sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Resenha Tentacular: The Sandman - A aguardada série da Netflix inspirada nos quadrinhos


Foram necessários 30 anos para que uma adaptação de The Sandman (Netflix), a célebre série de quadrinhos de Neil Gaiman, chegasse às telas. Pouco para os Perpétuos que não estão sujeitos à passagem do tempo, mas uma existência para os fãs ansiosos por assistir a versão live action dessa saga tão querida.

Eu me recordo com carinho de quando comecei a ler Sandman, lá pelos idos da década de 1990. Eu vinha dos quadrinhos de super-heróis e estava querendo algo diferente. Esse algo mais veio através do Selo Vertigo, que trazia histórias mais adultas produzidas pela DC Comics. Eu já conhecia e amava o Monstro do Pântano que era o meu personagem favorito, adorava o bom e velho Hellblazer, mas quando li Sandman foi como experimentar pela primeira vez uma iguaria fina. Um verdadeiro prato exótico, diferente de tudo que eu já havia provado até então, algo tão estranho quanto fascinante.

As histórias eram grandiosas, ousadas, cheias de nuances e estranheza, com um toque de proibido e misterioso como bem convinha ao obscuro personagem título. Em que outra história em quadrinhos o protagonista fala através de balões negros e divaga sobre filosofia arcana, história, lendas e fantasia? Sandman é uma criação genial saída da mente de Neil Gaiman, gerado, eu suspeito em algum sonho - afinal, o que seria mais adequado?

A Saga de Sandman era povoada por Deuses e Demônios, seres mágicos e criaturas vis, pessoas normais e extraordinárias, reunidas para contar fábulas que podiam ser belas e líricas, medonhas e perturbadoras, fazendo o leitor pensar, ponderar e se emocionar. A HQ de Sandman trazia mensalmente algum delírio criativo destilado por Gaiman e transformado em imagem por intermédio de um dos talentosos artistas que trabalhavam com ele. O resultado era singular, algo que acontece uma vez a cada geração.

Criador e Criatura, Neil Gaiman e Sandman

Eu sempre me perguntei se Sandman um dia poderia se tornar um filme, mas supunha ser algo impossível de acontecer. Eu me conformava com a noção de que filmar algo desse tamanho, dessa importância, dessa complexidade, beirava o inviável... "melhor nem tentar, se for para fazer porcaria", lembro de ter dito repetidas vezes. Mesmo assim, eu sonhava (claro que sonhava!) com uma adaptação, e imaginava se seria possível transmutar arte em papel para arte em celuloide.

Nunca aconteceu.

O tempo passou e Sandman terminou sua longa jornada nos quadrinhos, Gaiman se dedicou a outros projetos e a ideia de que um dia seria possível ver Lorde Morpheus em carne e osso, ficou no esquecimento. Claro, eu continuava folheando habitualmente as páginas das edições originais e os "encadernados definitivos" que foram lançados ao longo dos anos. Acho justo dizer que nunca parei de ler Sandman.

Então, ano passado, entra na jogada a Netflix com a bombástica notícia de que a maior empresa de streaming do mundo estaria interessada em adaptar a obra de Gaiman no formato de uma série. 

Tom Sturridge vive o Perpétuo Lorde Morpheus

Ok, tempo para processar a notícia e pesar os prós e contras dessa iniciativa. Se por um lado o formato de série, com temporadas, era uma boa ideia (muito melhor do que a de um filme) e a Netflix tinha dinheiro para fazer algo grandioso, por outro, sabemos que nem sempre as adaptações deles são fiéis e que não são poucas as vezes em que o resultado foi de lascar.

Após o anúncio confirmando que a série seria realmente produzida, transcorreram longos meses entre escolha de elenco, locações e filmagens, nos quais fãs novos e antigos usaram as redes sociais como campo de batalha para testar suas teorias. De um lado os que apostavam que seria uma série sensacional e do outro os que diziam que seria nada menos do que o Fim dos Tempos. Tudo sobre Sandman foi debatido, esmiuçado, analisado, criticado, defendido e atacado por uma verdadeira horda de nerds desvairados que, convenhamos, tinham mais tempo do que argumentos. Um dos pontos mais delicados foi a escolha do elenco, pomo da discórdia que descambou para as mais venais discussões sobre fidelidade a obra original no que tange à aparência, raça, gênero e conceito dos personagens.

Alinhado com os produtores, Gaiman saiu em defesa da obra e assumiu o papel de relações públicas da série, garantindo que os fãs não precisavam se preocupar, ele não deixaria seu Sandman ser maculado. Garantia um tanto quanto questionável se considerarmos que ele também estava envolvido com American Gods, e deu no que deu. 

Para encurtar essa introdução e ir direto ao que importa; enfim, semana passada a série estreou com pompa e circunstância na grade de programação da Netflix e convém discutir qual o resultado. Sandman é tudo aquilo com o que sonhávamos ou é um pesadelo do qual não conseguimos despertar? (eu sei, infame, mas não dá para resistir aos trocadilhos oníricos).

A personificação dos Sonhos em carne e osso.

Sem querer fugir da questão, acho que o mais honesto é começar dizendo que é uma série interessante, muito bem produzida e agradável de assistir. Ela vai fazer os fãs sentirem uma ponta de nostalgia ao ver os personagens que amam e ouvir trechos que estão em perfeita sintonia com as histórias. Por outro lado, mesmo os fãs mais entusiasmados serão capazes de apontar elementos que ficaram aquém da expectativa.

Enfim, Sandman é uma boa série, mas está longe de ser perfeita.

É preciso dar um desconto, afinal, juntar em dez episódios uma trama tão rica e profunda não é nada fácil, mesmo quando se divide a temporada em dois arcos - à saber, Prelúdios e Noturnos e A Casa de Bonecas, exatamente as duas sagas iniciais dos quadrinhos.  

Com um orçamento considerável, elenco afinado, bons efeitos e ótima fotografia, Sandman pode se sentir orgulhoso de fazer o que parecia impossível: Dar credibilidade a um universo que muitos consideravam impossível filmar.

Para quem não conhece o quadrinho e não sabe nada à respeito do personagem, é bom fazer algumas apresentações básicas. Na trama, Sandman, mais conhecido como Sonho ou Morpheus, é uma entidade que integra os Perpétuos, uma família formada por seres de poder quase ilimitado que governam reinos ligados a diferentes aspectos da psique humana. Os Perpétuos são responsáveis por coordenar facetas bem particulares de nossa existência mortal - o Destino, a Morte, Desejo, Delírio etc. Sandman, no caso, é o Perpétuo incumbido de zelar pelos Sonhos. É para seu reino que nós vamos quando estamos dormindo e é lá onde nascem as aspirações, projetos e ambições, bem como é lá que surgem nossos medos e inseguranças. Morpheus é quem rege tudo isso e faz com que a humanidade encontre seu caminho entre acertos e erros moldados em seus domínios.

Muitas cenas parecem ter sido sacadas direto das páginas dos quadrinhos

A história começa em 1916, quando Sandman (Tom Sturridge) acaba sendo capturado por um cabal de feiticeiros liderados por um sinistro mago chamado Roderick Burgess (Charles Dance). O bando estava mirando em outro Perpétuo, a Morte e tencionavam capturá-la para seus fins mesquinhos. Ao invés disso, acabam prendendo o irmão desta, nosso protagonista, o Rei dos Sonhos. Uma vez capturado, Morpheus é destituído de suas ferramentas reais - um elmo, uma algibeira e um rubi, que são seus símbolos de poder. Em seguida, enfraquecido e nu, ele é trancafiado numa gaiola de vidro. Lá é coagido pelos seus captores a cooperar, mas se nega a fazê-lo, assistindo pacientemente a passagem das décadas, pois Morpheus ao contrário dos mortais, tem todo tempo do mundo. A prisão do Perpétuo responsável pelos Sonhos se mostra, contudo, devastadora para o mundo desperto, mergulhado em um século de guerra, horror e incerteza. 

Não é nenhum Spoiler revelar que Morpheus eventualmente consegue escapar e que ao fazê-lo retorna ao seu reino, o Sonhar, descobrindo que ele mudou muito. Sua fiel bibliotecária Lucienne (Vivienne Acheopong) cuidou do lugar, mas o Reino quase foi devastado no hiato criado por sua ausência. Ele precisa então reafirmar seu título como Senhor dos Sonhos e reaver seus poderes. 

O primeiro Arco da trama, chamado nas HQ de Prelúdios e Noturnos (correspondendo aos episódios 1 a 5) se concentra na busca de Morpheus pelos seus artefatos que nos anos de aprisionamento mudaram de mãos e se perderam na Londres contemporânea, nas profundezas do Inferno e nas garras de um demente muito perigoso. A jornada para reunir suas ferramentas perdidas se mostra uma tarefa bem mais complicada do que ele poderia imaginar e dá o pontapé inicial na saga de uma forma muito promissora.

O aprisionado Senhor dos Sonhos aguarda o momento de ser livre

A seguir, temos o segundo arco (os episódios 6 a 10) chamado de "A Casa de Bonecas" que lida com problemas surgidos enquanto Morpheus esteve incapacitado de cumprir suas obrigações. Três dos seus súditos: dois pesadelos e um sonho, desapareceram e se perderam no mundo desperto. Eles tem agido de forma renegada desde o sumiço de seu Mestre e é preciso trazê-los de volta. O mais perigoso desses rebeldes é o pesadelo que atende pela alcunha de Coríntio (Boyd Holbrook), um maníaco que inspira serial killers e que se torna um oponente de peso para Morpheus. A importância do Coríntio é ampliada na série, tornando-o o principal antagonista. Além disso, o Rei dos Sonhos tem que enfrentar a ameaça de um Vórtice de Sonhos, um mortal nascido com a singular capacidade de destruir o Sonhar. 

Casa de Bonecas é uma história difícil, com uma longa lista de coadjuvantes (longa demais, eu diria!) e situações bizarras, como uma Convenção de Assassinos em série e uma viagem vertiginosa pelos Reinos Oníricos. Em termos de roteiro o primeiro arco é muito superior ao segundo, que sofre de um excesso de informações que nem sempre são explicadas satisfatoriamente. A maior parte do arco trata de Sonho discutindo com Rose Walker (Vanesu Samunyai, o Vórtice) tentando decidir o que fazer à respeito dela. A outra parte envolve a busca de Rose pelo seu irmão extraviado. A impressão é que essa trama se estende demasiadamente e começa em certa altura, a se arrastar demais. Bem quando já se tornava repetitiva, a série termina com um gancho para a próxima temporada. Ela cria suspense sobre o que vai acontecer à seguir, algo bem dentro da cartilha das séries da Netflix.  

É curioso que o melhor episódio dessa primeira temporada (pergunte a qualquer um) seja aquele que divide os dois arcos e que apresenta a faceta mais humana de Sandman na forma de sua irmã, a Morte. Esse sexto episódio é nada menos do que sensacional ao condensar em pouco mais de 50 minutos duas das melhores histórias da Saga de Sandman, as icônicas "O Som das Asas Dela" e "Homem de Boa Fortuna". Mesmo que depois de ler essa resenha você conclua que essa série não é para você, eu indico assistir ao menos esse episódio, pois ele é uma aula de como contar uma boa história de fantasia.

Sandman encontra Lúcifer no Inferno

O grande elenco é em sua maior parte adequado, com uma capacidade notável de declamar trechos que poderiam soar excessivamente literários, complicados, ou as duas coisas, de forma não artificial. Tom Sturridge, oferece um Morpheus mais humano do que eu contemplava, mas mesmo assim se sai bem ao interpretar uma deidade cheia de nuances, nem bom e nem ruim, simplesmente inumano. Fisicamente sua aparência é bem condizente aos quadrinhos e ele soa como Morpheus, sobretudo quando está zangado. Eu gostei especialmente de Charles Dance e de David Thewlis (que faz o papel do instável John Dee). Os dois roubam o espetáculo sempre que estão em cena. Joely Richardson (Ethel Cripps) também tem uma interpretação sólida como a mãe de Dee. Infelizmente Gwendoline Christie (a regente do Inferno, Lúcifer Morningstar) e Stephen Fry (Gilbert) tem pouco tempo de cena para mostrar serviço. Um dos personagens mais debatidos pelos fãs, a Morte, interpretada por Kirby Howell-Baptiste entrega um excelente desempenho que justifica os produtores terem bancado sua escolha. A Morte é a mais humana das personagens e embora sua aparência inegavelmente difira do conceito original, e tenha causado um debate acalorado, se sai muito bem.

O ponto fora da curva é a versão feminina de John Constantine, no caso Johana, que assume o papel uma vez que a Warner Bros, detentora dos direitos sobre o personagem, não o liberou para a série. A solução foi usar uma personagem que de fato existe na saga, uma antepassada de Constantine, mas lançá-la na trama nos dias atuais, solução meio preguiçosa se me perguntarem. O problema, entretanto, não é a atriz Jenna Coleman, mas como sua Constantine é retratada. Assim como Keanu Reeves no filme de 2005, a personagem é mais uma exorcista do que uma maga, mais uma mercenária em busca de recompensa do que uma ocultista e mais uma pessoa problemática do que uma pilantra incorrigível. Fala-se de um spin-off a ser estrelado por ela, mas francamente eu preferia assistir uma série com um John Constantine que faça jus ao fumante calhorda dos quadrinhos.

Visualmente Sandman tem uma produção de qualidade com direito a paisagens oníricas deslumbrantes e panoramas infernais enfumaçados, além de saltos no tempo a diferentes períodos históricos. Eu penso que o Inferno e seus habitantes poderiam ter recebido um pouco mais de atenção, alguns deles ficaram demasiadamente humanos e com um visual um tanto ridículo (o demônio Corazon, por exemplo mais parece um funkeiro carioca). Toda parte técnica, entretanto, é realizada com cuidado e competência, o que inclui trilha sonora, fotografia e efeitos de CGI de primeira.

Os Irmãos Perpétuos, Morte e Sonho divagam sobre seu papel

Uma crítica que tenho diz respeito a certa diluição do terror e do clima dark que permeava boa parte do quadrinho. Trechos como o castigo de Alex Burgess com o Eterno Despertar, a presença de pesadelos se alimentando dos vivos na busca pela algibeira e alguns aspectos mais detestáveis dos demônios parecem ter sido diminuídos. Mesmo o polêmico episódio 5, o infame "Massacre no Dinner", batizado 24-7, perde um pouco o choque original, ainda que seja inquietante.    

Eu tenho algumas dúvidas sobre o que aqueles que estão conhecendo esse universo agora vão achar de Sandman e de sua trama. Um pouco estranha? Provavelmente. Um tanto confusa? Com certeza. Um bocado corrida com muita coisa acontecendo simultaneamente? Sem sombra de dúvida.  

Apesar de não ser perfeito, Sandman é uma série acima da média e deverá ser renovada para novas temporadas já que vem fazendo sucesso mundo à fora. Suponho que a medida que for avançando, o roteiro encontrará a chance de aprofundar os personagens e encontrar o ritmo ideal para a narrativa. De toda forma, Sandman finalmente chegou onde todos queriam, e isso não é pouca coisa.  

Trailer:


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