"Em Cthulhu o importante não é se você vai morrer,
mas quando você vai morrer e de que forma"
Todos que já rolaram dados numa mesa de Chamado de Cthulhu sabem que uma das máximas da ambientação é que a morte está sempre à espreita.
Poucos RPG são tão mortíferos quanto CdC e isso acontece por uma boa razão. Em um Universo dominado por forças esmagadoras, poderes avassaladores e horrores cósmicos, a vida humana não é apenas frágil, ela é absurdamente irrisória. O que é o ser humano diante dos Colossais Deuses e Entidades Lovecraftianas?
Mesmo os monstros mais "mundanos" nessa ambientação são potencialmente letais, o que contribuiu para construir a mística de que em nesse RPG "você enlouquece ou morre". Mais cedo ou mais tarde os personagens acabam no asilo ou de baixo da terra, ou em alguns casos, em algo ainda pior.
Sem querer entrar no mérito disso ser verdade ou não, é inegável que um dos grandes charmes de Cthulhu seja o destino dos personagens, em geral medonho. Apesar disso, a maioria dos jogadores que entendem a ambientação, não consideram tal destino uma desvantagem do sistema. É curioso, pois na maioria dos RPG, os jogadores lamentam a morte de seus personagens, mas em Cthulhu. muitas vezes, a morte é tratada como um tipo de distintivo de honra. Em geral, os personagens morrem salvando alguém, preservando o mundo, salvaguardando um segredo ou mistério, fazendo o que é certo... a morte tem um sentido. Não é que os jogadores não sintam quando perdem seus personagens, eles sentem. Mas a morte deles, muitas vezes é aceita e lembrada.
Nesses anos todos jogando e narrando Chamado de Cthulhu, eu fui responsável por algumas cenas bem medonhas. Nem todas as mortes são edificantes ou memoráveis, mas quando tal coisa acontece, elas serão lembradas por anos e anos por quem estava na mesa.
Aqui está um TOP 5 com as mortes mais medonhas que eu tive a honra de descrever numa mesa de jogo.
O Tubarão Mutante
Em uma aventura que narrei um tempo atrás um bando de Abissais atacou os investigadores que haviam ficado presos em uma ilha afastada. O grupo lidou bem com a primeira leva de Abissais e conseguiu afugentar o bando de escamosos que retornam para mar.
Parecia estar tudo bem, mas é aí que a coisa ficou feia, já que os Abissais não bateram em retirada, e sim, foram chamar reforço. E que reforço...
Na aventura em questão os investigadores já haviam encontrado uma baleia morta na praia com enormes ferimentos de mordida, não sabiam ainda o que havia causado aquele estrago. Bem, descobriram da pior maneira possível!
O aliado que as criaturas marinhas foram chamar era um híbrido de Abissal puro e um Tubarão Branco. Uma criatura humanoide com quase 3 metros de altura que tinha as piores e mais sinistras características dos seus pais. Quando o Tubarão Abissal surgiu, a coisa imediatamente ficou feia, mas a certeza veio quando ele desferiu o seu primeiro ataque contra a jovem repórter do grupo e acertou um rolamento crítico.
31 pontos de dano!
A descrição foi algo como:
"Sua personagem é mordida na cintura, enquanto o monstro a ergue e segura pelas pernas e braços. Três fileiras de dentes pontiagudos, afiados como navalhas, alguns com quase 20 centímetros de comprimento se enterraram na carne tenra cortando, rasgando e lacerando. A mordida é tão potente que o corpo é seccionado no meio, como se tivesse sido cortado por uma tesoura gigante. Com efeito, sangue e vísceras espirraram para todo o lado sobre os demais investigadores e no monstro. O cheiro de sangue o deixa ainda mais faminto!"
Depois fiquei sabendo que aquele era a primeira aventura da jogadora que estava controlando a personagem. Um baita batismo de fogo!
Quarto Lugar:
Todas as Cores da Morte
Cores do Espaço!
Esse é um monstro particularmente assustador e uma das coisas que eu mais teria medo de encontrar. Não pelo fato dessas criaturas serem estranhas, implacáveis e imprevisíveis, mas porque o ataque delas está entre os mais devastadores.
A cor não causa um dano convencional: ela não morde, arranha ou esmaga... Não, seu dano é muito mais insidioso. Apenas estar perto dela já é o bastante para matar. Sendo ela uma forma de energia viva, a Cor recorre a um brilho concentrado que destrói tecidos vivos como se fosse uma rajada de radiação.
Eu uma aventura que narrei, onde uma Cor usou seu ataque, o resultado foi tão bizarro quanto dantesco. A descrição foi algo como:
"A cor se aproxima de você, como se fosse um gás, ela o envolve e no momentos seguinte, o caleidoscópio de cores pisca. E quando isso acontece, seu corpo é bombardeado com uma descarga maciça de radiação ionizada. É como estar dentro de um reator nuclear. Num momento, tudo parece bem, mas então você começa a queimar de dentro para fora. Esse é o efeito dos seus órgãos colapsando pelo sangramento interno, incontáveis inflamações e a destruição total de sua medula óssea. Tudo ocorre em segundos. O sangue vai se tornando espesso como gelatina a medida que ferve em suas veias. Os músculos sofrem uma pane e literalmente secam, seus olhos derretem e seu corpo goteja por todos os orifícios. Sua pele assume uma coloração avermelhada, então a epiderme se cobre de bolhas e pústulas antes de se desfazer, derretendo como um filme plástico num forno micro-ondas. Seu corpo desmancha em uma poça de carne fumegante, ossos e restos que vão se liquefazendo em um acelerado processo de destruição".
Terceiro Lugar:
Fisgado no Alto do Celeiro
Nem todas as mortes são causadas diretamente pelo monstro ou criatura. Por vezes, o próprio personagem e jogador acaba contribuindo para o seu fim grotesco.
A cena era a seguinte: um investigador explora um antigo galpão numa fazenda aparentemente abandonada. Ele vai até o depósito de palha no segundo pavimento do armazém e lá descobre indícios de que alguma coisa estava usando o espaço como covil. Em uma fração de segundo, ele percebe que é melhor sair dali o mais rápido possível, mas infelizmente já é tarde demais, a monstruosidade surge disposta a matar quem invadiu seu esconderijo.
O investigador recebe um ataque e percebe que não vai conseguir enfrentar a criatura no mano a mano. Melhor tentar escapar e a rota mais rápida é se jogar pela janela do celeiro. Há uma polia com corda e gancho usada para erguer os fardos de palha para o segundo pavimento. O jogador decide saltar e se agarrar na corda e usar a polia para chegar em segurança no chão. Tudo o que que precisa é de um teste de salto bem sucedido que vai garantir a sua fuga.
E aí começa a desgraça.
Ele falha no teste para se segurar na corda. Mas ainda pode contornar a situação com um teste de sorte para suavizar a queda. Mas aí o destino intervém de novo... dados rolando e 00 no teste.
A cena termina da seguinte maneira:
"Você salta no vazio, tentando agarrar na corda e usar a polia para fugir do monstro. Seu salto no entanto é mal calculado e você falha em alcançar a corda. Pior, em seu voo, você atinge em cheio o gancho de ferro na extremidade da corda. A ponta aguda rasga sua garganta e sai pela boca contendo a sua queda em um tranco seco que despedaça seus dentes e fratura sua coluna. Por um instante de supremo desespero você fica pendurado no gancho se contorcendo e ainda tentando se libertar, mas é impossível. A morte demora a chegar em meio a espasmos sangrentos de horror. No fim, seu corpo fica lá, suspenso como se tivesse sido fisgado".
Certos acidentes podem ser bem feios.
Aí Márcio, para você...
Segundo Lugar
Nunca seja folgado com um Deus
A morte espreita em todo canto, o perigo e a ameaça estão sempre próximos, mas ainda tem jogadores que parecem se esforçar para ver os personagens morrerem. Alguns quase pedem por isso.
Em uma ambientação onde deuses ancestrais e seus avatares descem das estrelas e por vezes interagem com seres humanos, o mínimo que se espera é que se tenha respeito por essas entidades. Deuses, afinal de contas, podem se ressentir quando mortais os tratam de forma leviana e o castigo vem rápido e dolorosamente.
Certa vez, em uma aventura se passando no Egito, os investigadores exploravam um antigo templo quando se depararam com uma espécie de trono cerimonial. Todo feito de ouro, com joias e gemas valiosas. A peça não era apenas valiosa, ela tinha sobre si uma aura ancestral e eu deixei claro que ela representava o lugar reservado a um Deus. Para bom entendedor, isso bastaria, mas um dos jogadores quis ser engraçadinho.
Ele correu para o trono, sentou nele, colocando as pernas sobre ele, riu da imagem talhada do Faraó Negro, tentou remover gemas e fez pouco caso do aspecto cerimonial do local, um templo dedicado a Nyarlathotep. Se tem uma coisa que deuses não toleram é isso!
Embora ele não soubesse o Caos Rastejante estava sondando os passos do grupo e não gostou dessa falta de respeito. O que aconteceu? A narrativa foi mais ou menos essa:
"Você está sentado no trono rindo e tentando remover uma das gemas com a ponta de uma faca. De repente você sente um pressentimento ruim, uma presença que causa um arrepio involuntário. Você percebe que algo está errado, e então seu corpo todo começa a tremer, sua visão fica embaçada e um terror inominável o domina. Seus olhos reviram nas órbitas e você solta um grito de horror. Um filete de sangue escuro escorre do seu nariz e você simplesmente para de respirar..."
O grupo tenta reanimar o personagem, mas ele não responde. Está morto! Posteriormente o grupo leva o cadáver até um médico que atesta assombrado: "De fato o médico quis abrir o crânio para descobrir a fonte do som de algo solto em seu interior. Atônito ele descobre se tratar do cérebro carbonizado e reduzido ao tamanho de uma noz seca".
"Ele morreu em uma agonia insuportável. Não consigo imaginar nada poderia ter causado algo assim."
Nada senão um Deus furioso.
Primeiro Lugar:
O Toque do Tempo
E chegamos ao número um da nossa lista de mortes memoráveis.
Quachil Uttaus é um dos deuses mais obscuros do Mythos, uma entidade que comanda as forças da entropia, do tempo e da degradação.
Quachill Uttaus é um Deus Exterior a ser respeitado, embora seja fisicamente pouco impressionante. A entidade é capaz de realizar um dos ataques mais terríveis que eu posso imaginar em Chamado de Cthulhu. Esse ataque sempre é bem sucedido e envolve o deus voltar sua atenção para um pobre e infeliz mortal. Parafraseando Robert Chambers: "É uma coisa terrível ficar a mercê da vontade de um Deus Vivo".
Quando Quachill Uttaus decide eliminar um desafeto, seu método envolve lançar sobre a vítima uma estranha luz pálida cinzenta que parece acompanhá-lo para onde quer que ele vá. Quando essa luminosidade macabra incide sobre um indivíduo o tempo começa a correr se forma acelerada em um dramático efeito que descrevi da seguinte maneira em certa ocasião:
"Quando a luz pálida do Deus recai sobre você, o tempo começa a transcorrer de modo acelerado. Seus cabelos crescem em segundos num tom cada vez mais branco, a pele se torna pálida, cheia de marcas senis e vincos, as pernas fraquejam. Em segundos, décadas se passam e com elas ocorre uma furiosa mudança na qual juventude e vitalidade se desfazem num turbilhão de decadência irrefreável. Em segundos seus órgãos se deterioram em uma falência múltipla que atinge todas funções vitais. Músculos e ossos não conseguem sustentar seu corpo, eles se rasgam como tecido e quebram como giz. Cada pedaço de seu corpo, cada célula e átomo grita na medida que se desfaz em um processo cada vez mais acelerado de entropia. No fim não resta nada a não ser o esquecimento. Indiferente Quachil Uttaus caminha sobre seus restos deixando pequenas pegadas no pó que um dia foi você."
A reação do jogador após esse ataque foi o supra sumo do terror: "O que meu personagem sentiu? Ao menos foi rápido?"
A resposta:
"Foram segundos, mas para quem passa dos 30 e poucos anos para centenas de anos em questão de segundos, é como se a experiência durasse uma eternidade".
Menção Honrosa: Caindo pela Eternidade
Talvez esse desfecho pudesse estar nesse TOP 5 de mortes grotescas. O único motivo pelo qual ele não se encontra na lista é que o personagem em questão não morreu, sendo que esse é justamente o fator que torna toda experiência ainda mais terrível.
Imagine estar em um limbo dimensional no qual o tempo não passa e onde existe apenas um grande vazio. Imagine agora que nessa realidade não é possível morrer pela ação do tempo. Quem habita esse limbo nunca envelhece e nunca sente a passagem do tempo.
A última coisa que você quer é se perder nesse NADA.
O que aconteceu com a personagem de um jogador foi que ela caiu de um veículo que singrava esse vazio. E cair é o que ela fará para sempre...
A descrição? Vamos a ela...
"Quando você despensa no vazio, não há fim para a sua queda. Não há fundo, não há fim, não existe um limite... Seu corpo cai, cai e cai.. e continuará caindo pela eternidade. Você pondera que talvez a fome possa um dia acabar com esse sofrimento, mas desesperada conclui que nessa realidade a fome nunca virá e você nunca irá envelhecer. Sua existência está fadada a ser perpétua e nada colocará fim a ela."
Eu permiti que a personagem rolasse um dado de sorte para saber se sua pistola estaria com ela. Se assim fosse, ela poderia abreviar sua agonia. Mas não era para ser.
"Você vê a sua arma, o único objeto que poderia colocar um fim a esse sofrimento caindo a alguns metros de você, sempre fora de seu alcance. Tão próximo, mas ao mesmo tempo tão longe".
E a pobre personagem está caindo até hoje.
Bom é isso...
A morte em Chamado de Cthulhu nunca é apenas zerar os pontos de vida.
Essa última descrição, minha nossa kkkkkkkk deu até um frio na barriga
ResponderExcluirEu estava na mesa em duas dessas mortes... a reação da pessoa na primera, uma novata, foi impagável! adorou o jogo! A morte caindo pra sempre foi no prólogo do Orient Express...
ExcluirUau...sensacional!!!
ResponderExcluirTem um conto do King, The Jaunt (A Excursão) me lembrei dele por conta desta não-morte.
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