"É preciso uma arte e uma percepção profundas da Natureza para criar coisas como as de Pickman. Qualquer fazedor de capa de revista pode espalhar tinta a esmo e chamar aquilo de pesadelo, Sabá das Bruxas ou retrato do Diabo, mas só um grande pintor pode fazer uma coisa assustar ou parecer verdadeira. Isso porque, só o verdadeiro artista conhece a verdadeira anatomia do terrível ou a fisionomia do medo - o tipo exato de linhas e proporções que se associam mentalmente a instintos latentes e memórias hereditárias de pavor, e os contrastes de cor e efeitos de iluminação certos para estimular o senso de estranheza adormecido. Não preciso lhes dizer, porque um Fuzeli realmente provoca um arrepio enquanto uma figura de capa de uma história de fantasmas barata só nos faz rir. Existe algo que esses artistas captam - além da vida - que conseguem nos fazer captar por um instante. Doré tinha isso. Angarola, de Chicago, tinha isso. E Pickman o tinha, como creio eu, ninguém jamais tivera ou - espero, com fé em Deus -, jamais terá".
por H.P. Lovecraft
O Modelo de Pickman - "Pickman’s Model", 1926
Com base no artigo de John Coulthard
Apesar da reputação de escrever descrições um tanto evasivas das suas criações, uma espécie de imaginação visual permeia algumas das estórias mais populares escritas por H.P. Lovecraft. O próprio autor fazia pequenos desenhos das criaturas, como se eles pudessem ajuda-lo a encontrar palavras para descrever seus monstros tentaculares. Seu mais famoso desenho foi sem dúvida a ilustração da estatueta do Grande Cthulhu que ele afirmava ter ajudado a caracterizar a criatura. Lovecraft desabafou certa vez com um colega que um dos seus grandes desafios era "tentar descrever em palavras aquilo que por definição é indescritível, inumano, inacreditável". Como colocar em meras palavras aquilo que desafia noções, conceitos e prerrogativas?
Isso deveria ser um tormento para alguém que é um reconhecido esteta.
Em seus contos, Lovecraft gostava de colocar em evidência escritores e acadêmicos como os personagens centrais, mas ao menos duas figuras notáveis em seus contos eram artistas: o pintor Richard Upton Pickman em "Pickman's Model" e Henry Anthony Wilcox, o "precoce jovem de conhecida genialidade e enorme excentricidade" cujos curiosos baixo-relevos levaram o Professor Angell às terríveis revelações no conto "The Call of Cthulhu"
O monólogo de Pickman's Model apresenta um debate sobre o poder de imagens sugestivas e da arte como um todo na consciência humana. Nesse conto, Lovecraft apresenta um artista soberbo, cuja habilidade e técnica apurada, só são comparado a sua estética incomum e perturbadora. Os quadros de Pickman são bizarros e o resultado de um mero vislumbre em suas telas pode levar um homem são, a loucura. Como se as imagens ali retratadas pudessem afetar a razão.
Todos sabem que Lovecraft era um esteta, alguém dotado de uma profunda sensibilidade artística. Ele passava muito tempo em museus e pinacotecas procurando referências visuais para alimentar sua mente criativa. A lista a seguir reúne alguns dos artistas prediletos de Lovecraft, aqueles que ele destacou como sendo os que ajudaram a dar asas a sua imaginação.
Henry Fuseli (1741–1825): Um pintor britânico famoso por ter concebido uma inesquecível imagem sobre horrores noturnos em sua tela intitulada "O Pesadelo". O trabalho foi extremamente popular na época em que foi realizado (por isso ele tem duas versões) e através dele Fuselli ganhou fama e prestígio. Lovecraft disse em mais de uma ocasião que esse era seu quadro favorito e se possível ele gostaria de um dia ter uma cópia dele pendurada na parede de seu escritório. Se isso aconteceu ou não, não se sabe, mas o interesse do autor pelo artista não diminuiu ao longo dos anos e ele continuou rendendo a ele elogios até o fim da vida.
Nos dias atuais Fuseli é conhecido quase que exclusivamente por esse trabalho, mas o restante de sua produção também é marcada por representações grotescas e macabras, mesmo para o período romântico, com uma profusão de imagens repletas de bruxas, fantasmas e monstros.
Francisco Goya (1746–1828): O grande artista espanhol Goya é mencionado em Pickman’s Model pela sua habilidade em retratar figuras sinistras de bruxas e monstros, bem como Fuseli. Boa parte de suas obras mais estranhas estão contidos na série conhecida como Caprichos, uma sequência de aquarelas concebidas em tom satírico, mas que mostram seu dom para o incomum. Para representar o estilo de Pickman, HPL buscou na série Pinturas Negras, de Goya um referencial.
Goya realmente possui alguns quadros que são chocantes e absolutamente perturbadores (ainda que fascinantes):
Uma das obras mais famosas de Goya é "O Sabá das Bruxas" de 1798, no qual ele retrata o demônio na forma de um Bode Negro cercado de bruxas jovens e velhas horrivelmente deformadas.
Essas duas telas foram condenadas por religiosos e cidadãos espanhóis supersticiosos no século XVIII, que acreditavam ser os quadros de alguma forma inspirados pelo próprio demônio.
John Martin (1789–1854): O “louco” John Martin por muito tempo foi considerado um excêntrico imitador de JMW Turner e um artista de menor expressão. Contudo, as suas cenas do Apocalipse Bíblico atraíram a atenção daqueles que apreciam imagens visionárias e sublimes, incluindo Lovecraft. Suas imensas telas foram levadas para mostras e exposições de arte em toda a Europa e foram usadas por evangelistas na época de Lovecraft como uma espécie de exemplo dos castigos que seriam impostos aos ímpios pelos seus pecados. Lovecraft disse certa vez que a obra de Martin o ajudou a definir o tom de grandeza de algumas de suas divindades colossais, como Azathoth e Yog-Sothoth.
Martin também ilustrou Paradise Lost uma das obras quintessenciais do poeta John Milton, e que estava na vasta biblioteca de Whipple Phillips, o avô de Lovecraft. Quando criança, o autor adorava explorar a biblioteca e em uma dessas ocasiões descobriu o assustador livro de Milton. As gravuras religiosas perturbadoras de Martin unidos aos versos do poeta tiveram um grande impacto para a formação do materialista Lovecraft.
Gustave Doré (1832–1883): Um dos mais populares e bem sucedidos ilustradores de sua época, Doré é conhecido e admirado até os dias atuais. Ele foi um dos mais conhecidos artistas e Lovecraft chegou a dizer que se tivesse a chance de confiar seus contos a algum artista, de qualquer época, escolheria sem sombra de dúvida Gustave Doré.
Talvez essa imagem tenha influenciado Lovecraft quando ele concebeu a noção de que Azathoth habita o centro do universo cercado de uma infinidade de seres que evoluem ao seu redor atendendo seus menores caprichos.
Assim como John Martin, Doré também ilustrou Paraíso Perdido, mas onde o primeiro se concentrou na grandeza profana da arquitetura infernal, o segundo focou na figura de Satã e na sua hoste demoníaca, formada por anjos caídos. Lovecraft acreditava que as asas de morcego desses anjos negros, foram a causa dos pesadelos que o levaram a conceber os Night-Gaunts. Também digno de nota são as ilustrações de Doré para a Divina Comédia de Dante, a Canção do Velho Marinheiro e as fantásticas cenas de Orlando Furioso, obra de Ariosto.
As asas de morcego dos anjos negros são muito semelhantes às do Nightgaunts que atormentavam Lovecraft quando criança.
Sidney
Sime (1867–1941): Sime foi um artista de menor expressão, contemporâneo de Lovecraft com quem chegou a trocar correspondência por um breve período. Sime ganhou a atenção de HPL por ter sido o artista escolhido para ilustrar várias estórias escritas por Lord Dunsany (um dos autores clássicos de horror que Lovecraft reverenciava). Não há muito desse artista na internet, mas os títulos de Dunsany em geral vem acompanhados de ilustrações feitas por ele.
Cidades exóticas, perigos ocultos e terrores à espreita eram uma marca registrada da obra de Sime.
Virgil Finlay (1914–1971): Chamar Virgil Finlay apenas de ilustrador do gênero pulp é diminuir a importância de sua obra. De fato, Finlay foi um artista com uma carreira brilhante com exposições e mostras muito respeitadas. Acontece que ele também tinha enorme interesse na literatura de ficção o que o levava a trabalhar nesse mercado visto por alguns, como algo marginal. Finlay é o único dessa lista que realmente trabalhou com Lovecraft, arrancando dele elogios. Um de seus trabalhos para o conto "The Faceless God" de Robert Bloch, inspirou Lovecraft a compor um soneto; o artista retornou o cumprimento fazendo um retrato de Lovecraft.
O famoso quadro de Finlay dedicado a Lovecraft vestido em trajes do Século XVIII como uma espécie de Poe.
Nicholas
Roerich (1874–1947): Nas primeiras páginas de At the
Mountains of Madness, Lovecraft menciona “as estranhas e perturbadoras pinturas asiáticas de Nicholas Roerich,” e o arrepio causado pela desolação gelada que ele sentiu ao visitar o Museu Roerich, em Nova York, sem dúvida influenciou a concepção da cidade alienígena na Antártida.
Lovecraft dizia que Roerich tinha um talento único para criar ambientes com uma aura estranha e alienígena, ainda que suas obras se inspirassem em cenas que ele viu em suas viagens pela Ásia Central. O russo, Roerich explorou essa região e produziu telas curiosas, embora parte delas tenham se perdido quando ele teve de se exilar nos Estados Unidos fugindo da Revolução Bolchevique.
Teriam imagens como essa inspirado a concepção das Montanhas da Loucura? Parece bastante provável.
Anthony Angarola (1893–1929): Muitos artistas se perguntam quem foi Angarola e porque HPL teria mencionado esse artista de forma tão efusiva em Pickman’s Model. Mais do que citá-lo, Lovecraft parece advertir seus leitores que esse artista era capaz de invocar algo tão incrivelmente perturbador que deveria ser evitado. Talvez Lovecraft nesse trecho se refira especificamente às ilustrações para o livro The Kingdom of Evil (1924), de Ben
Hecht.
Lovecraft também pode ter sido influenciado pelo Fantazius Mallare: A Mysterious Oath (1922) um livro com ilustrações de Wallace Smith um artista que também trabalhou com Angarola. A preferência de Smith por temas controversos e um conteúdo sexual que beira a obscenidade podem ter deixado o puritano Lovecraft chocado (ainda que fascinado).
Há boatos que Lovecrfat chegou a enviar uma cópia de seu conto The Outsider para que Angarola criasse uma arte, mas até onde se sabe ele jamais respondeu ao pedido de Lovecraft. Uma vez que ele faleceu em 1929, Lovecraft sempre acreditou que a razão para ele jamais ter respondido se deu pela sua delicada saúde.
Em tempo - Não sei se Lovecraft ficaria satisfeito com a imagem digitalmente manipulada que encabeça esse artigo, mas espero que o senso de estética dele - onde quer que ele esteja - não seja perturbado por essa "homenagem" de Lythron. Para um amante do macabro, ser retratado dessa maneira soa como uma honra. Então, preferi acreditar que ele ficaria feliz.
Legal poder ver a história de obras tão macabras.
ResponderExcluirÓtimo trabalho pessoal!
Que ótimo trabalho do blog, caras. Como fã de pintura e Lovecraft me senti presenteado com esse artigo. Parabéns.
ResponderExcluirAcho que Lovecraft ficaria honrado e citaria Adriana Varejão se estivesse vivo... Ela lembra Clive Barker, mas mais... Primitivo.
ResponderExcluirA sensibilidade do Lovecraft para a arte é impressionante! Fico feliz quando tenho acesso ás coisas que o inspiraram a ser tão genial.
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