Não faz muito tempo narrei a aventura "Luz Morta" (Dead Light) que foi lançada em um suplemento de Chamado de Cthulhu pela New Order. A aventura se passando na Nova Inglaterra, mais especificamente na estrada entre as cidades de Arkham e Bolton pode servir como uma boa introdução para o universo de horror lovecraftiano. Trata-se de uma aventura "direta ao ponto", na qual os investigadores são colhidos pelas circunstâncias e se veem de um momento para o outro presos em uma teia de acontecimentos medonhos.
Eu adoro esse cenário, na minha opinião ele serve bem para fazer uma espécie de ponte para quem está acostumado com jogos mais "heróicos" e quer tentar um ambiente mais "pé no chão" como Chamado de Cthulhu.
Como disse, eu gostei da proposta dessa história e da maneira como ela foi concebida originalmente, mas como é de praxe, quando narrei, fiz algumas mudanças. Isso deixou "Luz Morta" ainda mais mortal, com mais algumas reviravoltas e na minha opinião mais divertida.
Sei que muitos novos Guardiões de Cthulhu estão se preparando para narrar essa aventura, então tive a ideia de escrever esse artigo e propor algumas sugestões que podem vir a ser interessantes. Não estou querendo, através desse texto, impor essas mudanças ou dizer que elas são melhores do que o material original. Longe disso! No entanto, são ideias que podem realçar o jogo. Usá-las fica totalmente à critério do Guardião a quem cabe a decisão final. Portanto use o que quiser, descarte o que não quiser e jogue da forma que bem entender.
Eu aconselho a quem vai jogar essa aventura que pare de ler nesse ponto para não estragar sua diversão e as surpresas desse cenário. Uma das coisas mais legais em Chamado de Cthulhu é não saber o que está por vir, saber antecipadamente não apenas estraga o jogo, como torna ele tedioso.
Dito isso, vamos aos comentários e sugestões.
1 - Os Investigadores
Eu criei cinco personagens para os jogadores nesse cenário. Cada um deles com suas devidas motivações e background. Defini que nenhum deles se conheceria previamente e que seriam simplesmente estranhos viajando a bordo de um ônibus na Nova Inglaterra. Os motivos para que eles estivessem nessa fatídica viagem está definido na ficha dos personagens e eram completamente casuais e inocentes.
Fiz com que eles fossem os únicos passageiros viajando no ônibus, além é claro do motorista um coadjuvante que chamei de Ray Benson. Na primeira cena da aventura situei os personagens cada qual dentro do veículo e deixei que eles interagissem entre si até o quase atropelamento de Emilia Webb. Na minha versão, o ônibus quebra o eixo e fica praticamente inútil. Ele consegue chegara até o posto de gasolina, mas ali para de funcionar de uma vez por todas deixando os personagens ilhados.
Personagens presos em um lugar, incapazes de sair e obrigado a lidar com uma ameaça aterrorizante é um clássico do horror, explorado com primor nesse cenário. Deixe que os jogadores se familiarizem com seus personagens e uns com os outros. Essa e uma aventura na qual quanto melhor os jogadores interagirem, melhor.
2 - Coadjuvantes
O suplemento Luz Morta sugere um grupo de personagens coadjuvantes (NPCs) controlados pelo Guardião. Eu selecionei quais os personagens mais interessantes para a trama e suas motivações.
Ray Benson, o motorista do ônibus, um sujeito simples e prestativo, interessado em cumprir a missão de transportar os passageiros de Boston para Arkham. Ele passa a maior parte do cenário tentando consertar o ônibus. Na minha versao esta fadado a mkrrer quando o grupo retorna do Chale Maçã Verde.
Emilia Webb, cuja identidade à princípio é desconhecida. Ela parece ser uma jovem amnésica e perdida numa noite tempestuosa e escura.
Jake Burns, um tipo truculento e grosseiro, que ficou preso no posto de gasolina depois de ver a coisa na estrada e levar um bruta susto. Na minha versão ele desaparece após ser atacado pela Luz Morta enquanto espera os investigadores perto do Chalé.
Sam Keelman, o dono do Posto de Gasolina que ficou preso no estabelecimento e oferece ajuda aos recém chegados.
Mary Lake, a ambiciosa garçonete do restaurante que tem um segredo a esconder.
Além destes que compõem o núcleo do posto haviam ainda:
Billy Esterhouse, um dos bandidos envolvidos no mal fadado assalto ao Chalé Recanto Maçã Verde. Ele surpreende os investigadores quando eles deixam o Chalé, de espingarda em mão tenta rendê-los, mas acaba morto na primeira aparição da criatura.
Deixei como opção usar o casal Teddy e Winnie Brewer, como passageiros no ônibus, mas reconheço que a utilidade deles foi pequena e preferi não usá-los em outras oportunidades que narrei Luz Morta.
O ideal é que os NPCs sejam mortos um de cada vez da maneira mais medonha possível. Eles são coadjuvantes e como tal sua participação se restringe a servir de escada para os protagonistas, ou seja, os jogadores. Usá-los para realçar os ataques do monstro e colocar os jogadores em situações difíceis é o seu propósito imediato.
3 - A Visita ao Chalé Recanto Maçã Verde
Uma parte vital da aventura é fazer com que os investigadores enfrentem a escuridão e a tempestade para ir até o Chalé que pertence ao Dr. Webb e de onde Emilia escapou. Nenhum deles sabe da mal fadada tentativa de roubo que terminou com as morte do médico e de um dos bandidos, além da liberação da criatura.
Para convencer o grupo a deixar o restaurante criei um senso de urgência de que algo precisava ser feito o quanto antes. O Dr. Webb poderia estar em perigo - sobretudo depois que inclui a informacao dele ser cardiaco e poder estar em dificuldades. Com a tempestade e a situação de Emilia, fica clara a justificativa de ir até lá. Eu fiz a tempestade diminuir o suficiente e deixei que o grupo negociasse com Jake Burns, que na minha versão era o dono do único veículo ainda em funcionamento - um caminhão.
Na visita ao Chalé, o caminhão de Burns acaba atolando cerca de 500 metros da entrada do chalé e o sujeito fica para trás prometendo esperar pelo grupo enquanto tenta soltar o veículo do atoleiro em que se meteu. Isso permite usar a Luz Morta para eliminar Burns sem que o grupo veja e ainda inutilizar o único veículo em funcionamento.
No Chalé mantive as coisas mais ou menos conforme explicado na versão original. Algumas pequenas alterações incluíam usar Bill Esterhouse que tenta render os investigadores e forçá-los a levá-lo para um lugar seguro e a descoberta de mais informações sobre a Luz Morta, extraída de um livro guardado no estúdio do Dr. Webb.
A cena no Chalé termina com Billy sendo atacado e morto pela criatura e os investigadores se refugiando novamente no Posto de Gasolina que se torna a partir de então o único lugar em que eles podem se proteger.
4 - O Segredo do Dr. Webb
Eu não achei legal como o pobre Dr. Webb foi retratado nessa aventura. Resolvi remover a parte sobre "O Pecado do Dr. Webb" (pg 17) e fiz com que o médico fosse apenas uma vítima inocente das circunstâncias.
Na minha versão do cenário, o Dr. Webb era tão somente um indivíduo com curiosidade pelo sobrenatural que jamais havia se envolvido em nada remotamente "pecaminoso". Seu interesse não passava de um mero hobby. Webb havia recebido como presente de um amigo alguns objetos estranhos que lhe foram enviados por um executor público. O sujeito lembrou que Webb tinha interesse por antiguidades e lhe enviou uma caixa de bronze (onde a Luz estava aprisionada) e um livro cujo conteúdo estranho o médico talvez apreciasse. Os objetos faziam parte de um estranho caso criminal, envolvendo um Culto ativo em Red Hook, estado de Nova York.
Para quem leu o conto O Horror em Ref book, trata-se exatamente do mesmo culto, o que abre interessantes possibilidades para uma continuação.
O executor dos itens relatava em uma carta enviada a Webb (que também podia ser achada no estúdio) o que sabia sobre os objetos.
Webb chegou a ler trechos do livro, tentando compreender a natureza do artefato. Contudo ele não foi tão fundo na sua exploração por temer mergulhar nesses segredos arcanos. Sem saber o que fazer com os itens, o médico guardou a caixa na sala como uma curiosidade (advertindo a sobrinha a nunca tocar nela) e colocou o livro em seu estúdio, guardado em um lugar seguro junto com a carta do executor dos bens.
Na minha versão, o Culto de Red Hook , do qual a Caixa e o livro foram tomados conseguiu eventualmente rastrear a localização deles. Afim de não se envolver diretamente, eles contrataram uma dupla de bandidos da região para entrar na casa do Dr. Webb e recuperar a Caixa de Bronze e o Livro. Nessa versão Clem Tailor e Billy Esterhouse seriam apenas dois peões num jogo mais perigoso.
Em meio ao assalto, a Caixa acaba se abrindo e a criatura é liberada espalhando terror e dando sequência nos eventos conforme descrito.
Essa é uma diferença pequena mas marcante na história, uma maneira de inserir um elemento central nas histórias lovecraftianas - os cultos e a maneira como eles manipulam inocentes em benefício próprio.
5 - O Terrível Livro
Outro elemento que inseri na trama foi um tomo, que tem por título "O Livro do Estranho e Bizarro" que substitui o diário do Dr. Webb.
O manuscrito em questão é um tratado menor a respeito do Mythos, escrito por um autor desconhecido e usado pelo Culto em seus rituais. Ele elucida alguns detalhes a respeito da Luz Morta, sua natureza e como ela foi aprisionada na caixa. Mais importante, ele lança um elemento de incerteza na trama ao fornecer um Ritual para Aprisionar a Luz Morta novamente.
Longe de tornar as coisas mais fáceis, o Ritual em questão escancara as portas para a insanidade e corrupção uma vez que carece de um sacrifício humano para funcionar. Essa condição coloca os jogadores diante de um dilema ético e moral. Aprisionar a criatura de volta na Caixa parece ser a melhor opção, mas até que ponto eles estão dispostos a ir para se salvar? Para tornar tudo ainda pior, descrevi o Ritual de Aprisionamento e o Sacrifício da maneira mais hedionda imaginável, incluindo coisas detestáveis como arrancar o coração da vítima e comê-lo (o que custaria facilmente 1d3/2d6 +2, pontos de sanidade dos envolvidos).
A possibilidade de aprisionar a criatura, ainda que através de um ritual profano, cria um dilema e aumenta a interação do grupo. Não vai demorar para eles discutirem entre si se devem ou não realizar o ritual. Vítimas em potencial são Mary Lake (sobretudo se o grupo descobrir que ela estava de conluio com os bandidos), a própria Emilia Webb ou ainda até mesmo um deles.
Só para constar, o Ritual funciona! Se todos os requisitos forem cumpridos, a criatura é atraída para a caixa e aprisionada em seu interior uma vez mais, colocando fim à sua ameaça. Infelizmente, além do custo de sanidade, isso cria uma dúvida quanto ao que acontecerá agora que os personagens cruzaram a fronteira entre sobrevivência e assassinato.
6 - A Criatura volta para sua Realidade
Eu estabeleci que a criatura tem uma chance cumulativa de 10% de retornar à sua dimensão depois de consumir sua terceira vítima. Basicamente, a criatura absorve energia e a usa para abrir a passagem de volta à sua Dimensão. Quando ela tiver energia suficiente, utiliza essa reserva para abrir um portal.
O objetivo da criatura desde o início é abrir a passagem e assim que reunir o suficiente, ela o faz. Tornei a abertura do portal algo sensacional no qual tudo ao redor é sugado para seu interior, inclusive parte do posto de gasolina, veículos e investigadores que não conseguissem se segurar em algo - testes de Força ou Destreza. Quem viu Evil Dead 2 sabe do que estou falando.
Os pobres diabos arrastados pelo vórtice acabam presos em outra realidade extremamente perigosa. Descrevi o mundo nativo da criatura como um deserto de areia branca, céus violeta e três sóis distantes. Mas os investigadores lançados no portal não tem com que se preocupar por muito tempo... a dimensão é habitada por várias outras Luzes Mortas que se encarregam de cercar e drenar os investigadores que tiverem o azar de ir parar nessa realidade.
DICAS PARA O CENÁRIO
- Luz Morta é um excelente cenário introdutório, ideal para quem nunca jogou Chamado de Cthulhu, pois ele coloca os personagens em uma situação que pode ser facilmente compreendida pelos jogadores. Se você é um Guardião iniciante, considere narrar essa história primeiro para seu grupo, nem que seja como uma aventura solta, sem continuação. É provável que muitos personagens morram nessa aventura, tornando-a um belo cartão de visitas para compreender o caráter perigoso da ambientação.
- A aventura funciona bem se o Guardião conseguir equilibrar as aparições do monstro sem fazer com que ela se torne muito frequente. O ideal é seguir os conselhos no final do suplemento, fazer a criatura aparecer, atacar, matar um ou dois personagens e então recuar. Embora a criatura possa matar o grupo em uma única investida, eu considerei que ela precisa "digerir" a energia absorvida, o que justifica ela ter de matar e depois se recolher.
- Descreva a criatura como algo absurdamente alienígena. Eu fiz com que ela parecesse uma massa luminosa flutuante cheia de tentáculos feitos de luz branca cegante, mas acho que a criatura pode ter a forma que o Guardião desejar. Tente criar a coisa mais estranha e bizarra que lhe vier à mente e que você imagina irá assustar os jogadores.
- Caprichei nas descrições do que acontece quando alguém é absorvido pelo ataque da criatura. Minha referência visual foi o filme Caçadores da Arca Perdida em que os nazistas no final são literalmente derretidos. Também decidi que a absorção faz com que carne, órgãos e músculos sejam desintegrados, fazendo com que tudo que reste sejam ossos calcinados. Essa descrição funcionou bem, sobretudo porque o ataque acontecia em meio a um brilho intenso.
- Em meio ao desespero de se ver presos no posto de gasolina, os jogadores irão sugerir várias soluções. Esteja preparado pois algumas serão extremamente inteligentes e outras absurdamente idiotas. Tente não influenciá-los e seja justo - recompense boas ideias e puna as ruins fazendo cm que eles sofram as consequências - esse jogo não é conhecido, afinal de contas, por perdoar erros e conceder segunda chance.
- Não esqueça de eliminar os NPCs. Eles são perfeitamente descartáveis e quanto mais horrível forem as suas mortes, mais o clima de tensão aumentará entre os jogadores.
- Use o poder mesmerizante da criatura para tirar um ou mais jogadores de dentro da cafeteria criando uma situação de pânico nos que não foram afetados e dúvida quanto a salvar seus companheiros ou deixá-los caminhar para os tentáculos do monstro. Dilemas morais são algo muito interessante a ser explorado nesse tipo de cenário.
- Se possível, considere fazer uma cópia ampliada dos mapas desse cenário ou desenhe-os numa folha de papel que ficará no centro da mesa. Esses mapas serão excelentes para que os jogadores possam visualizar onde estão ocorrendo os ataques e dizer onde seus personagens planejam se esconder ou para onde querem correr.
- De forma geral, essa aventura funciona melhor como uma aventura solta, mas ela pode ter continuidade se o Guardião conseguir transformar os sobreviventes em investigadores do Mythos. Talvez após esse episódio dramático os sobreviventes queiram se juntar e passar a investigar o mundo aterrorizante que se revelou diante de seus olhos. Nesse caso, eu indicaria algumas boas continuações para o cenário como A Assombração (aventura presente no Kickstart de Chamado de Cthulhu) ou Letras Escarlates (presente no Livro Básico). Outras opções podem ser encontradas no Livro Portas para a Escuridão que também oferecem uma boa continuidade.
- Se o grupo quiser investigar as ramificações da aventura Luz Morta, eles poderão ir atrás do Culto que aprisionou a criatura. Tentar descobrir quem contratou os bandidos para roubar o artefato e o livro e colocar um fim a essa ameaça. Finalmente, se o grupo tiver capturado a Luz Morta, eles terão de lidar com as implicações de seus atos e com a responsabilidade de ter sob seu poder uma criatura poderosa (e extremamente vingativa). Uma aventura em que a Criatura escapa de seu confinamento pode ser bem interessante como sequência.
Filmes que podem ser úteis antes de narrar o cenário:
O Nevoeiro (The Mist/2007), no qual um grupo de pessoas fica preso em um ambiente confinado tendo de lidar com algo aterrorizante que está do lado de fora. Melhor ainda, o filme fornece indícios de como o confinamento e o contato forçado com outras pessoas em meio a uma situação assustadora pode transformar pessoas gentis em verdadeiros monstros.
Identidade (Identity/2003), onde um grupo de pessoas acaba ficando isolado durante uma tempestade em um motel de beira de estrada com um assassino à solta. Ótimo para pegar ideias sobre a tempestade e estabelecer a dinâmica entre personagens.
Os Outros (The Others/2001), não propriamente pelo roteiro que é bem diferente, mas pela proposta de suspense esmagador sem mostrar efetivamente nada, mas deixando no ar uma sensação de estranheza e constante ameaça.
Madrugada dos Mortos (Dawn of the Dead/2004), mais um filme de pessoas forçadas a se esconder em um lugar para se proteger do que existe lá for. Embora seja um filme de zumbis, é fácil transferir alguns elementos vistos nele para sua sessão. É interessante também para compor a personalidade dos NPCs.
Contos e Literatura
Considere ler "A Cor que caiu do Céu", uma das histórias mais clássicas de H.P. Lovecraft que pode ceder várias dicas de como descrever o comportamento de uma criatura alienígena.
Embora não seja necessário, é interessante ler "Horror em Red Hook", sobretudo para quem considerar inserir o Culto novaiorquino em seu cenário.
Bom é isso, minhas ponderações a respeito do cenário Luz Morta.
Por fim, os Handouts adicionais citados neste texto, bem como os personagens que criei para a aventura estarão disponíveis em um link no Mundo Tentacular breve. Quem quiser pode usá-los a vontade para começar a jogar imediatamente.
Adoraria ler nos comentários a respeito de Guardiões que narraram essa aventura e qual foi a impressão a respeito. Fiquem à vontade para fazê-lo e nos vemos em uma próxima Adaptação.