quarta-feira, 17 de agosto de 2022

O Dia que Lisboa Acabou - O Devastador Terremoto de 1755


"Toda a face do céu estava perfeitamente serena e clara; 
não havia o menor sinal de alerta daquele evento que se aproximava. 
Foi uma tragédia que fez desta cidade, outrora florescente, 
opulenta e populosa, cena do maior horror e desolação já registrado."

Reverendo Charles Davy, 
testemunha do terremoto - 1755

*     *     *

Parecia um dia como qualquer outro, mas aquela manhã de primeiro de novembro de 1755 ficaria marcada como o dia em que uma cidade e sua população conheceriam o Inferno.

Era uma data festiva, o feriado católico do Dia de Todos os Santos e a população extremamente religiosa de Lisboa, resplandecente capital do Reino de Portugal, estava reunida nas Igrejas da cidade. As pessoas haviam acordado cedo, naquele dia de sol, dispostas a desfrutar das festividades cristãs.

De repente, sem que ninguém esperasse, um rugido se fez sentir como se mil carroças puxadas por cinco mil cavalos estivessem correndo em disparada ao mesmo tempo pelas ruas de pedra. O som era tão alto e estranho que as pessoas correram para fora das igrejas para saber do que se tratava. Logo em seguida o chão começou a tremer com um força absurda e as construções ruíram como castelos de cartas soprados por um vento forte. Aquele era o início de uma longa sucessão de tremores sísmicos que testariam Lisboa ao longo de dias e que entrariam para história como um dos abalos mais destrutivos de todos os tempos.    

O devastador Terremoto de Lisboa de 1755, também conhecido como o "Grande Tremor de Lisboa" e o "Desastre Português", atingiu o coração de Portugal num sábado, por volta das 9h40. Os sismólogos estimam hoje que o terremoto de Lisboa teve uma magnitude na faixa de 8,5-9,0 na escala Richter cujo grau máximo é 9. O epicentro submarino foi o Oceano Atlântico a cerca de 200 km do Cabo de São Vicente, uma área sujeita ao deslocamento de placas tectônicas.

Em verdade, ocorreram três choques de terremoto distintos no período relativamente curto de dez minutos. O primeiro choque foi mais leve, seguido por um segundo choque muito mais poderoso que derrubou edifícios e devastou o mapa da cidade. Segundo relatos, os tremores e os movimentos do solo duraram algo em torno de três minutos e meio, um tempo extremamente longo. Fissuras gigantescas de até quatro metros e meio de largura rasgaram o centro de Lisboa e fizeram os prédios desabarem em instantes. Árvores foram arrancadas do solo com raízes e tudo, muros desmoronaram, torres de igreja ruíram e praticamente tudo que dependia de edificação veio ao solo ruidosamente. A população sem entender o que estava acontecendo deve ter experimentado um horror indizível.


Um terceiro choque menos poderoso foi sentido três minutos depois. Os efeitos do terremoto foram de grande alcance e a agitação foi sentida no norte da África, onde o terremoto causou grande perda de vidas em cidades da Argélia e Marrocos - mais de 640 quilômetros ao sul de Lisboa. A cidade de Argel foi completamente destruída. Tânger sofreu grande perda de vidas e danos extensivos. O terremoto foi particularmente destrutivo em Marrocos, onde cerca de 10.000 pessoas perderam a vida. Registros de arquivo documentam que as cidades costeiras de Rabat, Larache, Asilah e Agadir (chamada Santa Cruz enquanto sob domínio português) sofreram muitos danos. Mesmo as cidades de Fez, Meknes e Marrakesh no interior foram danificadas de forma semelhante. Mesquitas, sinagogas, igrejas e muitos outros edifícios desmoronaram em Meknes.

Na Europa, o terremoto de Lisboa causou danos consideráveis ​​na Espanha - particularmente em Madri e Sevilha, ainda que sem tanta dramaticidade. O tremor também foi sentido na França, Suíça e norte da Itália.

No entanto, os piores danos ocorreram no sudoeste de Portugal. Lisboa e seus habitantes foram particularmente atingidos pelo tremor de terra. Em 1755, Lisboa era uma grande cidade, lendária pela sua riqueza, prosperidade e sofisticação arquitetônica, era um dos centros mais bonitos da Europa com uma população estimada em 275.000 habitantes.

Quando o terremoto atingiu a capital, a maioria da população de Lisboa se distribuía nas seis magníficas catedrais, incluindo a grande Basílica de São Vicente de Fora. Em poucos minutos, esta grande e próspera cidade-portuária, berço de academias e universidades, foi reduzida a escombros fumegantes. 


A destruição causada pelo terremoto foi indescritível. As grandes catedrais de Lisboa, Basílica de Santa Maria, São Vicente de Fora, São Paulo, Santa Catarina, a Misericórdia - todas lotadas de fiéis - desmoronaram, matando milhares. Todo o Porto de Lisboa e o Cais de Pedra, construído em mármore ao longo do Tejo, desapareceram afundando no rio, sepultando com ele centenas de pessoas que se refugiaram ali.

Logo após o terremoto, vários incêndios eclodiram, principalmente iniciados por fornos de cozinha e velas acesas no dia santo. Alguns destes foram rapidamente extintos, especialmente nas áreas densamente povoadas. Mas muitos habitantes fugiram de suas casas e deixaram as lareiras acesas. Ruas estreitas cheias de detritos caídos impediram o acesso aos locais dos incêndios e estes começaram a se alastrar.

Em poucos minutos o fogo se espalhou e transformou Lisboa em um inferno furioso que ardia sem trégua. Incapaz de correr, centenas de pacientes do Hospital Real morreram queimados em suas camas. Nas masmorras a situação foi semelhante com prisioneiros morrendo em meio a desabamentos e fogo. As praças públicas se encheram de pessoas e seus pertences resgatados, mas à medida que o fogo se aproximava, essas praças também tiveram de ser abandonadas. O incêndio atingiu proporções catastróficas com chamas altas lambendo as ruínas e intoxicando os feridos. A quantidade de pessoas morta em decorrência da fumaça é notável. Para se ter uma ideia, dois terços da cidade foram consumidos pelas chamas e estas duraram nada menos que cinco dias até serem totalmente extintas.

Compreensivelmente, após o terremoto, muitos moradores da cidade fugiram para a orla, acreditando que nas praias estariam mais bem protegidos dos incêndios e dos destroços dos tremores secundários. Alguns deles procuravam segurança no mar, embarcando em navios atracados no rio Tejo e indo para o mar aberto. Isso se provou um erro fatal!


Cerca de 40 minutos após o terremoto, uma enorme onda de Tsunami envolveu o porto e o centro da cidade, subindo o Tejo, "tão rápido que várias pessoas andando a cavalo não conseguiram escapar nem à galope; foram carregadas e afogadas". A área entre Junqueira e Alcântara na parte oeste da cidade foi a mais danificada pela onda que lavou a área levando uma torrente de destroços pelas ruas adentro. Quem estava na rua nesse momento ou foi carregado pela água ou foi ferido pelos restos empurrados pela força do mar terra adentro. A onda levou água 150 metros além da costa.

Antes que a grande muralha de água (que media mais de 20 metros) atingisse o porto, as águas haviam recuado revelando cargas perdidas e naufrágios esquecidos. As pessoas desconheciam o perigo e permaneceram ao redor da costa para observar o fundo do mar exposto e buscar algo de valor. Essa era uma armadilha letal que se formava. Mal sabiam que o tsunami se formava com o retrocesso da maré e a formação de um a onda de grandes proporções. A primeira onda do tsunami foi seguida por mais duas que atingiram a costa, cada uma arrastando pessoas e detritos para o mar e deixando grandes trechos expostos do fundo do rio. Barcos superlotados com refugiados viraram e afundaram matando seus ocupantes. As demais ondas que vieram atrás, apesar de menores, tendo 6 metros em média, também causaram um efeito devastador.

Lisboa não foi a única cidade portuguesa afetada pela catástrofe. As três ondas do tsunami atingiram várias cidades ao longo da costa oeste de Portugal, em alguns locais chegando a trinta metros de altura. Na vila de Cascais, a cerca de 30 km a oeste de Lisboa, as ondas naufragaram vários barcos. Em zonas costeiras como Peniche, situada a cerca de 80 km a norte de Lisboa, muitas pessoas foram mortas pelo tsunami. Em Setúbal, 30 km ao sul de Lisboa, a água atingiu o primeiro andar dos edifícios. Em todo o sul do país, em particular no Algarve, a destruição foi desenfreada.

O tsunami destruiu algumas fortalezas costeiras, faróis e portos, nos níveis mais baixos, arrasou várias casas. Quase todas as vilas e povoados costeiros do Algarve foram fortemente danificados, exceto Faro, que estava protegido por bancos de areia. Em Lagos, as ondas atingiram o topo das muralhas da cidade. Para as regiões costeiras, os efeitos destrutivos do tsunami foram mais desastrosos do que os do terremoto.


No sudoeste da Espanha, o tsunami causou danos a Cádiz e Huelva, e as ondas penetraram no rio Guadalquivir, chegando a Sevilha. Na costa da Ilha da Madeira as ondas tinham uma altura de 15 metros. Em Gibraltar, o mar subiu subitamente cerca de dois metros. As ondas do tsunami causaram grandes danos e baixas à costa ocidental de Marrocos, desde Tânger, onde as ondas atingiram as fortificações muradas da cidade, até Agadir, onde a água passou sobre a muralha, matando muitos. Em Ceuta o tsunami foi forte, mas no Mar Mediterrâneo ele diminuiu rapidamente.

O tsunami levou pouco mais de quatro horas para viajar mais de 1.600 quilômetros até a Cornualha, no Reino Unido. Galway, na costa oeste da Irlanda, também foi atingida, resultando na destruição parcial da seção "Arco Espanhol" da muralha da cidade. O tsunami atravessou o Oceano Atlântico, atingindo as Pequenas Antilhas à tarde. Relatórios de Antígua, Martinica e Barbados observam que o mar subiu em toda costa.

O terremoto de Lisboa de 1755 foi um dos terremotos mais destrutivos e mortais da história, matando cerca de um terço de toda a população da capital portuguesa. Dezenas de milhares de portugueses que sobreviveram ao terremoto foram mortos pelo tsunami desencadeado pelo terremoto. O tsunami foi causador da maioria das 75.000 mortes em Portugal e outras tantas em pontos também atingidos.

Os europeus do século XVIII ficaram aterrorizados pelo que aconteceu em Lisboa e se perguntavam se aquilo poderia se repetir em outros lugares. Pela primeira vez na história nações enviaram suprimentos para aliviar a tragédia dos desabrigados e mitigar seu sofrimento. Os grandes cientistas e teólogos da época buscaram entender o desastre dentro dos sistemas de crenças religiosas e racionais que vigorava. Como o terremoto ocorreu no Dia de Todos os Santos e destruiu a maioria das principais igrejas da cidade, os padres reacionários atribuíram a destruição aos supostos pecados de Lisboa. Os inquisidores literalmente percorriam as ruas à procura de hereges para enforcar e isso, aos olhos de alguns, era a causa da tragédia. Outros já pensavam que a desgraça havia ocorrido pela falta de zelo do povo e seus pecados.


Filósofos do Iluminismo, notadamente Voltaire, escreveram sobre o evento. Voltaire usou o terremoto em "Candide" e em seu "Poeme sur le desastre de Lisbonne" ("Poema sobre o desastre de Lisboa"). Em "Candide" (1759), ele relata como: "Depois do terremoto, que destruiu três quartos da cidade de Lisboa, os sábios daquele país não podiam pensar em meio mais eficaz para preservar o reino da ruína total do que entreter o povo com um auto-de-fé (português para "ato de fé", rito da Inquisição Católica em que a sentença foi executada, geralmente queimando na fogueira), tendo sido decidido pela Universidade de Coimbra , que a queima de algumas pessoas vivas por um fogo lento, e com grande cerimônia, seria um preventivo infalível de terremotos."

O conceito filosófico de "O Sublime", como descrito pelo filósofo Immanuel Kant nas Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime, inspirou-se em parte nas tentativas de compreender a enormidade do terremoto e tsunami que se abateu sobre Lisboa.

Oitenta e cinco por cento dos edifícios de Lisboa foram demolidos, incluindo palácios e bibliotecas famosos, bem como a maioria dos exemplos da distinta arquitetura manuelina do século XVI de Portugal. Vários edifícios que sofreram poucos danos no terremoto foram destruídos pelo incêndio subsequente. A nova Casa de Opera, aberta apenas seis meses antes (chamada de Opera Fênix), foi incendiada. Os magníficos museus de Lisboa e as suas bibliotecas - que abrigam documentos e papéis de valor inestimável e tratam do grande passado de Portugal - acabaram queimando até o chão.

Arquivos e outros documentos preciosos foram completamente destruídos. Obras de arte, tapeçarias, livros, manuscritos, incluindo os valiosos registros da Companhia da Índia se perderam para sempre. Também foi queimada a Morada do Rei, o Palácio Real da Ribera, que ficava às margens do Rio Tejo. No interior, a biblioteca real de 70.000 volumes, bem como centenas de obras de arte, foram perdidas. Os arquivos reais desapareceram juntamente com registos históricos detalhados das explorações de Vasco da Gama e outros navegadores antigos. Mais de duzentas pinturas de valor inestimável, incluindo pinturas de Tito, Rubens e Correggio, viraram cinzas no palácio do Marquês de Lourcal.


O terremoto destruiu um importante centro cultural da Europa, desferindo um duro golpe para a nação pioneira na exploração ultramarina. Seus efeitos físicos generalizados despertaram uma onda de interesse científico e pesquisa sobre terremotos. O sismo de Lisboa, seria o primeiro a ser estudado cientificamente pelos seus efeitos numa grande área,. Ele pode ser considerado o impulso que levou ao nascimento da sismologia moderna e da engenharia sísmica. Apenas o terremoto de 1906 em São Francisco se compara em impacto econômico e psíquico ao que aconteceu em Portugal.

O evento de 1755 é muito importante também porque mostra, sem sombra de dúvida, que um terremoto que ocorre no leste do Oceano Atlântico pode criar um tsunami que cruza o Atlântico e se desloca para as costas do leste da América do Norte. Este tsunami também passou pelas ilhas do Caribe, com ondas 6,5 metros sendo relatadas.

Um relato do terremoto de Lisboa e das suas consequências foi feito pelo Reverendo Charles Davy, sobrevivente do desastre. Sua narrativa é uma leitura pavorosa até os dias de hoje:

"Não há palavras para expressar o Horror", escreveu, "Tal situação não é fácil de imaginar para quem não a sentiu, nem de descrever para quem a sentiu. Foi o dia em que Lisboa acabou!"

Mas a Capital de Portugal não acabou...


Os sobreviventes precisaram enfrentar as consequências da tragédia e para isso contaram com o ímpeto de seu Primeiro Ministro, o Marquês de Pombal que se mostrou um líder voluntarioso. Quando perguntado sobre qual seria a sua primeira medida após o incidente ele respondeu: "Enterrar os mortos e curar os vivos". Pombal enfrentou o descontentamento da Igreja ao ordenar que cadáveres fossem colocados em barcos avariados e queimados em alto mar como forma de prevenir o surgimento de doenças causadas pelo acúmulo de corpos.

Tamanho era o estrago que muitos defendiam que Lisboa deveria ser abandonada e a capital movida para o Porto. Contudo, Pombal foi enfático ao dizer que reconstruir a cidade era a única forma de sanar as cicatrizes abertas. As obras de reconstrução da cidade foram aprovadas em tempo recorde e logo ela inteira se converteu em um canteiro de obras que revitalizou muitas das regiões devastadas. As ruas medievais foram substituídas por alamedas, a planta baixa sofreu mudanças que modernizaram muito a cidade. Também foram realizadas obras para prevenir tragédias similares com a adoção de prédios mais resistentes e a adoção de brigadas de incêndio.

Não é exagero dizer que Pombal foi o principal responsável por salvar Lisboa e reconstruí-la praticamente do nada. Uma estátua em sua homenagem foi erguida voltada na direção de sua obra prima.

As memórias dessa tragédia monumental assombraram os habitantes de Lisboa por gerações, muito tempo depois daquele fatídico dia, contudo a reconstrução da cidade foi uma demonstração de capacidade de reagir diante de revezes sofridos. 

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