quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Resenha: The Reign of Terror - Os Horror do Mythos visita a Revolução Francesa


Nas últimas semanas, o Mundo Tentacular trouxe uma série de artigos centrados na França e comentou alguns elementos distintos (e particularmente macabros) desse país.

Vou revelar que um dos motivos para isso era preparar o terreno para essa resenha dedicada a Reign of Terror (Reinado do Terror, em uma tradução rápida), um suplemento que leva o Horror Cósmico do Mythos até a França pré e pós revolucionária. 

Então, sem perder tempo, vamos direto ao que interessa.

Reign of Terror é um material oficial lançado pela Chaosium em 2018 para Chamado de Cthulhu, ambientado no século XVIII durante a Revolução Francesa. Escrito principalmente pelo veterano Mark Morrison, este livro com 128 páginas contém dois cenários de aventura, um deles em meio à Revolução que depôs a monarquia e outro lidando com as suas consequências diretas. 

Antes de exaltar as (muitas) virtudes de Reign of Terror e apontar suas (poucas) falhas, tenho um aviso a fazer. A primeira aventura pode ser jogada como parte da sensacional campanha Horror no Expresso do Oriente (HotOE) e é tratada como uma espécie de Flashback. Para não estragar a diversão alheia e recair em spoilers, tentarei ser vago ao discutir os detalhes de Reign of Terror. Aqueles que jogaram HotOE provavelmente vão captar quais são as minhas vagas descrições, mas farei o possível para não estragar a diversão dos que não jogaram e que pretendem fazê-lo.


Reign of Terror se passa em dois momentos diferentes da história francesa. O primeiro deles tem como data nominal o fatídico ano de 1789, poucas semanas antes da Revolução Francesa se iniciar. Já o segundo transcorre passados cinco anos, durante o período especialmente caótico e sangrento conhecido como o Grande Terror. Maria Antonieta está viva durante na primeira parte e cinco anos depois, ela, o Rei e grande parte da corte já perderam suas cabeças na Guilhotina. O movimento revolucionário tomou um caminho impensado na direção do extremismo e o medo ganhou as ruas. Como os personagens vão lidar com a revolução, qual a sua devoção, o que fizeram antes, durante e depois dela, constitui um dos elementos chave na trama.  

A primeira parte de Reign of Terror é uma versão estendida e jogável de um dos muitos Recursos (handouts) que compõem a Campanha Horror no Expresso do Oriente. Essa pista em particular é obtida em Paris e ajuda os investigadores em sua missão no ano de 1923. O propósito do grupo é obter um fragmento do Sedefkar Simulacrum, um artefato maligno dividido em várias partes, que deve ser coletado e então destruído. 

Morrison e sua equipe expandem essa pista e a transformam num cenário jogável que deve se desenrolar em uma ou duas sessões. Embora o cenário possa soar bastante linear ele acaba sendo "muito divertido de jogar”, de acordo com os próprios autores do cenário. Todas as peças necessárias para preservar a pista original estão incluídas, bem como um dos vilões mais memoráveis ​​e terríveis da campanha HotOE.


Os personagens assumem o papel de soldados servindo em Paris na véspera da Revolução. Eles são designados para uma missão aparentemente rotineira que envolve guardar as macabras catacumbas de Paris e organizar o transporte dos ossos escavados dos cemitérios lotados para as criptas subterrâneas. Enquanto seguem as ordens recebidas, o grupo acaba se envolvendo em uma conspiração sombria que os levará a um horror inenarrável. Eles terão um encontro com um perigoso nobre, conhecerão fanáticos agentes revolucionários, se envolverão em intrigas palacianas e irão testemunhar a mais decadente das festas. A aventura termina com algumas notas de rodapé interessantes ligando os personagens ao célebre Acordo da Quadra de Tênis e ao emblemático episódio da Tomada da Bastilha. A trama inteira é muito bem dirigida e sólida, embora funcione melhor para um grupo que conheça detalhes da História francesa.

A segunda parte envolve os mesmos personagens da parte um e os lança em uma aventura relacionada a primeira porção, ainda que ela não seja exatamente uma sequência. Não há NPCs canônicos como aqueles usados ​​na primeira parte, estes são substituídos por outros, que embora não sejam icônicos, são interessantes e quase tão aterrorizantes. Digo “quase” porque os vilões de Horror são realmente de primeira linha e difíceis de igualar. 

Como mencionado, a segunda parte acontece cinco anos depois da Revolução em 1794. O Grande Terror se instalou na sociedade construída pelos ventos revolucionários e a população ainda está lidando com as profundas repercussões da Revolta. Esta é a sangrenta Era da Guilhotina, onde a paranoia corre solta e informantes apontam o dedo para supostos traidores com intuito de eliminar adversários políticos e pessoais. Ninguém está seguro e qualquer um pode ser levado ao cadafalso. Nessa trama, um personagem apresentado na primeira aventura se apodera de um conhecimento indescritível e planeja usá-lo para sacrificar Paris a uma entidade sobrenatural.


Os apêndices seguem as partes um e dois oferecendo informações adicionais extremamente valiosas à respeito da Revolução Francesa. Há ainda dez ocupações apropriadas ao período para quem quiser criar seus próprios personagens em vez de usar aqueles que estão prontos no final do livro. Temos ainda dez Sementes de Cenários para construir outras aventuras no período revolucionário. Como muitos suplementos de Chamado de Cthulhu, Reign of Terror oferece recursos, mapas e pistas muito bem feitas.

Há muito o que elogiar em Reign of Terror. 

Primeiro, e mais óbvio, trata-se de um livro maravilhosamente ilustrado. O layout e o trabalho gráfico são extremamente bem feitos, e o esmero da Chaosium em oferecer material bem produzido é evidente. A arte é incrível recorrendo a telas famosas de artistas geniais do período - como Delacroix. Essas pinturas belíssimas fornecem um panorama grandioso e suntuoso. Além da arte, o suplemento contém vários mapas muito úteis, sobretudo o do Palácio de Versalhes e do labirinto que compõe as ruas de Paris. 

A escrita é igualmente boa, com um texto informativo, bem organizado e prazeroso de ler. O amor de Mark Morrison por este trabalho fica bem evidente e o leitor reconhece o cuidado e a atenção meticulosa que autor e equipe dedicaram a este projeto. O grau de pesquisa se faz brilhante, sendo informativo sem jamais se mostrar enfadonho. Ao invés disso, o detalhamento histórico é exemplar, com dezenas de pormenores que preenchem lacunas com fatos. Muitas, senão a maioria, das sementes que podem ser transformadas em cenários adicionais parecem extraídas de registros históricos, e eu não me surpreendo ao descobrir que muitos dos NPCs presentes, de fato, são reais. 


As aventuras são absolutamente apropriadas à proposta original do Livro: Misturar o Horror dos Mythos com um dos mais conturbados períodos da História é uma ideia brilhante. Um dos grandes diferenciais de ambientações se passando no "mundo real", é permitir vasculhar a história e permitir aos jogadores transitar por essas ruas e vivenciar momentos quintessenciais. 

Existem algumas cenas bastante perturbadoras envolvendo sadismo, perversidade e excessos, momentos dramáticos e trechos viscerais onde os personagens - quem sabe até os jogadores - vão se sentir incomodados e tomados por arrepios bastante reais. Um Guardião tarimbado saberá como descrever as cenas e destilar imagens do mais puro terror. A excelente trama contém elementos de profundo medo e injustiça que podem causar desconforto nos jogadores mais impressionáveis. 

Como qualquer produto pronto, há partes que não são tão brilhantes quanto outras e caberá ao Guardião fazer ajustes e modificações para a história funcionar perfeitamente. Como a primeira parte é baseada em uma pista central de Horror no Orient Express, ela acaba sendo um tanto linear. Não é algo que me desagrade, mas alguns mestres que permitem maior latitude aos jogadores podem se ressentir disso. Com efeito, em certos momentos os jogadores precisam seguir um determinado "script" e caberá ao Guardião indicar isso. Se de alguma forma, os personagens tirarem o cenário do curso, são oferecidos conselhos valiosos ​​para devolvê-lo à agenda pretendida. Um dos problemas da aventura é que o desfecho precisa seguir um modelo e se a mão do Guardião pesar demais, o resultado poderá ser frustrante.  

Já a segunda aventura não sofre desse problema pois os investigadores poderão tomar suas próprias decisões. O único elo fraco nessa aventura é a dependência de uma cena bastante insignificante na parte um, cena esta que oferece uma pista essencial para concluir a trama. Se o grupo não tiver prestado atenção, eles correm o risco de falhar. Permitir aos jogadores um teste para recordar dessa pista é uma das sugestões oferecidas, um dispositivo que, embora às vezes necessário, eu nunca gostei.


Vale a pena comprar Reign of Terror? Sim, absolutamente. 

É preciso salientar que essa não é uma aventura para um Guardião de primeira viagem, ela é complexa e cheia de reviravoltas que podem se mostrar difíceis para um Narrador inexperiente. A primeira metade é sólida e definitivamente boa se você está jogando/jogou/quer jogar Horror no Expresso do Oriente ainda que não seja algo obrigatório. A segunda parte exige mais trabalho do Guardião e este deve tomar medidas para não se perder em meio aos acontecimentos. 

Para quem não abre mão de conservar um pé na história real é interessante atualizar seus conhecimentos sobre a Revolução Francesa ou no mínimo, ter a Wikipedia bem próxima. O texto ajuda bastante o Guardião e aponta elementos que ele precisa compreender se quiser ser fiel a história, mas complementar essas informações fazendo o "dever de casa" é válido. Uma boa dica é oferecer aos jogadores uma cronologia dos eventos principais da Revolução Francesa e dos seus principais personagens.

Os jogadores aliás terão um novo e empolgante desafio: Lidar com um período estranho e altamente conturbado no qual uma palavra errada pode trazer sérias consequências, algumas delas, fatais. Os personagens se verão forçados a lidar com situações atípicas, muito diferentes do ambiente civilizado e tradicional dos anos 1920. Numa época claustrofóbica e perigosa, todo cuidado será pouco. Reign of Terror abre uma janela para o passado e permite uma oportunidade sem igual de testemunhar um dos momentos mais marcantes da história.

Se você tem interesse pela história, essa aventura é quase obrigatória. 

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