Há algo profundamente aterrorizante nas histórias a respeito de navios abandonados e deixados à deriva.
Talvez seja a sensação de estranheza por se tratar de uma embarcação gigantesca navegando sem destino, sem tripulação e sem viva alma em seu interior. Quem sabe sejam as circunstâncias em que tais embarcações são abandonadas, muitas vezes às pressas e sob a ameaça de alguma situação inesperada. É possível, no entanto, que seja algo totalmente diferente, que nosso fascínio por navios fantasma seja motivado pela crença de que nada jamais está totalmente deserto e que presenças, não necessariamente humanas, não obrigatoriamente vivas, podem habitar os recônditos mais desolados.
Tomemos por exemplo, a lenda de uma dessas embarcações assombradas, um dos navios fantasma mais antigos e notórios, cujo nome se tornou sinônimo de estranheza e apreensão para homens que ganham a vida cruzando os mares.
Estamos falando, é claro, do famoso S.S. Baychimo.
O Baychimo (pronuncia-se "BEI-quimo") foi um cargueiro à vapor lançado ao mar em 1914. Seu nome original era Ångermanelfven e ele foi construído pelo estaleiro sueco Lindholmens de Gotemburgo.
O navio foi comprado pela Baltische Reederei de Hamburgo, e ele foi usado em seus primeiros anos de serviço em rotas comerciais entre o norte da Alemanha e a Suécia. O cargueiro de 230-pés (aproximadamente 70 metros), movido por um potente motor de queima de carvão podia atingir a velocidade de 12 milhas por hora. Era um navio possante e de peso considerável, atingindo 1322 toneladas.
Em suas primeiras viagens ele levava mercadorias, na maioria das vezes sacas de grãos e peles, mas em pelo menos uma ocasião carregou animais para o zoológico de Gotemburgo. Nessa viagem ocorreria um trágico acidente que custou a vida de quatro zebras, dois hipopótamos, uma girafa e um número não determinado de antílopes. Os animais foram esmagados por um enorme container que se soltou no compartimento de carga. Muitas das pobres criaturas ficaram feridas pelo imenso caixote de metal que rolava de um lado para o outro e a solução dada pelos marinheiros foi alvejar os animais com tiros de misericórdia. Dizem que depois de sacrificar vários animais, e de ouvir o lamento das feras aterrorizadas, o primeiro oficial subiu até sua cabine e utilizou a mesma arma com qual matou as bestas para dar cabo de sua vida.
Durante a Grande Guerra, o cargueiro foi comissariado pela Marinha de Guerra Germânica e usado para fins militares. Ele foi empregado para a remoção de feridos e transporte de tropas no Mar do Norte. Em uma ocasião escapou por milagre de ser torpedeado por um submarino da própria Alemanha que o confundiu com um mercante britânico. Um torpedo atingiu o costado, mas por sorte ele não chegou a detonar. Em meio ao pânico, homens se jogaram ao mar e morreram afogados nas águas gélidas.
Mais dramática foi a situação na enfermaria improvisada no porão do cargueiro. Um enfermeiro temendo um naufrágio decidiu oferecer doses de veneno para os feridos que eram transportados no compartimento de carga. Muitos homens morreram antes da confusão ser solucionada. O próprio enfermeiro também morreu, ingerindo uma dose fatal de veneno quando descobriu seu engano.
Após a guerra, pelos termos dos Tratados de Rendição, a Alemanha foi obrigada a prestar reparações pelo afundamento de navios aliados ou neutros. O Ångermanelfven foi transferido para a companhia britânica Hudson Bay no ano de 1921.
Ele recebeu então um novo nome Baychimo.
O Baychimo foi rebocado até sua nova casa, o Porto de Ardrossan na Escócia. Lá passou por reparos e foi equipado com equipamento de quebra gelo. Uma de suas novas funções seria realizar o transporte de peles. Todo verão ele faria a rota até a Costa do Canadá levando também tabaco, açúcar, chá e armas. A passagem do Baychimo era muito aguardada pelas tribos esquimós que habitavam o território setentrional do Canadá, já que ele era um dos únicos navios a fazer essa perigosa viagem que o levava através da passagem norte, tendo como destino, o isolado território do Alasca.
Em 1924 o navio circunavegou o globo e continuou carregando suprimentos e material até que em 1931 se viu encalhado em um banco de gelo no Alasca. O Baychimo ficou totalmente preso e nem mesmo cargas de dinamite conseguiram libertá-lo da geleira que o deteve. Os tripulantes foram obrigados a desembarcar e realizar uma árdua viagem por terra até a cidade de Barrow que ficava a alguns quilômetros de distância através do terreno congelado.
Os homens tencionavam ficar alguns dias em Barrow e esperar que lhes trouxessem mais explosivos ou que o gelo eventualmente derretesse para que eles pudessem seguir viagem. Tentativas de libertar o navio foram feitas, mas o Baychimo ficou preso uma vez mais. O Capitão enviou então uma mensagem ao escritório da Companhia avisando que não havia condições de seguir viagem, ao menos até o fim da estação, quando ocorreria o derretimento.
De acordo com historiadores, alguns homens foram evacuados de avião, enquanto os demais marinheiros construíram cabanas improvisadas a cerca de 2 quilômetros de distância do navio, lá aguardariam o degelo. Mas para azar deles, a temperatura naquele ano caiu drasticamente, resultando em um inverno extremamente severo, mesmo para os padrões do Alasca, com temperaturas que chegaram a cinquenta graus negativos. Os marinheiros chegaram ao seu limite quando uma tempestade de gelo destruiu parte do abrigo e os obrigou a se refugiar em Barrow.
Sua primeira suposição foi que ele havia sido danificado pela tempestade e teria afundado. O imediato chegou a comunicar a perda do navio ao escritório da empresa, mas algumas semanas mais tarde ocorreu uma reviravolta: O Baychimo foi avistado por um grupo de esquimós caçadores de focas, cerca de 72 quilômetros além do ponto em que ele havia ficado preso originalmente.
A notícia fez com que a empresa corresse contra o tempo e enviasse uma expedição pelo gelo atrás do navio. A valiosa carga ainda estava à bordo e precisava ser desembarcada o quanto antes. Nativos de uma tribo de esquimós foram contratados para levar uma equipe até o navio. Liderada pelo Capitão Sydney Cornwell, a expedição encontrou o navio avariado com danos estruturais que comprometiam sua navegação. A equipe então descarregou a carga e tudo que havia de valor à bordo. Decidiram abandonar o Baychimo para que eventualmente afundasse nas águas geladas.
Um fato curioso é que muitos esquimós que acompanharam a expedição se negaram a entrar no navio para auxiliar o desembarque da sua carga. Acreditavam que a embarcação havia se soltado do gelo graças à espíritos e deuses do norte que revindicavam para si a posse do navio. Não havia como explicar como o cargueiro havia se soltado e para os supersticiosos, a única explicação repousava em algum fator sobrenatural. Para piorar, quando um cabo se soltou e quase causou um acidente fatal, parte dos inuit decidiram partir. Temendo o risco de serem abandonados pelos guias, o Capitão se contentou em partir com a carga que já havia sido desembarcada.
Os homens acreditavam que as fotografias tiradas na ocasião seriam o último registro do Baychimo. Ninguém realmente esperava que ele fosse visto novamente por olhos humanos.
Mas não foi bem isso que aconteceu...
O Baychimo se provou muito mais resistente do que se poderia imaginar. Vários meses depois uma embarcação de grande porte, com descrição idêntica ao cargueiro foi avistado 250 milhas a oeste da sua última posição. Ele estava navegando após o degelo ter ocorrido naturalmente. Esquimós o viram ao longe e comunicaram o ocorrido quando chegaram em um vilarejo nos limites da civilização. A maioria das pessoas não acreditou na história.
Um ano mais tarde, Leslie Melvin, um respeitado comerciante local, estava viajando com seu trenó puxado por cães nas proximidades de Nome quando viu uma embarcação flutuando próxima da costa. Ele imaginou que a tripulação pudesse ter desembarcado para buscar suprimentos. Melvin descreveu o navio em detalhes e mais estranho, jurava ter visto movimento de tripulantes no interior do cargueiro. Nas suas palavras, estes marinheiros pareciam ocupados cuidando de suas tarefas de bordo. Ele chegou a acenar para os homens, mas estes não devolveram a cortesia, pareciam não perceber sua presença. Achando que não havia nada de mais, ele prosseguiu em sua viagem sem tentar uma aproximação. Em Nome, a narrativa levantou dúvidas, sobretudo quando ele descreveu alguns detalhes muito particulares do cargueiro.
Alguns meses mais tarde, outro mercador chegou a Nome com notícias a respeito de uma embarcação próxima a Costa. O navio havia se deslocado mais 30 milhas e estaria à deriva.
Passaram-se oito anos sem qualquer avistamento e a essa altura poucas pessoas se recordavam do Baychimo. Mas em 1932, um grupo de mercadores avistou uma embarcação próxima de Wainwright, Alasca. Eles tentaram se aproximar, mas o gelo estava perigosamente fino e foi impossível chegar até ele. O grupo reportou a presença de luzes misteriosas sobre o navio, como se ele estivesse sendo banhado por um caleidoscópio de cores roxeadas e verdes que vinha de lugar nenhum.
Um ano mais tarde, histórias curiosas começaram a ser contadas por esquimós que viviam em uma região extremamente isolada no norte do Alasca. Falavam a respeito de um enorme navio de aço que singrava os mares congelados. Para onde ele ia, um som misterioso era ouvido, uma espécie de lamento de mau agouro. Diziam que se tratava de um navio fantasma, conduzido por espíritos que se revezavam no tombadilho e que podiam ser percebidos mesmo à longa distância.
Um grupo de caçadores inuit contou em 1934 ter avistado um navio preso em um enorme banco de gelo. Provavelmente ele havia sido lançado contra uma ilhota por alguma tempestade bravia. O mais curioso é que a tribo mais próxima de esquimós, passou a considerar a embarcação amaldiçoada. Viam nela uma espécie de armadilha deixada por espíritos malignos para tentar os homens a se aproximarem, e se estes o fizessem não haveria retorno. Os caçadores fizeram preparativos para ir até o navio, sabendo que parte da carga havia ficado à bordo, mas foram impedidos pelos nativos que os expulsaram violentamente de seu território. Mencionaram que rituais e cerimônias eram praticadas pelos xamãs tribais para apaziguar os espíritos e afastar o navio maldito. Esses rituais parecem ter funcionado, pois quando um grupo de resgate visitou o local meses depois não encontrou nada. A tribo de esquimós parecia aliviada. Eles contaram que uma tempestade providencial foi enviada e a embarcação se desprendeu e partiu.
Muitos outros avistamentos foram feitos ao longo dos anos que se seguiram.
Um grupo de esquimós chegou a relatar ter usado o Baychimo como refúgio durante uma forte tempestade de gelo que os atingiu. Na ocasião, eles produziram como prova de sua estadia uma série de objetos que foram removidos do interior da embarcação. Essas provas entretanto foram amplamente contestadas assim como toda a narrativa.
Em 1962, o Baychimo teria sido visto no norte uma vez mais. Navegava banhado na luz arroxeada e esmeralda vinda de lugar nenhum e testemunhas afirmaram ouvir um estranho lamento que o acompanhava. Estava duramente avariado e arranhado, o gelo o cobria quase inteiramente e as testemunhas ficaram impressionadas como ele não afundava. Fotos foram feitas, mas a péssima qualidade do material impediu qualquer identificação positiva.
Sete anos mais tarde, ele foi visto uma última vez, capturado em um banco de gelo na costa do Mar de Chukchi, uma região quase inacessível, repleta de icebergs traiçoeiros e pedaços de gelo negro responsáveis por muitos naufrágios. Parecia pouco plausível que a velha embarcação tivesse feito seu caminho através desse trecho especialmente perigoso, quanto mais, sem uma tripulação para tirá-lo da rota de um choque. Mesmo assim, fotografias oferecidas como prova, atestavam que o navio, visto à distância era bastante similar ao Baychimo que já estava sumido há 38 anos.
Como não poderia deixar de ser, o Baychimo se tornou uma espécie de lenda. De tempos em tempos testemunhas alegavam ver o cargueiro, muitas vezes mencionavam as estranhas luzes que o acompanhavam e um som misterioso de animais e pessoas se lamentando. Talvez as feras abatidas ou os feridos de guerra ainda tripulassem seu esqueleto de aço castigado pelo gelo e por incontáveis tempestades.
Entre os povos inuit, ele se tornou sinônimo de mau agouro, evitado à todo custo como uma presença maligna mandada do outro lado. Quem o via acreditava estar marcado pela má sorte. Mas esse sentimento não era compartilhado por todos. Em 2006, o governo do Alasca lançou um projeto para localizar o Baychimo e resgatá-lo do gelo. Os especialistas concordavam que era virtualmente impossível que ele ainda estivesse na superfície, portanto, se concentraram em vasculhar as profundezas em busca de qualquer sinal do navio fantasma.
Sonares, sensores e equipamento moderno foi empregado nas buscas, mas nada foi encontrado.
Será possível que o cargueiro centenário ainda esteja flutuando pelo norte do Alasca sem destino? O que seriam as estranhas descrições de luzes e sons que acompanham sua jornada à esmo? Será que um dia o destino final do Baychimo será conhecido?
Só podemos aguardar, pois de acordo com um ditado esquimó, "o Gelo tem todo tempo do mundo e pode esperar quanto quiser".