quinta-feira, 28 de julho de 2022

A Linhagem do Executor - O sangrento trabalho da Família Sanson


O carrasco francês Charles-Henri Sanson nasceu em 15 de fevereiro de 1739 e serviu como Executor Real durante o reinado do Rei Luís XVI e foi alto executor-mor durante a Primeira República Francesa. Sanson era tão conhecido e competente em seu ofício que muitos o consideravam o melhor executor de todos os tempos. Ele administrou a pena capital na cidade de Paris por mais de quarenta anos e executou inúmeras pessoas, incluindo o próprio Rei Luís XVI. Ele descendia de uma longa linhagem de carrascos: Seu pai, avô e bisavô eram todos carrascos e sua vida seria governada pelo cadafalso e pela pena capital. A morte se tornou seu negócio e ele o conduziu com diligência.

Nascido em Paris como Charles-Jean-Baptist Sanson, ele tinha três irmãs e era o mais velho de sete meninos, todos os quais se tornaram "Chefes de Cozinha". Ele inicialmente frequentou uma escola no convento de Rouen, mas outro aluno reconheceu seu pai como o carrasco e, assim, ele deixou a escola para evitar arruinar a reputação da Instituição. Embora Carrascos tivessem um emprego razoavelmente estável, as pessoas não gostavam de se associar a tais profissionais. O trabalho macabro por eles realizado era considerado por muitos algo desagradável e poucos eram os que queriam amizade com um executor ou sua família.

A bem da verdade, Monsieur Sanson nunca quis ser um carrasco, mas nenhuma outra carreira poderia ser considerada para ele. Quando tinha 15 anos, seu pai foi acometido de paralisia e nunca se recuperou, e assim o menino foi imediatamente nomeado seu substituto. Isso significava que sua futura carreira estava estabelecida, e ele logo assumiria o manto de Carrasco.

Sanson era, segundo todos os relatos, bem-educado e musicalmente talentoso. Em seu tempo de lazer tocava violino e violoncelo, ouvia Christoph Willibald Gluck e muitas vezes se encontrava com seu amigo de longa data Tobias Schmidt, um renomado fabricante alemão de instrumentos musicais, que mais tarde construiria guilhotinas. Além disso, ele foi colocado entre os indivíduos mais bem vestidos da sociedade parisiense. Um escritor observou sobre ele:


"Bonito e bem formado, possuía um intelecto superior e uma excelente educação. Ele era extremamente elegante em seus hábitos, e atraiu tanta atenção pela riqueza de seu vestido, que foi tomada uma medida um tanto arbitrária, que o proibiu de usar azul por ser a cor dos nobres. Sua maneira de protestar consistia em adotar trajes ainda mais lindos de pano verde. Isso ajudou a formar a cor da moda, e os nobres da corte, com o brilhante marquês de Létorières à frente, copiavam o corte e a cor de suas roupas e usavam casacos à la Sanson."

Mais tarde o carrasco foi obrigado a usar um uniforme ao realizar execuções e foi descrito da seguinte maneira:

"Nos primeiros tempos ele usava a tradicional calça azul e jaqueta vermelha, sendo esta última bordada com o patíbulo e a escada em preto. Um chapéu rosa de duas pontas completava o traje, junto com uma espada na cintura (para defesa pessoal, não para fins de execução). Mas em 1786 ele recebeu carta branca em seu vestido oficial e assim adotou uma longa sobrecasaca trespassada de material verde escuro usado com uma gravata branca larga e calças listradas. Uma cartola alta cobria seus cabelos cor de areia... Mais tarde em sua carreira, seu vestuário mudou novamente, e ele passou a usar um elegante paletó curto e calções, com meias de seda e sapatos de fivela brilhante. Um chapéu tricorne completava sua aparência com, é claro, a espada costumeira."

Antes da criação da guilhotina, Sanson realizava suas execuções com uma espada em brasa ou com outras ferramentas que estavam sujeitas ​​a problemas. O custo de substituição desse equipamento era proibitivo, o que é parte do motivo pelo qual Sanson e outros carrascos nunca ficavam ricos. Cabia ao carrasco a compra, manutenção e substituição de todas as suas ferramentas, o que incluía cordas, correias, lâminas e até a serragem usada para limpar o sangue e restos mortais. Era função dele também acertar os detalhes para funeral e enterro do morto. Além disso, o carrasco tinha que empregar assistentes que iam desde ajudantes para cumprir a tarefa até coveiros, artistas para retratar a execução e médicos para atestar a conclusão dos trabalhos. Enfim, ser um Executor era muito mais trabalhoso do que podemos imaginar.


Isso forçava o Executor a ter outros trabalhos, e ele foi autorizado a complementar sua renda de várias maneiras. Ele tinha direito a quaisquer bens que a pessoa executada tivesse consigo no momento de sua morte (relógios, roupas, chapéus etc.), mas isso mudou um pouco quando foi decretado que todas as roupas deveriam ser doadas aos pobres. Sanson acabou sendo autorizado a vender alguns cadáveres para pesquisa médica e, além disso, qualquer pessoa executada tinha que cortar o cabelo para garantir que seu pescoço pudesse ser visto claramente. Este cabelo era então vendido para fabricantes de perucas com algum lucro.

Sanson também forjou um acordo lucrativo com Philippe Mathé Curtius, um médico suíço, que forneceu modelos anatômicos para estudantes de medicina e criou modelos em miniatura de cera para fins de estudo. Essas pequenas réplicas anatômicas despertaram inicialmente o interesse local, ao menos até que o príncipe francês de Conti, primo de Luís XV, se mudou para Paris e transformou seu negócio de cera em um próspero negócio, capturando os rostos em cera dos famosos e infames. Conti também treinou sua sobrinha, Marie Grosholtz, que se tornou a famosa Madame Tussaud.

Apesar de todas essas atividades extras para ganhar dinheiro, Sanson mal ganhava o suficiente para cobrir os custos necessários para realizar uma execução. Pior ainda foram os resultados inesperados e as exigências físicas impostas a ele antes da adoção da guilhotina. Isso foi exposto por um dos principais defensores da guilhotina, Dr. Joseph-Ignace Guillotin, que afirmou o seguinte ao falar sobre execuções realizadas com espadas:

"Para realizar a execução de acordo com a intenção da lei é necessário, mesmo sem qualquer oposição por parte do preso, que o carrasco seja muito hábil e o condenado muito firme, caso contrário seria impossível realizar uma execução com a espada. Após cada execução a espada não está mais em condições de realizar outra, podendo partir-se em duas; é absolutamente necessário que seja esmerilado e afiado novamente se houver vários prisioneiros para executar ao mesmo tempo. Seria necessário, portanto, ter um número suficiente de espadas prontas... Deve-se levar em conta também que, quando há vários condenados a serem executados ao mesmo tempo, o terror produzido por esse método de execução... gera medo e fraqueza nos corações daqueles que estão esperando para morrer. Um ataque de desmaio constitui um obstáculo invencível a uma execução. Se os prisioneiros não conseguem se sustentar… a execução se torna uma luta e um massacre."

Para resolver esses tipos de problemas e ter uma abordagem mais humana da morte, a ideia da guilhotina ganhou popularidade. Um protótipo dela foi testada pela primeira vez em 17 de abril de 1792, e Sanson estava lá. O teste aconteceu no Hospital Bicêtre quando fardos de feno foram decapitados seguidos de ovelhas vivas e depois cadáveres humanos. Embora Sanson tenha sugerido alguns pequenos ajustes, ele declarou a nova máquina um sucesso e, uma semana depois, em 25 de abril de 1792, a Assembleia Nacional aprovou o uso da guilhotina em um ser humano vivo.


A primeira pessoa executada com ela foi um salteador e ladrão chamado Nicolas Jacques Pelletier. Ele morreu às 15h30 e estava vestindo uma camisa vermelha. A guilhotina, que havia sido preparada anteriormente, também estava envolta na cor vermelha. A execução levou minutos e foi tão eficaz que a multidão reunida ficou insatisfeita e gritou: "Tragam de volta nossa forca de madeira!"

A lâmina da nova guilhotina descia com eficiência, cortando a cabeça de uma pessoa quando duas cordas eram soltas. As cabeças decepadas caíram em uma cesta, morbidamente chamada de “cesta de piquenique da família”. O carrasco ou um assistente então levantava a cabeça decepada para os espectadores verem. Supostamente, os rostos dessas cabeças decepadas às vezes estavam contorcidos ou os olhos ou bocas das vítimas estavam bem abertos ou ainda se moviam.

A nova guilhotina acabou permitindo que o carrasco francês fosse tão competente que era capaz de executar centenas de pessoas em um dia, com um recorde estabelecido de 12 vítimas decapitadas em apenas 13 minutos. Às vezes chegavam quarenta a cinquenta condenados e ele despachava um a cada dois minutos. No auge do Terror, Sanson e seus assistentes guilhotinaram 300 homens e mulheres em três dias, 1.300 em seis semanas, e entre 6 de abril de 1793 e 29 de julho de 1795, nada menos que 2.831 cabeças caíram nas cestas pelas suas ações. No entanto, apesar da eficiência, Sanson muitas vezes ficava enojado com o que seu trabalho exigia e, durante a Revolução, se via sobrecarregado. Certa vez ele anotou em seu diário o custo desse trabalho:

“Um dia terrível hoje! A guilhotina devorou ​​cinquenta e quatro vítimas. Maria Grandmaison, atriz do Teatro Italiano, e Marie Nicole Bouchard, sua criada, estavam entre elas. Esta última tinha apenas dezoito anos e era tão magra e delicada que não parecia ter mais de quatorze anos. Quando a pobre menininha estendeu as mãos para Larivière, ele se virou para Desmorets, meu assistente-chefe, e disse: “Certamente, isso é uma piada?” Desmorets encolheu os ombros, e foi a pequena que, sorrindo através das lágrimas, respondeu: 'Não, senhor, é bem sério", ao que Larivière jogou suas cordas no chão e disse: 'Deixe outra pessoa amarrá-la. Não é minha profissão executar crianças!” Houve algum atraso na partida, e a pequena Nicole Bouchard sentou-se aos pés de sua patroa e tentou consolá-la. Ela pediu licença para ficar com ela no mesmo carrinho. Eu realmente acredito que se ela tivesse implorado pela vida, mesma o público que assistia, geralmente desejoso de sangue, teria exigido perdão".

Em outra ocasião ele escreveu:

“Houve um tempo em que os homens eram, via de regra, mais fortes e corajosos. Não é assim agora. Eles choram, tremem e imploram por misericórdia. Tivemos um dia terrível... Minhas carroças continham vinte e três homens de diferentes idades e posições sociais. Cada volta da roda era marcada por um soluço. Seus gritos eram horríveis de se ouvir."


Uma pessoa de alto perfil que Sanson executou, além do rei Luís XVI foi Charlotte Corday. Ela assassinou o jornalista francês e jacobino radical Jean-Paul Marat e ganhou a sentença de morte. Uma história frequentemente contada sobre essa execução é que após a decapitação um carpinteiro de serviço chamado Legros levantou a cabeça de Corday da cesta e esta ainda teve tempo de falar algumas palavras.

De fato, naquela época, muitas pessoas acreditavam que por um curto período de tempo após uma decapitação, a pessoa decapitada retinha a consciência. Acreditavam ainda que se ela jurasse inocência, a execução havia sido errada e que a morte tinha sido injusta - afinal, os mortos não tinham mais motivo para mentir. Testemunhas afirmaram tal coisa acontecia de tempos em tempos. Por algum tempo até se sugeriu que os executados tivessem os lábios cobertos com uma mordaça, justamente para evitar esse tipo de coisa.

Sanson se casou em 1765 e teve dois filhos, Henri e Gabriel. Ambos os meninos não tiveram escolha a não ser seguir os passos de seu pai e, portanto, foram ensinados sobre execuções e ajudaram seu pai no cadafalso. Infelizmente, em 1792, Gabriel estava no cadafalso e segurando uma cabeça decepada quando escorregou, provavelmente por causa da plataforma ensanguentada. Ele caiu e quebrou a perna, acabou mais tarde morrendo em decorrência de seus ferimentos. O acidente resultou na adoção de andaimes de apoio para garantir a segurança dos executores.

Em 1795, a velhice estava alcançando Sanson e ele desenvolveu uma doença renal conhecida como nefrite e foi forçado a renunciar em 30 de agosto de 1795. Ele pediu uma pensão, mas não foi concedida. Aposentado ele e a esposa se retiraram para o campo onde ele jardinava e relaxava. O carrasco francês Charles-Henri Sanson morreu alguns anos depois, em 4 de julho de 1806, e foi enterrado no jazigo da família no cemitério de Montmarte, em Paris.


Ele foi enterrado na cova nº. 27 após um impressionante serviço fúnebre na Igreja de Saint-Laurent, sendo o terreno marcado por uma pedra lisa para evitar uma possível profanação. Mais tarde foi gravado com o seu nome, as datas de seu nascimento e morte, e a inscrição 'Esta pedra foi erguida por seu filho e família por quem ele foi lamentado' e embora as razões médicas de sua morte sejam conhecidas, diz-se que ele morreu de tristeza por ter que matar seu rei.

O único filho vivo de Sanson, Henri, assumiu o cargo de carrasco depois que ele se aposentou, e serviu por 47 anos. Assim como seu pai, ele era chamado de Executor-Mor de Paris ou apenas "Paris" pois era lá que ele trabalhava. Henri foi substituído pelo neto de Sanson, Henry-Clément Sanson dando continuidade a longa tradição de morte na família. Ele continuou no cargo até 1847 quando faleceu sem deixar herdeiros.

A linhagem dos Sanson foi enfim quebrada.

domingo, 24 de julho de 2022

O Estripador Francês - Os horríveis crimes de Joseph Vacher


Joseph Vacher foi um serial killer francês que viveu no final do século XIX. Seu lugar na história criminal francesa é muito semelhante ao de "Jack, o Estripador" na Inglaterra e, não por acaso ele ficou conhecido pela alcunha de "O Estripador Francês" graças ao sensacionalismo dos jornais no período. Embora tenha sido julgado e condenado por assassinar apenas duas vítimas, acredita-se que tenha matado algo entre onze e vinte e sete pessoas entre os anos de 1894 e 1897. Ele também se tornou conhecido por sua aparência incomum: um rosto cheio de cicatrizes e por sempre usar uma chapéu de pele de coelho artesanal branco.

Vacher era o décimo quinto filho de um agricultor analfabeto nascido em Beaufort, à cerca de 80 quilômetros de Lyon, uma cidade moderna, um dos berços industriais da França e uma das cidades mais desenvolvidas do país. O surgimento de Vacher em meio a uma época de modernidade e civilização foi considerado como uma tragédia, uma mácula num país tido como o mais civilizado do mundo. Joseph Vacher nasceu e cresceu em meio a intensa pobreza, sobrevivendo de restos e tendo que disputar com os próprios irmãos comida. Seus pais muito católicos tiveram a chance de enviar um dos filhos para uma escola católica e eles escolheram o pequeno Vacher, então com 7 anos. Ele aprendeu a ler e escrever, mas suas lembranças mais marcantes desse período envolviam a rigorosa moral religiosa. Acima de tudo, Vacher aprendeu a obedecer e temer a Deus.

Em 1892, com apenas 16 anos, ele ingressou no exército e serviu em um regimento florestal. Embora tenha sido um bom soldado, houve queixas sobre o seu comportamento tido como excessivamente violento - ele se divertia matando e torturando animais. Talvez por essa razão ele não tenha recebido promoções ou o reconhecimento que achava que merecia. Essa falta de sucesso ao servir seu país também pode ter contribuído para que ele desenvolvesse crenças grandiosas de que não estava recebendo a devida atenção. Ele também se queixava que as pessoas injustamente o perseguiam. 

Enquanto estava no exército, Vacher se apaixonou por uma jovem criada chamada Louise Barant. Ela trabalhava em Beaufort e alguns historiadores afirmam que a moça de 15 anos não se sentiu atraída por Vacher e rejeitou sua corte. Por volta dessa mesma época, Vacher ficou tão desiludido com sua falta de avanço militar que tentou se matar. Ele cortou a própria garganta com uma baioneta, mas acabou sobrevivendo. Considerado instável após a tentativa de suicídio, ele recebeu baixa desonrosa do exército. 


Afastado do Exército ele voltou a insistir com Louise tentando convencê-la de que era um bom partido. Ele chegou a lhe propor casamento, mas a menina o dispensou e em certa altura disse que jamais casaria com um homem bruto como Vacher. O ex-soldado ficou tão furioso com a rejeição que atirou nela quatro vezes e tentou cometer suicídio uma segunda vez, dando um tiro na cabeça. Entretanto, ninguém morreu; Louise sobreviveu ao tiroteio e Vacher acabou mutilado gravemente, ficando paralisado de um lado do rosto, o que resultou em uma descrição pouco lisonjeira de sua aparência física:

"Ele era magro e de bochechas encovadas, seu rosto pálido, parcialmente escondido por uma barba rala. Uma cicatriz vertical em seus lábios desenha estranhas contorções em sua boca quando ele fala. Mesmo o observador casual fica impressionado com um sentimento de desgosto e pavor ao vê-lo."

A bala usada em sua segunda tentativa de suicídio não pôde ser removida e permaneceu alojada dentro de sua cabeça. Acredita-se que de alguma forma, o projetil exacerbou sua condição mental. Ele mesmo sustentou que sua segunda tentativa de suicídio o prejudicou mais do que apenas fisicamente e mais tarde afirmou que as reações de estranhos a essa deformidade auto-infligida o levaram a odiar a sociedade em geral. Vacher ficou tão furioso que começou a se automutilar em um desejo dantesco por arrancar a bala alojada em sua cabeça. Há rumores de que ele usava facas, navalhas e até cacos de vidro para retalhar o próprio rosto que estava sempre ferido e coberto de cicatrizes. 

A segunda tentativa de suicídio também resultou em uma estadia de um ano em um asilo para lunáticos. Ele foi o primeiro paciente do Asilo de Dole, sendo transferido posteriormente para Saint-Robert após um episódio horrível no qual usou uma lasca de madeira para mutilar novamente a face. Mesmo assim, os médicos o declararam "curado" e ele foi liberado do asilo.

Foi aos 25 anos que ele, apesar de considerado "são" pelos médicos, iniciou uma campanha de assassinatos sanguinária e desenfreada. Desde a apreensão de Martin Dumollard, o primeiro assassino em série da França, os franceses não ficaram tão abalados com um maníaco e, assim como condenaram Dumollard como um monstro, quando Vacher foi capturado, eles assim o chamaram. Além disso, os jornais alegaram que os dois assassinos tinham semelhanças físicas o que reforçava as teorias de Cesare Lombroso, muito em voga na época. 


"Os dois criminosos têm uma semelhança impressionante um com o outro, fisicamente. Embora sejam da mesma classe de degenerados mentais, ... as características mais típicas de semelhança entre eles consiste em uma face grosseira de lábios e narinas grossas e a surpreendente expressão lupina em seus olhos. Ambos são grandes e fortes. Uma fenda no lábio inferior de Vacher lembra o lábio leporino de Dumollard."

Durante um período de três anos, começando em 1894, Joseph Vacher assassinou e mutilou pelo menos onze pessoas (uma mulher, cinco rapazes e cinco moças). Katherine Ramsland, autora de não ficção e professora de psicologia forense na Universidade DeSales, fornece mais informações sobre Vacher e suas tendências homicidas:

"A série de assassinatos na França parece ter começado em 20 de novembro de 1884, quando o assassino estrangulou, esfaqueou e mutilou uma menina de treze anos. A mesma coisa aconteceu no mês de maio seguinte… Em agosto foi a vez de uma mulher idosa que foi estrangulada e esfaqueada múltiplas vezes. Em setembro, uma menina de dezesseis anos sofreu tratamento semelhante, embora seu abdômen também tivesse sido rasgado e os órgãos internos remexidos pelo maníaco que subtraiu algumas partes do intestino por razões desconhecidas. O frenesi do louco já causava medo nos arredores de Lyon e falava-se sobre os ataques de um vampiro ou loup-garou."

Em seguida, em outubro, ocorreu um dos crimes mais medonhos. Um menino de quinze anos foi esfaqueado, estuprado e estripado, incluindo a castração genital. O crime foi tão brutal que as autoridades chegaram a cogitar que mais de uma pessoa poderia estar envolvida, tamanho o grau de violência infligido. Um legista contou mais de 70 estocadas nas costas da vítima cujo corpo foi mutilado horrivelmente. Um cabo de vassoura foi enfiado no ânus do menino e sua garganta foi dilacerada com tanta força que a cabeça ficou pendendo por uma fina tira de pele quase decepada.

Após esse crime hediondo, o assassino ficou escondido ou viajou por algum tempo. Possivelmente sua sede de sangue ficou saciada, mas cerca de seis meses depois, uma garota relatou ter lutado contra um homem que tentou estuprá-la. A menina contou que o agressor tentou violentá-la com um cabo de vassoura, o que chamou a atenção dos policiais. Um cerco foi realizado, mas Vacher consegui escapar entrando na floresta e lá se escondendo por alguns dias. Ele chegou a ser interrogado por um policial, mas depois de dizer que era um ex-soldado, acabou sendo liberado. 

Durante aquele outono, ocorreram mais dois assassinatos com mutilação corporal nos arredores de Lyon. Apesar do modus operandi similar, as autoridades não correlacionaram os crimes como tendo sido cometidos pelo mesmo assassino. Em 1897, mais três pessoas foram mortas de forma brutal.


A maioria das vítimas assassinadas eram jovens pastores ou meninas que trabalhavam como lavadeiras nos riachos que abasteciam a cidade. Em comum o fato deles serem atacados quando estavam sozinhos em lugares isolados onde ninguém podia ouvir seus gritos ou ajudá-los. O assassino se tornou muito hábil em seu trabalho sangrento. Sua experiência militar e os anos como caçador o gabaritavam como um matador perfeito. Vacher descreveu que costumava espreitar suas vítimas, esperando que elas entrassem em uma área isolada e lá as atacava. Ele preferia emboscá-las, ficando excitado com essa caçada. Para liquidar as presas usava na maioria das vezes uma baioneta que roubara no serviço militar, mas em algumas ocasiões ele usou cordas, pedras ou as próprias mãos para esganar as jovens vítimas. 

Vacher era um estuprador contumaz, o jogo de gato e rato no qual ele espreitava as presas o excitava e o alívio sexual vinha após a punhalada fatal. Uma vez tendo matado a vítima ele ficava horas com o cadáver seviciando e mutilando os restos. Em algumas ocasiões ele chegou a retornar aos locais onde praticou os crimes para reencontrar o cadáver já putrefato e reviver os momentos de êxtase experimentados. Além de assassino, Vacher também era um necrófilo e possivelmente canibal, tendo admitido que bebeu o sangue e consumiu a carne de algumas de suas vítimas.  

Apesar do aparente sucesso de Vacher em matar, seu reinado de terror chegou ao fim em 1897 depois que ele se tornou descuidado. Em certa ocasião ele tentou agredir uma mulher que estava coletando lenha num campo em Ardèche. Ela lutou e seus gritos trouxeram seu marido e filho, que rapidamente dominaram o sujeito.

Segundo a maioria dos relatos, Vacher era apenas um andarilho desleixado que viajava de cidade em cidade em roupas sujas, mendigava nas ruas e sobrevivia com os restos que recebia de qualquer pessoa que o agraciasse com bondade. A polícia desconfiava que aquele homem podia ser o responsável pelos vários assassinatos cometidos na região, cometidos por um monstro conhecido como "Matador dos pastorzinhos". Vacher negou a autoria dos crimes e disse que jamais pretendeu prejudicar a mulher que agrediu, alegando que era um pobre camponês viajante.

A polícia suspeitava dele, mas não tinha nada que o ligasse a nenhum daqueles crimes brutais e ele seria liberado. Enquanto Vacher estava detido ele acabou fazendo amizade com um outro preso com quem conversava. Durante uma dessas conversas ele acabou se gabando de um dos crimes. O preso relatou aos guardas o que ele havia contado e mediante um interrogatório mais incisivo ele acabou confessando vários assassinatos. Por fim declarou: "Matei tantas pessoas que nem consigo me recordar de quantas foram, cometi os crimes em momentos de frenesi, quando não era eu mesmo".

O público francês ficou tão chocado quando se espalhou a notícia de que Joseph Vacher era o assassino que todos procuravam. Eles ficaram novamente surpresos quando souberam que ele era notoriamente vaidoso e se considerava um herói por ter matado tantas pessoas. O público ficou ainda mais chocados quando souberam que ele exigia duas coisas da polícia antes de confessar os crimes horríveis: "Uma era que a história completa de seus assassinatos fosse publicada nos principais jornais franceses e a outra era que ele deveria ser julgado. separadamente para cada crime no distrito onde foi cometido."

Com o acordo da polícia, Vacher então confessou ter assassinado oito pessoas e enumerou os detalhes para os policiais atordoados pelas revelações bizarras:

"Louise Marcel, uma menina de treze anos, foi assassinada em um bosque perto de Draguignan, no Var, em novembro de 1884; eu usei uma faca curta dessa vez, leve, mas afiada. Augustine Mortueux, dezessete anos, eu cortei sua garganta estrada perto de Dijon, em 12 de maio de 1895, ela sangrou até morrer e eu assisti seus momentos finais; uma viúva chamada Morand, sessenta anos, eu a surrei e assassinei em uma casa isolada em Saint Ours, ninguém se importava com ela, o corpo só foi achado dias depois, já apodrecido por conta do calor, isso em 24 de agosto de 1895; Victor Portalier, era um pastor de dezesseis anos eu rasguei sua garganta e fiquei horas ao lado dele, em 31 de agosto; Pierre Pellet, um pastorzinho de quatorze anos, de quem cortei a garganta em um beco em St. Etienne de Boulogne, em 29 de setembro; Marie Moussier, uma jovem casada de dezenove anos, que matei com uma pedra e depois cortei com minha baioneta na Crusset no Allier, em 1º de setembro de 1896; Rosine Rodier, uma pastora de quatorze anos, em Varenne St. Honorat, cuja garganta cortei e depois estripei arrancando as entranhas com um único puxão, Pierre Laurent, um pastor de 14 anos, assassinado, que eu matei com facadas nas costas e no pescoço, pois não tinha tido tempo de afiar minha baioneta e precisei usar a ponta rombuda ao invés da lâmina."


Os detalhes que Joseph Vacher forneceu à polícia sobre seus ataques assassinos enquanto ziguezagueava pela França eram horríveis demais e muitos policiais se sentiam enojados quando tinham de ouvir e anotar suas digressões. Ele alegou que era tomado por por um frenesi após cada ataque e afirmou que em seu  maníaco perdia o controle e via a si mesmo como se estivesse fora de seu corpo. Nessas experiências ele cortava, mutilava e às vezes desmembrava suas vítimas. Ele também confessou que às vezes matava suas vítimas por comida ou por dinheiro, mas que sua motivacão principal era um mistério para si mesmo, pois não conseguia encontrar uma razão que justificasse aquele comportamento. Por fim, ele concluiu para os policiais: "Eu matava pois podia matar, me sentia bem matando e não iria parar nunca se assim fosse permitido."

Uma vez que Vacher começou a confessar seus crimes, ele apreciou sua "horrível notoriedade", sentindo-se uma espécie de celebridade que merecia seu destaque. Também foi relatado que ele era exagerado e orgulhoso de suas ações doentias e encontrava grande prazer em recitar seus "feitos revoltantes" para quem quisesse ouvir, em especial quando as pessoas se sentiam ultrajadas. É claro que as autoridades sabiam que suas confissões poderiam ser falsas e, portanto, verificavam cada detalhe, conforme observado por um jornalista:

Ele contava com indiferença a história de alguma nova tragédia de tempos em tempos ao juiz de instrução, à medida que os detalhes voltavam à sua mente, e em cada caso a investigação forneceu corroboração completa da narrativa de Vacher. Os corpos em cada caso foram encontrados no local que ele indicou – em moitas solitárias ou em poços não utilizados. Ao se sentir à vontade para revelar seus atos hediondos, ele não se furtava de descrever os pormenores e cada pequeno aspecto de seus crimes.

Os crimes de Joseph Vacher superaram em número e atrocidade os do Assassino de Whitechapel, o infame matador conhecido como "Jack, o Estripador". Ele próprio dizia ter sido muito maior e mais implacável do que o assassino que assombrou as ruas de Londres apenas alguns anos antes. Alguns até chegaram a tentar colocar Vacher no local e data em que o maníaco retalhou as mulheres nas ruas do East End londrino, mas os registros deixavam claro que Vacher estava na França quando Jack matava.

O ápice de suas ações homicidas eclodiram em 1894, alguns anos depois de Jack concluir seu trabalho sangrento. Fisiologicamente, os médicos consideraram o caso de Vacher interessante, referindo-se aos seus crimes como uma "missão divina". Vacher teria dito: "Minhas vítimas nunca sofreram, pois enquanto eu as estrangulava com uma mão eu simplesmente tirava suas vidas com um instrumento afiado na outra. Eu não queria que elas sofressem, desejava no entanto que estivessem mortas."


Logo se verificou que seus assassinatos se repetiram com uma frequência alarmante por um período de pelo menos dez anos. Havia também grandes lacunas em suas viagens que ele não conseguia explicar, e era difícil, se não impossível, traçar suas rotas exatas, pois era um vagabundo que ia para onde as estradas o levassem. Isso significava que também era difícil determinar com precisão quantas pessoas ele matou - em alguns depoimentos ele dizia que teriam sido 10 ou 12, em outros ele citava 50 ou 80, e mais adiante disse ter parado de contar depois de 100. Considerando que a população rural da França vivia dispersa e que, por vezes, não se tinha um senso apurado da população, o número pode realmente ser bastante elevado. 

Havia também muitas conjecturas entre o público e os criminologistas sobre o que levou Vacher a cometer esses assassinatos. Supostamente, além do ferimento de bala auto infligido ele teria algumas condições psicológicas que podem ter contribuído para suas ideias homicidas. O assassino sofria de paranoia, de psicose aguda e esquizofrenia, que provocava alucinações auditivas, conforme ele disse certa vez:  "Eu os ouvia falando e conspirando contra mim, eu os ouvia como se pudesse ler suas mentes e saber o que pensavam de mim. Isso me irritava e por isso eu os atacava". 

Joseph Vacher queria evitar a pena de morte na Guilhotina e alegou em seu julgamento que era insano. Ele tentou provar sua demência contando histórias absurdas em que seria um lobisomen, que havia sido instruído por Joana d'Arc a matar crianças e que Deus o havia também instruído a matar o maior número possível de crianças. Enquanto isso, circulavam perguntas sobre se seus assassinatos vis foram premeditados e deliberados. Alguns consideravam que ele sabia exatamente o que estava fazendo e que não estava louco quando cometeu os assassinatos e sim possuído por demônios. De fato, uma declaração de um Bispo afirmando ter sonhado que Vacher era possuído por Lúcifer em pessoa fez com que o serial killer declarasse ser essa suposição verdade, já que ele sentia a presença do diabo sempre que fazia uma vítima. Para reforçar ainda mais essa hipótese, Vacher começou a simular crises em que demônios dominavam seu corpo, falavam através dele e ofendiam os dogmas religiosos. 

Mas os exageros do acusado tornaram claro que ele pretendia tão somente se passar por louco e que seus atos eram sim premeditados conforme se provou no julgamento. O maníaco teria usado de dissimulaçao para convencer suas vítimas em várias ocasiões, teria se fingido de inválido e até oferecido dinheiro para crianças afim de atrai-las ao seu destino final.  

Joseph Vacher foi julgado no Cour d'Assises de Ain e apesar de seus protestos e tentativas de provar que era louco, uma equipe de médicos franceses, que incluía o eminente professor, médico e criminologista Alexandre Lacassange, o declarou são. Além disso, as evidências contra Vacher eram tão óbvias que não foi surpresa para ninguém que ele fosse condenado e sentenciado à morte em 28 de outubro de 1898.


Dois meses depois, em 31 de dezembro de 1898, o matador de gorro branco, a Besta da França e o Rival declarado de Jack, o estripador, foi executado com certo grau de bizarrice. Quando chegou a hora do homem de 29 anos caminhar até a guilhotina, dizem que ele ainda fingia insanidade e que se recusou a andar, sendo arrastado por seus carrascos aos berros.

Embora seja difícil determinar quantas pessoas Joseph Vacher matou, as autoridades foram capazes de determinar como ele foi capaz de levar à cabo sua carnificina assassina. Aparentemente, ele foi bem sucedido em parte devido à falta de comunicação entre os departamentos periféricos e as aldeias isoladas onde cometeu os crimes. Além disso, após a morte de Vacher, na esperança de explicar como ele conseguiu matar por tanto tempo sem ser detectado, o criminologista Lacassange observou:

A longa imunidade de Vacher, a facilidade com que ele evitou a detecção, é incrível, a menos que se possa compreender como funciona a confiança na vida do campo. Vacher era capaz de convencer um  lavrador ou pastor errante, que possuía um passaporte honroso e idôneo, acima de qualquer suspeita. Ele era capaz de convencer, de passar uma imagem simpática e de enorme carisma".

De fato, Lacassange foi um dos primeiros estudiosos de crimes em séria a sugerir que tais maníacos eram dotados de um traquejo social e de um charme que lhes permitia ganhar a confiança de suas vítimas. Ele se referiu a essa capacidade de convencimento como "sedução de predador", algo que está em conformidade com as teorias modernas de que assassinos em série são indivíduos conseguem se mostrar charmosos e que exercem um certo carisma.

O Estripador Francês ainda hoje é considerado como o mais prolífico e perigoso maníaco daquele país.

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Produção Lovecraftiana - Filme de horror cosmico em produção


J.K. Simmons certamente não tem medo de enfrentar papéis diferentes no cinema, e seu próximo personagem deve ser o mais estranho até hoje. Segundo relatos, da próxima vez que encontrarmos Simmons, ele estará torturando alguém física e emocionalmente em um filme de terror Lovecraftiano.

O filme, Glorious, da diretora Rebekah McKendry e da Produtora Shudder está programado para estrear no Fantasy Festival no final deste ano. Como detalha a Variety, o enredo de Glorious gira em torno de uma premissa simples, um homem desmaia em um banheiro depois de uma noitada em que bebeu além da conta e acaba ficando preso sem chance de escapar.

A sinopse oficial parece no mínimo curiosa, senão promissora:

O filme segue Wes (Ryan Kwanten) um sujeito comum que se vê face a face com uma entidade misteriosa, antiga e aterrorizante  (Simmons). Co-escrito por Joshua Hull, David Ian McKendry e Todd Rigney, a história segue Wes numa viagem através de sua própria psique enquanto luta com o destino e um vislumbre do impensável neste horror cósmico inspirado em Lovecraft.


Uma história que soa... estranha. 

Segundo os envolvidos na produção, Glorious será um suspense de horror cósmico na melhor tradição dos contos e da mitologia de H.P. Lovecraft. Os envolvidos estão mirando alto e acreditam ser capazes de imprimir na tela grande algo raramente visto num filme de terror, tensão construída num clima de tensão contínua.

Na entrevista concedida à  Revista Variety o diretor fez alusão a “criaturas medonhas com dois metros e meio de altura e tendo uma vagina dentada gigante no peito" Simmons tem um papel assustador, como um ser ancestral que parece humano - em aparência, mas que é na verdade algo aterrorizante.

Os roteirista disseram que havia a necessidade de fazer Simmons parecer normal, mas aos poucos ir mostrando o que realmente é.  Ele precisava soar cordial e amigável e aos poucos ir mostrando o quão inumano é. A voz e a caracterização de J. K. é perfeita porque ele é um ator multifacetado.


Há rumores de que o personagem não seria outro senão o perverso Nyarlathotep, o infame Caos Rastejante, um dos mais interessantes e conhecidos deuses do panteão lovecraftiano. Quando se fala em jogos mentais e tortura, o nome do bom e velho titio Nyarly parece mais do que indicado.

E como vimos em Whiplash, Simmons certamente sabe como distorcer as emoções de alguém na tela com suas palavras e tom. Então tudo parece promissor, para dizer o mínimo. 

Vamos torcer para que Glorious seja aterrorizante pelas razões certas, e não por ser simplesmente terrível de assistir.


sábado, 16 de julho de 2022

O Glutão de Paris - Tarrare, o homem que podia comer qualquer coisa


“Deixe uma pessoa imaginar tudo o que os animais domésticos ou selvagens, os 
mais imundos e vorazes, são capazes de devorar, e eles podem formar alguma 
ideia do apetite, bem como das necessidades de Tarrare.” 

— Dr. Pierre-François Percy, Mémoire sur la polyphagie.

A manifestação viva de um dos sete pecados capitais - A GULA, rondou as ruas da Paris no século XVIII, buscando saciar uma fome interminável. Ele tinha nome, atendia por Tarrare e os detalhes de sua vida ainda causam choque em todos que o ouvem. 

No início da vida as necessidades alimentares de Tarrare eram incomuns, mas nada que causasse estranheza. No entanto, as coisas logo tomariam um curso sinistro na direção do bizarro. De acordo com relatos e registros médicos existentes, o apetite insaciável de Tarrare continuou crescendo até o ponto que ele se empanturrava com todo tipo de coisa que chegasse ao alcance de suas mãos. Comenta-se que ele era capaz de ingerir alimentos insalubres, devorar animais vivos e até mesmo cadáveres, chegando a ser suspeito de sequestrar e devorar uma criança.

Mas qual seria o possível explicação para essa fome incontrolável? Será que Tarrare, o Glutão de Paris, realmente existiu ou tudo isso não passa de uma lenda? Para compreender a história desse lendário canibal e sua estranha existência, vamos ter que investigar quem era ele e como esse francês entrou para a história pelos seus hábitos alimentares incomuns. Esteja avisado que essa narrativa não é para os fracos - se você acha que pode aguentar, siga conosco!

PARIS, 1772


Com uma boca grande esticada além da normalidade, lábios finos e dentes manchados, o glutão passava seus dias comendo compulsivamente. Roía rolhas, mastigava madeira, devorava cestas inteiras de maçãs – uma de cada vez em rápida sucessão – e consumia até animais vivos (em especial cobras) para a mórbida diversão de espectadores ao mesmo tempo surpresos e nauseados.

Como a maioria dos comedores compulsivos modernos, Tarrare era de estatura diminuta, não pesando mais de quarenta e cinco quilos - ao menos, antes de comer. Apesar de toda a sua ingestão diária, ele nunca parecia manter o peso. Quando vazio, seu estômago ficava frouxamente distendido a ponto de poder envolvê-lo na cintura como se fosse um cinto feito da sua própria carne. Quando estava cheio, era inflado como um balão – não muito diferente de uma mulher grávida em seu último trimestre. Seu cabelo era claro e macio, enquanto suas bochechas, quando não estavam ocupadas em sua capacidade – supostamente podendo conter até uma dúzia de ovos – eram enrugadas e penduradas como papadas flácidas.

Antes da vida de artista itinerante, o indivíduo conhecido apenas por seu nome artístico, Tarrare, sobrevivia em meio à miséria, seguindo uma caravana itinerante de desajustados criminosos. Nascido na zona rural da rica cidade de Lyon, por volta de 1772, o apetite voraz de Tarrare se tornou aparente quando ele completou seis anos de idade. O menino sentia uma fome que não parava nunca e o único alívio que ele tinha vinha quando preenchia esse vazio. Tarrare, segundo alguns, podia comer seu próprio peso corporal em carne num período de 24 horas. Infelizmente, esse desejo sem limites o forçou a sair da casa de sua família quando adolescente, pois eles não conseguiam mais alimentá-lo.

Vagando pelo campo, sua vida se limitava a uma procura constante de sustento. Ele descobriu que era capaz de comer qualquer coisa que as pessoas lhe oferecessem e passou a fazer demonstrações públicas de seu nauseante dom. Após vários anos como vagabundo itinerante, Tarrare chegou à Paris. Lá ele esperava iniciar uma carreira solo de sucesso como aberração. Seu ato era simples: ele sentava em uma praça ou mercado e desafiava as pessoas a sugerir qualquer coisa para que ele comesse. Não raramente, Tarrare chocava a todos os presentes, consumindo o que quer que lhe fosse oferecido, de comida podre, a animais vivos, objetos grandes e pequenos, coisas intragáveis... o glutão não se furtava a devorar o que lhe dessem. No fim, ganhava algumas moedas e as usava para comprar comida um pouco melhor que a que devorava.

Com o sucesso, veio o risco. Tarrare uma vez desmaiou no meio da apresentação caisada pelo que mais tarde foi descoberto ser uma obstrução intestinal, e sendo levado para o hospital Hôtel-Dieu. Depois de ser tratado com laxantes, Tarrare agradecido se ofereceu para demonstrar seus talentos comendo o relógio de bolso do cirurgião. O cirurgião concordou, mas apenas sob a condição de que ele pudesse abrir Tarrare para recuperá-lo. Sabiamente, o glutão recusou.


Foi durante a Guerra da Primeira Coalizão Francesa que o respeitado cirurgião militar Dr. Pierre-François Percy conheceu o inexplicável talento de Tarrare, agora alistado como soldado do Exército Revolucionário. Com apenas vinte anos, o rapaz aparentemente sem nenhum atrativo provou ser extraordinário. Incapaz de subsistir apenas com rações militares, Tarrare era conhecido por fazer apresentações para outros soldados em troca de suas rações. Mesmo assim, ele ainda sentia fome e vagava pelos estábulos e chiqueiros comendo o que os animais deixavam para trás. Eventualmente Tarrare foi internado em um hospital militar ficando sob os cuidados do Dr. Percy.

O médico ficou curioso à respeito da condição de Tarrare e testou seus limites oferecendo quatro vezes as rações diárias de um soldado, mas nem isso foi capaz de saciar sua fome. Tarrare seguia comendo lixo, roubando outros pacientes e comendo até o estoque de curativos do hospital. Testes psicológicos descobriram que o glutão era apático, mas de resto, mentalmente são.

O relatório de Percy descrevia o soldado como um homem pequeno, com olhos vermelhos e pele macilenta. A temperatura de seu corpo era sempre elevada e ele suava em profusão. Seu suor aliás carregava um acentuado odor, tão rançoso que podia ser percebido a seis metros de distância. O fedor piorava depois dele comer e era tão pronunciado que mesmo para os precários padrões de higiene da época, muitos consideravam impossível ficar perto dele. Percy descreveu o fedor como sendo atroz a ponto de haver uma aura nauseante ao seu redor.

Certa vez, o médico mandou preparar uma refeição que deveria ser suficiente para quinze com o intuito de testar os limites de Tarrare. Mas contradizendo tudo oq ue se poderia imaginar, ele comeu tudo. Percy prosseguir em seu experimento alimentando Tarrare com animais vivos: um gato - do qual ele bebeu o sangue e depois de consumir, como uma coruja,  regurgitou sua pele. Ele conseguiu consumir em outras ocasiões lagartos, cobras e até uma enguia inteira.


Meses de experimentação se passaram antes que os militares descobrissem uma maneira de usar a habilidade única do glutão. Tarrare foi contratado como espião para servir ao Exército Francês no Vale do Reno. Sua missão era levar secretamente um documento através das linhas inimigas em um lugar que não poderia ser facilmente detectado caso fosse capturado: seu trato digestivo. Depois de consumir dez quilos de vísceras cruas de touro - que ele comeu diante dos generais - Tarrare engoliu uma caixa de madeira contendo um documento que poderia passar por seu sistema completamente intacto e ser entregue a um prisioneiro de guerra do alto escalão francês na Prússia.

Como se pode imaginar, um sujeito que exalava um fedor medonho e comia do lixo, não era exatamente o melhor e nem mais discreto dos espiões. Além disso, ele não falava alemão e foi rapidamente descoberto, capturado e mandado para uma prisão por suspeita de espionagem. Tarrare ficou preso por algumas semanas até expelir a caixa e contar aos surpresos prussianos o plano. Uma vez que a caixa continha um documento em branco, os inimigos assumiram que o sujeito deveria ser louco e resolveram mandá-lo de volta à França. No fim das contas, todo o plano não passou de uma farsa para testar a lealdade de Tarrare e saber se ele era de confiança. 

De volta à França, ele ficou novamente sob os cuidados do Dr. Percy que lhe deu baixa do serviço militar. Desesperado para encontrar uma cura para sua condição ele concordou em ficar sob os cuidados do médico na busca por alguma cura. Vários tratamentos foram testados: Opiáceos de láudano, vinagre de vinho, pílulas de tabaco e uma dieta de ovos cozidos, contudo, nada funcionou. Tarrare ainda vagava à noite pelas ruas desertas lutando contra cães vadios por refugos de matadouro e bebendo sangue de pacientes que estavam sendo tratados com sangrias. Ele até foi pego em mais de uma ocasião comendo cadáveres do necrotério local. Eventualmente, uma criança que estava sendo tratada no hospital desapareceu e Tarrare foi considerado como o principal suspeito. Temendo pelo que poderia acontecer, ele fugiu e voltou a viver como vagabundo fazendo apresentações em que comia todo tipo de porcaria.

Anos mais tarde, o Dr. Percy foi contatado por um médico do hospital de Versalhes a pedido de um paciente em seu leito de morte. Era Tarrare, que dizia estar à beira da morte depois de ter engolido um  garfo que havia se alojado em algum lugar de seu trato digestivo. Fazia quatro anos desde que Percy tinha visto Tarrare pela última vez. Ele esperava poder salvar sua vida removendo o garfo que causava a severa obstrução. Infelizmente não era o garfo que o estava matando mas a tuberculose em estágio terminal. 


Ele faleceu poucos dias depois.

Uma vez morto, um colega do Dr. Percy pediu para inspecionar o cadáver de Tarrare. De fato, vários médicos e cirurgiões desejavam participar da autópsia e concorriam para assistir o procedimento, o que atrasou sua realização. Enquanto isso, o corpo apodrecia rapidamente e a autópsia foi prejudicada pelas condições gerais. Os resultados revelaram que Tarrare possuía um esôfago chocantemente largo que permitia a passagem de porções enormes de alimento. Seu estômago era insondavelmente grande e cheio de úlceras que o tornavam elástico. Seu corpo estava cheio de pus, seu fígado e vesícula biliar anormalmente grandes, e o garfo, apesar de procurado, jamais foi recuperado.

Os médicos nunca descobriram o que provocava aquela estranha condição no pobre sujeito. Qual era a causa da fome insaciável de Tarrare? O que tornava possível aquele homem comer e jamais se sentir completo? Provavelmente jamais saberemos ao certo.

Algumas teorias foram sugeridas ao longo dos anos baseadas sobretudo nas anotações feitas pelo Dr. Percy que escreveu um livro sobre o caso. Muitos consideravam o material exagerado ou pouco preciso, contudo Percy era muitíssimo respeitado, tratado como um dos médicos pioneiros da cirurgia militar e inventor de importantes implementos. Sendo assim, à princípio podemos dar a ele o benefício da dúvida.
 
Até onde se sabe, Tarrare não sofria de psicose, estava completamente consciente e cognitivo. É possível que ele sofresse de hiperatividade hormonal e disfunção de componentes do cérebro. O sensor que nos permite saber que estamos satisfeitos não funcionava para ele. Se fosse submetido a um estudo cerebral, provavelmente essa condição seria identificada por um hipotálamo aumentado.


O hipotálamo regula a temperatura do corpo e é responsável por despertar a sensação de fome. Dado que Tarrare estava constantemente superaquecido numa busca desesperada por comida, isso parece se encaixar. Pesquisadores também suspeitam de um possível caso de pica, uma condição que leva o indivíduo a ingerir objetos não comestíveis.

Quanto ao motivo pelo qual Tarrare nunca pesava de 45 quilos, ele provavelmente também sofria com a presença de parasitas. O fato dele ter tamanho normal pode significar que outra coisa estivesse se nutrindo do alimento ingerido, talvez um organismo secundário. Um parasita como o ancilostomídeo ou lombriga, poderia explicar as coisas.

Existem teorias igualmente plausíveis: hipertireoidismo, que pode causar excesso de apetite e sudorese, além de cabelos finos; Síndrome de Prader-Willi, uma condição que causa fome constante, mesmo por itens não comestíveis; deficiência extrema de ferro, que causa desejos pelo mesmo; uma amígdala danificada é uma possibilidade, pois pode causar polifagia, termo médico para comer demais. De fato, poderia ser um caso raro de várias condições simultâneas.

Curiosamente, um caso semelhante – embora menos extremo ao de Tarrare foi relatado exatamente na mesma época e exatamente na mesma área, o de Charles Domery, o que pode apontar para uma causa ambiental determinante. Dado que tudo isso ocorreu concomitantemente com a Revolução Francesa, uma época de grandes privações, uma deficiência nutricional  pode ser responsável pelo ocorrido. Uma combinação de diferentes condições pode ser o que levou Tarrare a se tornar um canibal ou, em outras palavras, induziu suas tendências antropofágicas. Nunca saberemos com certeza.

A história inteira soa mais como algo escrito por Stephen King do que como um mistério não resolvido da história médica. Seja qual for a causa, pode ser fácil ridicularizar Tarrare e rotulá-lo de monstro, mas seria mais correto categorizar seu caso como uma tragédia. Tarrare não pediu para ter seu metabolismo e não há como dizer como ele se sentia praticando as ações grotescas que lhe foram atribuídas. Imagine uma fome tão agonizante que poderia levar alguém a comer qualquer coisa para saciá-la. Era isso que ele enfrentou, e foi isso que o matou.  

quarta-feira, 13 de julho de 2022

La Voisin - A história real da feiticeira e envenenadora de Paris


Algumas histórias de terror parecem tão incrivelmente bizarras que nos fazem pensar se realmente poderiam ter acontecido da forma como são contadas. Elas causam repulsa e fascínio na mesma proporção, nos forçando a buscar os detalhes, mesmo os mais inacreditáveis.

A história de Mademoiselle Dehayes (fala-se DÊ-Shaiê) é das mais estranhas e se dermos crédito a apenas uma pequena fração dela, já será o bastante para torná-la das mais aterrorizantes. 

Nascida em 1640, Catherine Deshayes, tornou-se esposa de um joalheiro parisiense e mercador de seda chamado Antoine Monvoisin. Ele tinha uma loja tradicional estabelecida em Pont-Marie, uma área nobre de Paris no século XVII. As coisas correram bem por um tempo, até que os negócios do marido afundaram e ele decretou falência em 1660. De um momento para outro, a família ficou na miséria, dependendo de terceiros para sobreviver. Isso marcou o início da estranha existência de Catherine, uma tão surpreendente e inacreditável reviravolta que parece algo extraído da ficção, mas que segundo os registros do período, são totalmente verídicos.

Segundo os rumores da época, Catherine sempre foi uma pessoa curiosa, excêntrica até. Os pais relatavam que ela ouvia coisas supostamente sussurradas por espíritos e isso lhe concedia um tipo de sexto sentido, uma faculdade muito popular na França. Ainda criança, Catherine surpreendia a todos interpretando sonhos e fazendo previsões. Em certa ocasião, com apenas sete anos de idade, declarou que um tio não viveria mais do que um mês e que ele teria uma morte violenta. O homem morreu exatamente um mês depois, num estranho acidente de carruagem. 

A menina era estranha; conversava e ria sozinha, dizia ter "amigos invisíveis" que falavam com ela e que lhe avisavam quando alguém queria lhe fazer mal. Estes "amigos" estavam sempre ao seu redor, como esferas luminosas que com o passar do tempo se revelaram nas mais variadas formas, desde pássaros flamejantes, lagartos sibilantes e até mesmo pequenos diabretes similares a imps.


Ao chegar à idade adulta, Catherine voltou-se para a adivinhação, em particular leitura de mãos e fisionomia, uma técnica que permitia interpretar as linhas faciais. Pessoas vinham de longe para se consultar com a jovem mulher que sempre acertava suas previsões. Ela apenas abandonou essas práticas quando casou e por muitos anos manteve suas habilidades mágicas em segredo à pedido do marido.

Contudo, quando a família perdeu sua riqueza, Catherine aos 21 anos decidiu retornar ao seu antigo negócio. Logo ela descobriu o quanto aquilo poderia ser lucrativo. Ela alugou um sobrado na Rue d' Auruil onde passou a receber as pessoas que vinham em busca de suas aptidões mágicas; fosse para ouvir aconselhamento, ler o futuro ou interpretar sonhos.

Havia, no entanto, algo ainda mais sinistro que ela oferecia aos clientes. Diziam as más línguas que Catherine abraçou atividades criminosas realizando abortos clandestinos, prática proibida na época, mas extremamente lucrativa. Ela atraía uma clientela rica e aristocrática para seu negócio de aborto, prometendo total sigilo e discrição. A elite de Paris conhecia seu endereço e a buscava quando surgia a necessidade. Várias mulheres aristocráticas a procuravam para por um fim em uma gravidez indesejada ou a uma indiscrição cometida.


Entretanto, Catherine não estava satisfeita e começou a combinar os dois ramos de atividade no qual estava envolvida. Em pouco tempo, ela passou a criar objetos mágicos e amuletos para vender à sua requintada clientela: Supostas poções de amor e afrodisíacos, filtros para evitar gravidez ou provocá-la, fórmulas mágicas para operar curas milagrosas e muitos outros produtos. Suas receitas incluíam ingredientes obtidos em sua ocupação como aborteira - sangue, órgãos, placenta e outras substâncias derivadas dos fetos extirpados. Estas podiam ser preparadas e destiladas em panaceias medicinais para todo uso - ou assim, professava.

Também havia outro rumor, o de que a feiticeira era capaz de lançar mão de magia negra se fosse paga para tanto. Seus malefícios podiam causar dano, ferir, aleijar ou até matar um inimigo. Dizem que a vizinhança a tolerava por temer suas habilidades mágicas e que mesmo a Igreja olhava para o outro lado, já que ela guardava um registro detalhado com o nome de suas clientes. Se algo lhe acontecesse, a bruxa prometia divulgar a tal lista que arrastaria o bom nome de muitas famílias para a lama.  

Agindo dessa maneira, a riqueza de Catherine não parava de crescer. Figura exótica na alta sociedade parisiense, ela era convidada para festas e soirées, participava de sessões visando contatar o além e de rituais profanos.


Catherine supostamente comandava uma cabala de bruxas, feiticeiros e alquimistas sediados em Paris, mas que possuía ramificações em Marselha, Lyon e Toulouse. O grupo era devotado a práticas esotéricas muito em voga na Paris do século XVII como a astrologia e tarologia, mas também promovia coisas mais assustadoras como missas negras. Quase todos esses rituais funcionavam como desculpas perfeitas para orgias e obscenidades que atraíam os decadentes nobres e burgueses parisienses, interessados em emoções fortes. Durante esses rituais, ela invocava o próprio Satanás para conceder desejos aos praticantes. As cerimônias eram supostamente assustadoras, e nelas, muitas vezes, se realizava sacrifícios de animais e, de acordo com alguns rumores, de recém nascidos.  

Para Catherine, aquele era um negócio lucrativo, já que boa parte de seus proventos eram obtidos chantageando os participantes de seu círculo, ameaçando expor as indiscrições das quais ela ficava sabendo. Eventualmente, sua infâmia se tornou tamanha que ela passou a atender pelo apelido de La Voisin, ou "A Venenosa". A alcunha também decorria dela oferecer aos clientes técnicas de envenenamento como forma de resolver problemas.

Catherine passou a agenciar uma rede de envenenadores profissionais e químicos para ajudá-la com o negócio sinistro de negociar venenos. De fato, a certa altura, um de seus amantes, o alquimista Adam Lesage, quase convenceu La Voisin a assassinar seu próprio marido, embora mais tarde ela desistisse. Diz-se que ao longo de sua carreira ela pode ter sido responsável direta ou intermediado até 2.500 mortes encomendadas. Nesse período, ela desfrutou da sociedade local, como uma socialite de tão alto nível e tão amada pela aristocracia que ninguém ousava cruzar seu caminho. No entanto, a queda de La Voisin estava se aproximando.


Sua derrocada começou com uma cliente chamada Madame de Montespan, que supostamente se tornou amante oficial do rei Luís XIV da França depois de Catarina realizar uma missa negra para ela ganhar seu amor e atenção. Montespan então usou poções de amor para manter o Rei interessado nela, mas o monarca acabou se entediando e a largou, preferindo uma mulher chamada Angelique de Fontagnes. Desprezada, Montespan não aceitou nada bem a situação, indo até La Voisin para comprar veneno com o intuito de matar tanto o rei quanto sua nova amante. Em 1679, La Voisin apresentou um plano engenhoso em que uma petição oficial seria revestida com veneno que poderia ser absorvido pela pele. O papel seria então passado ao rei por um cúmplice usando luvas. 

A conspiração obviamente não deu resultado porque o rei não estava aceitando petições naquele dia. Algum envolvido deve ter dado com a língua nos dentes pois duas associadas de La Voisin, as cartomantes e envenenadoras Marie Bosse e Marie Vigoreaux, foram presas pela polícia suspeitando de seus planos. As autoridades parisienses já estavam suspeitando das atividades de La Voisin desde que uma cunhada do Rei, a duquesa d'Orléans, havia sido envenenada. 

Submetida a interrogatório na Bastilha, Marie Bosse acabou apontando o dedo para Catherine, que foi rapidamente capturada. Como um castelo de cartas, sua rede começou a desabar a medida que os membros eram presos. 


Na cadeia, muitos desses associados foram coagidos a fornecer informações incriminadoras contra Catherine Deshayes, inclusive sua filha Marguerite Monvoisin  que revelou detalhes sobre as missas satânicas, cerimônias de magia negra e assassinatos intermediados pela Madame. O caso ganhou enorme notoriedade por envolver nomes importantes na corte em um escândalo sem precedentes. Ele se tornou conhecido como O Caso dos Venenos ou L'Affaire des Poisons

A própria La Voisin nomearia algumas pessoas da alta sociedade como seus clientes, fazendo muitos aristocratas proeminentes serem presos, exilados ou presos. O caso se tornou um grande circo da mídia na época. O medo de que ela entregasse pessoas da alta sociedade, políticos importantes e membros da nobreza ligados a seus crimes foi provavelmente uma das razões pelas quais ela nunca foi torturada, embora a ordem tivesse sido dada para que a tortura fosse empregada contra ela. La Voisin se recusou a revelar o nome de seus associados mais próximos e o nome de seus clientes.

Durante o julgamento, muitas evidências foram apresentadas contra La Voisin, incluindo vários frascos, cubas, jarros, potes, poções e caldeirões, bem como todo tipo de equipamento e apetrecho mágico encontrados em sua casa. Os promotores resolveram focar na acusação de feitiçaria, colocando de lado os assassinatos, sobretudo porque em acusações de bruxaria, a ré não teria a chance de se defender ou falar publicamente. Na época, o crime de feitiçaria ainda era levado muito a sério e a punição para uma bruxa podia ser severa. Após um rápido julgamento no qual as principais atividades blasfemas foram apresentadas através de testemunhos e provas, Catherine terminou condenada. Quando ela tentou mencionar o nome de alguns de seus clientes, ela foi calada e removida às pressas da corte.


Em 22 de fevereiro de 1680, La Voisin foi queimada numa fogueira montada na Place de Grève no centro de Paris. Desafiadora até o fim ela atacou um padre e chutou o feno empilhado ao seu redor. Ela ainda tinha uma mordaça na boca, supostamente para não proferir maldições contra os oficiais da corte.  Curiosamente, o responsável por acender a pira foi um de seus ex-amantes, o carrasco André Guillaume. 

Pouco tempo depois da execução, a coisa se tornou ainda mais escandalosa quando sua filha Marguerite  apresentou as histórias das missas negras e o plano de assassinar o rei Luís XIV. Isso tornou as acusações contra La Voisin ainda mais contundentes, embora ela já estivesse morta e não pudesse ser punida novamente. O caso inteiro era chocante, mas muitos trechos oferecidos por Marguerite acabaram sendo censurados ou apagados dos autos, livrando a maioria dos indivíduos poderosos que haviam se associado com Catherine Deshayes.

Ao longo dos anos, o caso de Le Voisin ganhou contornos de lenda e fatos começaram a se misturar com ficção. Hoje não se sabe ao certo onde um começa e outro termina, mesmo assim, é um incidente fascinante da história francesa.  

domingo, 10 de julho de 2022

Mãos que Curam - Quando o Toque de um rei podia Curar as Pessoas


O poder de cura pelas mãos surgiu ao longo da história em uma variedade de diferentes povos e culturas. A ideia de que alguém possa ter o poder de impor as mãos sobre uma pessoa doente ou ferida e curá-la instantaneamente parece ser irresistível. Tais contos são abundantes, com tantas ideias diferentes sobre o que está por trás desses aparentes milagres quanto há pessoas que acreditando neles. Um caso proeminente dessa crença que se espalhou por toda a Europa é que a realeza tem o poder de curar com seu toque.

A ideia de que os monarcas eram imbuídos de uma espécie de Poder Divino de cura remonta a séculos em muitos países europeus. Por muito tempo pensou-se que esses governantes tinham a capacidade de curar tocando ou acariciando os doentes, prova incontestável da força do Todo Poderoso operando através deles e de suas posição superior em relação aos meros plebeus. 

Uma das primeiras ocasiões registradas do uso desse toque real de cura data do século XI, quando o Rei anglo-saxão Eduardo, o Confessor (1042-1066), usou seus poderes para curar uma aflição chamada escrófula, também conhecida hoje em dia como linfadenite cervical tuberculosa. Não por acaso, ela ganhou o apelido de "Mal do Rei". Essa doença é basicamente um inchado dos gânglios linfáticos tuberculosos do pescoço. Segundo os cronistas, Eduardo impôs as mãos sobre um afligido pela doença, tocou-o com o selo real e então o  mandou embora. O toque teria curado o afligido e ele retornou diante da corte embasbacada para mostrar o milagre que o Rei havia realizado. Depois disso, o Rei realizou ao menos outra dezena de milagres semelhantes sempre com sucesso. 


O próprio William Shakespeare escreveria sobre o toque real de Eduardo, o Confessor, em Macbeth, escrevendo:

Uma obra milagrosa faz este bom Rei;
Muitas vezes, desde minha permanência, aqui na Inglaterra,
Eu o vi fazer. Ele, assim, solicita aos céus,
A intercessão divina pelo seu Toque Real,

Tudo inchado e ulceroso, lamentável aos olhos
O mero desespero da cirurgia, ele cura,
Pendurando um selo dourado em seus pescoços,
O término da aflição, está ao seu alcance 

Ofereçam a ele orações e devoção;
A realeza, abençoada, lhes oferece  
A Bênção Divina da Cura.

A prática se tornaria mais e mais difundida entre a realeza no continente e se espalharia para curar todos os tipos de problemas, incluindo reumatismo, convulsões, febres, cegueira, bócio e demais doenças, geralmente em dias santos. Henrique VII da Inglaterra introduziu a tradição de uma moeda de ouro chamada "Anjo", que trazia estampada nela a imagem do arcanjo Miguel derrotando um dragão. Essas moedas seriam dadas a quem recebesse o toque real, muitas vezes com a moeda furada e presa a uma fita que poderia ser colocada no pescoço do paciente, tudo parte de um ritual elaborado que incluía a leitura de passagens do Evangelho de Marcos (16:14–20) e o Evangelho de João (1:1–14), além de outras orações curativas. Os pacientes eram então instruídos a usar a moeda constantemente, para que a cura tivesse um efeito mais duradouro. Quer esses pacientes estivessem realmente doentes ou não, as moedas eram valiosas e muito apreciadas pelos pobres que vinham ser curados.


Na época de Carlos I, o uso dos "Anjos", que eram muito caros, foi substituído por moedas de prata menores. O toque real foi por um tempo tão comum que alguns monarcas tocavam mais de mil pessoas por ano. Multidões se deslocavam até as capitais imperiais, sendo recebidas por conselheiros reais que escolhiam aqueles que receberiam o benefício do Monarca. A honra era reservada a pessoas mais pobres e necessitadas. Acredita-se que muitos Reis e até algumas Rainhas incentivavam a prática e realmente acreditavam que seus poderes divinos eram reais.

A prática foi especialmente popular na França, onde se diz que Luís XIV tocou 1600 pessoas em um único domingo de Páscoa. De fato, o toque real era tão popular na França, que era tratado como uma tradição. No país, ele recebeu um impulso paranormal extra, com efeitos ainda mais impressionantes e abrangentes do que em qualquer outro lugar do mundo. O demonologista Pierre de Lancre (1553-1631) chegou a afirmar que monarcas franceses mortos poderiam realizar o toque de cura do além-túmulo, e muitas pessoas desesperadas vieram para a França para receber essa graça.

A mão de Luis XIII, morto há 40 anos, chegou a ser exumada de sua sepultura, decepada por um Cardeal, encerrada em uma luva dourada costurada com fio de ouro e colocada em um lugar de destaque na Catedral de Notre Dame. Lá, ela abençoava milhares de pessoas que caminhavam vacilantes até ela e se deixavam tocar na testa para receber o milagre curativo.

Enquanto isso, na Inglaterra, alguns monarcas passaram a renegar o ritual, enquanto outros o usavam com enorme moderação. Os reis ingleses achavam que aquilo poderia ser perigoso, sobretudo, depois que pessoas que deveriam ter se curado demonstraram continuar sofrendo com suas moléstias. Se tal coisa se espalhasse, os conselheiros reais temiam que a posição dos monarcas pudesse ser contestada.


Gradualmente, a prática caiu em desuso e foi usada com cada vez menos frequência. No entanto, o Rei inglês Carlos II o trouxe de volta de maneira importante durante seu reinado de 1660 a 1685, já tendo oferecido toques curativos enquanto estava no exílio na Holanda na década de 1650. Quando voltou ao poder durante o Período da Restauração, Carlos II não só o reintroduziu, como criou a sua própria versão da moeda do anjo. Ele passava horas e horas de seu dia cuidando dos doentes, na maioria das vezes aqueles com escrófula. Supõe-se que durante seu reinado de 25 anos ele tenha pousado as mãos sobre cerca de 100.000 de seus súditos. Não se sabe exatamente por que Carlos II se esforçou tanto para tornar essa cura real, mas ele tido como o Rei que realizou o ritual mais frequentemente do que qualquer outro.

Nos anos posteriores, a prática passaria por períodos de popularidade e remissão, até que monarcas como Guilherme III (1689–1702) e Maria II (1689–1694) se recusassem a participar dela, chamando-a de mera superstição. George I (1714-1727) removeu permanentemente a prática, chamando-a de "cerimônia supersticiosa e insignificante". Na Inglaterra, ela foi banida em 1732, quando foi retirada do Livro de Oração Comum que antes a tratava como milagre real. Mesmo na França, onde permaneceu popular, o ritual estava sendo usado cada vez menos, sendo seu último uso oficial conhecido através de Carlos X (1824-30). Este Suserano pousou suas mãos sobre 121 dos seus súditos fieis por ocasião de sua coroação em 29 de maio de 1825. 

A prática meio que desapareceu na história e foi esquecida. Não há como saber por que alguém pensou que um Rei poderia oferecer cura, ou por que existem tantos relatos de curas milagrosas envolvendo o Toque Real. É possível que tais milagres estivessem relacionados a uma espécie de efeito placebo? Ou haveria algo de verdadeiro nessa curiosa história? 

É provável que nunca venhamos a saber e essa prática continue relegada a uma curiosa estranheza histórica.