito. Eu rezei em silêncio e retornei para a rampa em espiral em direção à saída. Enquanto examinava minhas anotações, gravações e fotografias, percebi que tudo o que eu podia fazer era contar essa história.

Aqueles seis milhões de indivíduos sacrificaram seu descanso eterno para que Paris pudesse prosperar. Os ossos de nobres estão misturados aos de camponeses, famílias inteiras se reencontraram com os ossos de seus ancestrais, e eu andei em meio a eles. Trinta gerações falando para cada visitantes em uma única e coletiva voz.

O Império dos Mortos se despediu e eu parti, em silêncio reverente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário