quarta-feira, 26 de junho de 2024

O Vampiro de Dusseldorf - O reinado de sangue e a captura do monstro


Dando continuidade a macabra história de Peter Kurten, o assassino em série que atormentou a cidade alemã de Dusseldorf em 1929 e que ganhou o merecido apelido de "Vampiro". Seu reinado de terror deixou um rastro de mais de 30 vítimas em apenas um ano.

Peter Kurten vagava pelas ruas escuras de Dusseldorf em busca de vítimas. Aos 46 anos, ele havia aperfeiçoado os seus métodos de abordagem e sabia como ganhar a confiança das suas vítimas até chegar o momento de atacá-las. Kurten já era um assassino experiente, tendo matado repetidas pessoas para obter com a dor e sofrimento delas satisfação pessoal. Esse monstro adorava infligir dor e sentia um prazer demente ao ver sangue escorrendo e a vida se apagando. Contudo, foi no último ano de sua carreira assassina que ele se tornou ainda mais visceral e medonho.

Em fevereiro de 1929, ele praticou um dos seus crimes mais hediondos. Kurten conhecia bem a cidade e sabia onde encontrar suas vítimas. Certo dia, parado em frente a uma igreja, ele viu uma garotinha de 8 anos chamada Rosa Olliger descendo a rua e ficou encantado pela inocência dela. O monstro a abordou e amigavelmente se ofereceu para levá-la até sua casa pois estava perto de escurecer. Quando os dois entraram em um beco, o assassino a esganou com as próprias mãos. Excitado pelo assassinato, ele retirou em seguida uma tesoura do casaco e desferiu seguidos golpes no rosto e no peito da criança, assistindo o sangue vertendo em profusão. Em um frenesi medonho, Kurten se abaixou e lambeu os ferimentos experimentando um êxtase transcendental. A partir de então, consumir sangue humano se tornaria parte de sua loucura e uma necessidade premente para que ele atingisse o orgasmo. Sem sangue ele não se sentia completo e não conseguia alcançar o prazer sexual.

O maníaco compreendia que seu comportamento degenerado acabaria chamando a atenção da policia, por isso começou a destruir os corpos de suas vítimas. O corpo de Rosa Olliger foi o primeiro que ele decidiu incendiar, usando para isso óleo. O cadáver carbonizado da menina foi descoberto no dia seguinte, chocando a população de Dusseldorf que clamava por providências das autoridades.

Peter ouvia os comentários das pessoas nas ruas e lia nos jornais os detalhes sobre o horror que havia produzido. Seu coração batia mais rápido e ele se divertia diante da indignação das pessoas. Apenas quatro dias depois do assassinato da menina, Peter cedeu a tentação de buscar uma nova vítima. Mais tarde ele diria que as "vozes malignas da cidade", o forçaram a matar novamente. Ele escolheu um homem que saia alcoolizado de uma cervejaria, um operário chamado Rudolf Scheer. Kurten o derrubou no chão, desferindo golpes com a tesoura, vibrando de prazer a cada estocada. Quando o sujeito parou de se mexer, ele se debruçou sobre seu pescoço e sorveu o sangue que corria em abundância. Coberto de sangue, ele deixou a cena do crime em êxtase.

Interagir com populares e até com a polícia se tornou uma diversão para Kurten. Ele adorava perguntar a policiais se tinham pistas sobre o responsável por aqueles atos medonhos e se juntava às pessoas que exigiam a captura do monstro. Certa vez, ele acompanhou uma multidão até uma delegacia de polícia para protestar. Quando um homem com problemas mentais foi apontado como suspeito dos crimes, o verdadeiro responsável pelos assassinatos estava em meio a um bando que gritava para as autoridades lhes entregar o monstro.


Com a prisão injusta de um suspeito, Peter restringiu seus ataques por alguns meses. Mas não demorou até ele sentir a compulsão de matar uma vez mais. Ele fez duas tentativas frustradas de estrangular mulheres, mas estas conseguiram escapar. Outra jovem, Maria Rahn não teve a mesma sorte! Peter conseguiu convencê-la a ir com ele até um parque vazio e lá a atacou selvagemente. A mulher foi estrangulada e quando perdeu os sentidos, acabou golpeada com a tesoura. Após beber o sangue da vítima, o monstro escondeu o corpo sob um tapete de folhas. Peter retornou repetidas vezes ao local do crime e decidiu enterrá-la em uma cova rasa para que ela não fosse encontrada.

Na semana seguinte ele deu vazão a sua sanha assassina, atacando mais quatro pessoas, aproveitando qualquer oportunidade. Seus ataques eram rápidos e ele se livrava dos corpos atirando-os em rios ou deixando em vielas escuras. Legistas que examinaram os corpos perceberam marcas deixadas nos cadáveres evidenciavam que o assassino às havia mordido ou chupado a pele, sobretudo na região do pescoço. Assim que essa informação chegou à imprensa, os jornais começaram a chamar o assassino de Vampiro de Dusseldorf.

Para piorar a situação, a cidade hospedaria uma Grande Feira nas semanas seguintes, o que atraiu muitos visitantes das regiões rurais no entorno de Dusseldorf. Era a ocasião perfeita para o predador atacar impunemente, misturando-se à multidão de forasteiros. As vítimas escolhidas foram duas meninas que ele atraiu até um beco e matou a facadas, deixando os corpos mutilados lado a lado. Ainda em êxtase, ele voltou ao parque da feira e atraiu uma terceira vítima, uma mulher chamada Gertrude, que visitava Dusseldorf pela primeira vez. Peter a atacou no mesmo parque, primeiro tentou estuprá-la, mas quando ela resistiu, se conformou em apenas matá-la com uma facada no peito. O golpe foi tão forte que a lâmina chegou a se quebrar em seu corpo. Embora quisesse beber o sangue dela, o assassino precisou se retirar apressadamente pois os gritos da mulher haviam atraído um grupo que também estava no parque. O Vampiro acreditava que Gertrude havia morrido, com certeza não iria sobreviver aquele ataque feroz, mas estava errado. Ela sobreviveu e deu a polícia uma descrição minuciosa do seu agressor.

O maníaco esperou alguns meses até fazer um novo ataque, escolhendo uma criança de cinco anos que ele conseguiria facilmente dominar. Quando as autoridades demoraram a encontrar o corpo abandonado em um depósito, Kurten decidiu enviar uma carta anônima para um jornal da cidade explicando onde poderiam encontrar os restos, junto com detalhes de como havia matado a criança e bebido seu sangue. Ele também revelou o local em que havia enterrado Maria Rahn na floresta. O contato com os jornais o deixou animado e renovou sua excitação. A publicação de seus feitos estampando os jornais fizeram com que ele se sentisse invencível.


A verdade é que Peter Kurten sentia que jamais seria apanhado e que as autoridades não seriam capazes de superar sua astúcia. Mais que isso, ele acreditava que as vozes que ouvia o protegiam - o deixavam invisível e com uma força sobre-humana. Ele reconheceu que a certa altura se considerava tão superior aos seus perseguidores que poderia matar indiscriminadamente. Aos poucos, o maníaco foi se tornando descuidado e pretencioso. Entre fevereiro e maio de 1930, Kürten mutilou dez vítimas com vários ataques usando martelo. Todas as vítimas destes ataques sobreviveram e muitas conseguiram fornecer à polícia uma descrição do homem que as atacou.

Em maio de 1930, um homem desconhecido abordou Maria Budlick na estação de trens de Düsseldorf. Ele conversou com Maria e descobriu que ela havia viajado de Colônia para Düsseldorf em busca de hospedagem e emprego. Kürten se ofereceu para levar Maria para um albergue local. A moça aceitou o convite, mas começou a discutir com ele quando ele começou a conduzi-la em direção a um parque pouco povoado. Um homem percebeu a confusão e se aproximou da dupla, perguntando a Maria se o homem com quem ela estava discutindo a estava incomodando. Quando Maria assentiu que sim, o sujeito foi embora.

O salvador de Maria então a convidou para comer e beber em seu próprio apartamento. Maria adivinhou que o homem tinha segundas intenções e informou-lhe que não tinha interesse em fazer sexo com ele. O homem concordou e disse a Maria que, em vez disso, a levaria a um hotel. Em vez de ir para um hotel, o homem a atraiu para Grafenburg Woods. Lá, ele tentou estrangulá-la e agredi-la sexualmente. Maria gritou e o homem a soltou. O homem que salvou e depois atacou Maria não era outro senão Peter Kürten.

Maria não foi à polícia, em vez disso, ela escreveu sobre o ocorrido a um amigo. Porém, a carta não foi endereçada corretamente e foi aberta por um funcionário dos correios em 19 de maio de 1930. O funcionário, após ler o conteúdo da carta, enviou-a à polícia de Düsseldorf. A carta chegou às mãos do inspetor-chefe Ernst Gennat, da Polícia de Berlim. O Inspetor Gennat acreditava que o agressor de Maria poderia ser o Vampiro de Düsseldorf.


Quando entrevistou a moça ela revelou que o seu agressor a tinha finalmente libertado quando ela começou a gritar porque lhe tinha jurado que não se lembrava da morada do apartamento dele. No entanto, ela se lembrava perfeitamente e deu o endereço à polícia. Maria confirmou o endereço e a proprietária contou à polícia que o inquilino que morava no apartamento era um tal Peter Kürten e sua esposa Auguste.

Quando ficou sabendo que a polícia o procurava, Kürten desconfiou que acabaria preso. Decidiu então confessar a Auguste que era, de fato, o Vampiro de Düsseldorf. Ele pediu à esposa que o entregasse, querendo que ela recebesse a recompensa que estava sendo oferecida por sua captura. No dia seguinte, Auguste contatou a polícia e fez uma denúncia bombástica. Auguste contou que, embora ela estivesse ciente de suas passagens anteriores na prisão, desconhecia completamente sua culpa como Vampiro. Ela informou-lhes que seu marido havia confessado tudo a ela e queria que ela o entregasse. Peter Kürten, o Vampiro de Düsseldorf, foi preso por policiais armados enviados para sua captura.

Peter Kürten admitiu prontamente sua culpa, com pouco ou nenhum remorso. Ele também confessou o assassinato não resolvido de Christine Klein e a tentativa de assassinato de Gertrude Franken em 1913. No total, Kürten admitiu 68 crimes – 9 assassinatos e 31 tentativas de homicídio.

Juntamente com esta confissão, Kürten também confessou à polícia e aos psiquiatras que era a visão, o cheiro e o sabor do sangue das suas vítimas que ele procurava. Ele os informou – descaradamente – que a visão de sangue era muitas vezes mais do que suficiente para levá-lo ao orgasmo. Ele ainda admitiu ter bebido o sangue de muitas de suas vítimas e gostado de fazê-lo.

Enquanto aguardava julgamento, ele foi entrevistado extensivamente pelo Dr. Karl Berg, um renomado psiquiatra que pretendia usar o caso como base para suas teorias sobre patologia mental. Durante as entrevistas, Kürten expressou que o principal motivo dos seus crimes foi a procura de prazer sexual. Ele também explicou que começou a fantasiar sobre essas coisas enquanto estava na prisão, especialmente enquanto estava em confinamento solitário.


Kürten contou ao Dr. Berg que sua escolha de arma era irrelevante - ele simplesmente escolheu o que estava em mãos e matava sem preparo. Quando questionado sobre as vítimas sobreviventes, Kürten admitiu que não estava muito preocupado em assassiná-las. Ele os deixaria ir enquanto alcançava a satisfação sexual antes que o ataque pudesse levá-lo a matar sua vítima. Deixando de lado sua busca de prazer sexual, ele também disse ao Dr. Berg e à polícia que desejava causar o caos para “contra-atacar” uma sociedade que ele sentia o oprimir injustamente. Ele sentiu que seus repetidos encarceramentos eram injustos e buscou sua própria forma de vingança distorcida.

À medida que seu julgamento se aproximava, o Dr. Berg, assim como outros psicólogos, decidiram que Peter Kürten era legalmente são e competente para ser julgado, pois tinha sido plenamente capaz de avaliar a criminalidade de suas ações.

Em 13 de abril de 1931, começou o julgamento de Peter Kürten, o Vampiro de Düsseldorf. Ele foi acusado de 9 acusações de homicídio e 7 acusações de tentativa de homicídio. Kürten inicialmente se declarou inocente por motivo de insanidade ​– apesar do que ele havia confessado à polícia e aos psicólogos sua culpa.

Vários dias após o início do julgamento, depois de confessar, Kürten informou ao seu advogado de defesa que desejava mudar a sua confissão para culpado. Ele expressou ainda que não sentia remorso por suas ações, nem acreditava possuir consciência. Ele afirmou que muitas vezes pensava em seus crimes com carinho. Ao contestar o depoimento do perito de que Kürten era competente para ser julgado, o seu advogado de defesa argumentou que a “grande variedade de perversões” demonstrada pelo seu cliente apontava claramente para uma mente instável. Os especialistas discordaram respeitosamente. Berg afirmou ainda que, embora alguns aspectos das extensas entrevistas de Kürten pudessem ser falsos, tais aspectos poderiam ser atribuídos à própria personalidade narcisista do criminoso.

Em 22 de abril de 1931, após 10 dias de julgamento e depoimentos, o júri retirou-se para considerar o veredicto. Menos de duas horas depois, consideraram Peter Kürten culpado de todas acusações. Ele foi sentenciado à morte. Peter Kürten não recorreu da condenação, embora tenha pedido perdão ao Ministro da Justiça, visto que o Ministro era conhecido como opositor da pena capital. Em 1º de julho de 1931, a petição foi negada. Naquela noite, ele recebeu sua última refeição com salsicha, batatas fritas e uma garrafa de vinho branco. Ele pediu uma segunda porção, que o pessoal da prisão concedeu.


No dia 2 de julho de 1931, às 6h, Peter Kürten foi conduzido ao terreno da prisão de Klingelputz, em Colônia. Suas últimas palavras foram relatadas como: “Diga-me, depois que minha cabeça for decepada, ainda poderei ouvir, pelo menos por um momento, o som do meu próprio sangue jorrando do meu pescoço? Esse seria o prazer de acabar com todos os prazeres.” Ele foi então executado na guilhotina.

Após sua execução, a cabeça de Peter Kürten foi cortada no meio e mumificada. O cérebro foi removido para análise forense, que não mostrou anormalidades.

As extensas entrevistas do Dr. Karl Berg com Kürten foram compiladas como o primeiro estudo psicológico de um serial killer sexual. Eles também formaram a base de seu livro, "O Sádico", imortalizando para sempre o horrível legado do Vampiro de Düsseldorf.

sábado, 22 de junho de 2024

O Vampiro de Dusseldorf - A gênese do Assassino em série Peter Kurten

Todos nós somos produto de nossa origem e daqueles que nos criaram. Existem famílias equilibradas em que os valores de amor e compreensão são transmitidos através das gerações. As crianças aprendem essas lições e depois as levam adiante com seus próprios filhos. 

Mas existem pessoas que só conhecem o abuso e negligência ao longo de toda vida. Elas aprendem desde cedo que o mundo é um lugar cruel e que a existência não passa de uma luta constante, árdua e assustadora pela sobrevivência. Enquanto muitos conseguem superar e ter uma vida saudável, outros acreditam que machucar pessoas é algo natural. Para aqueles que se voltam para uma existência mais sombria, causar sofrimento, é tudo que importa.

Peter Kurten, o monstro que ficaria conhecido como O Vampiro de Dusseldorf, nasceu na pequena cidade de Monhein, na Alemanha em 1883. Seu pai era um alcoólatra abusivo e sua mãe uma mulher tímida, incapaz de se impor diante dele. O pai, um sujeito abrutalhado, era um operário que gastava a maior parte de seu salário com bebida, o que forçava a família a procurar alguma forma de garantir seu sustento. Além disso era um bêbado raivoso. Muitas vezes retornava de suas noitadas embriagado e batia na esposa e nos dez filhos, sobretudo Peter, que era o mais velho.

Seu pai era um homem sádico, além das surras violentas, se deleitava forçando os filhos a assistir ele fazer sexo com a mãe. Com os frequentes abusos, Peter começou a fugir de casa aos oito anos. O garoto ficava na escola até que o mandassem embora ou se escondia na floresta onde ficava sozinho por dias. Durante esse período se sustentava roubando nas feiras e mercados da cidade. O menino foi pego repetidas vezes e devolvido ao pai que retribuía suas fugas com surras cada vez mais brutais. Em uma dessas o deixou tão ferido que foi preciso interná-lo num hospital.

Através da violência, Peter desenvolveu uma predisposição para retribuir da mesma maneira. Ele sentia que a violência era a única forma de interagir com o mundo e desejava causar às pessoas a mesma dor que sentia. Na tenra idade de nove anos, ele teria cometido seu primeiro assassinato. Peter e seus amigos costumavam brincar nas margens do Rio Monhaim, construíndo jangadas com troncos para flutuar na água. Um dia, ele e dois amigos saíram para brincar, mas em determinado momento Peter foi tomado de um pensamento perverso que dominou suas ações. Ele empurrou na água um dos meninos, sabendo que ele não sabia nadar. O outro prontamente tentou puxa-lo de volta para a jangada, mas Peter também o empurrou. Em seguida, usando um remo ele impediu que os dois voltassem para a embarcação. Os dois acabaram se afogando. Peter sentiu uma estranha satisfação, diferente de tudo que havia experimentado até então. Aquilo lhe dava um poder especial que ele jamais havia sentido.

O assassinato ensinou a ele uma lição valiosa: matar não era apenas excitante, mas fácil. Assim como era fácil escapar das consequências de seus atos. O jovem Peter alegou que as mortes foram decorrentes de um trágico acidente e ninguém duvidou dele.

As mortes deixaram o jovem Peter Kurten cheio de confiança para tentar novamente.

Um ano mais tarde, ele e um amigo navegavam novamente em uma jangada improvisada. Dessa viagem apenas Peter retornou, contando de forma muito convincente que o colega havia caído nas águas e levado pela correnteza sem que ele pudesse fazer qualquer coisa. O acontecido levantou algumas suspeitas, mas ninguém chegou a acusar o menino formalmente. Seria monstruoso demais...

No ano seguinte, quando Peter tinha 11 anos, a família decidiu se mudar para uma cidade maior onde poderiam encontrar melhores condições de vida. Decidiram se estabelecer em Dusseldorf, uma metrópole às margens do Reno, lá o pai encontrou emprego como metalúrgico. Mas apesar disso, todos continuavam sendo vítimas dos abusos do patriarca da família. Adicionando um componente sexual a sua rotina, o pai passou a violentar uma das filhas de 13 anos, conduta que eventualmente o levou a prisão em 1897.

Dusseldorf desempenhava um sentimento conflitante na mente perturbada do rapaz. Ele se sentia mais livre do que nunca em um ambiente enorme e populoso, mas ao mesmo tempo, sentia que havia algo maligno na cidade. Uma presença invisível que ele alegava compelir suas atitudes e moldar seu comportamento cada vez mais limítrofe. Kurten contaria mais tarde que a cidade exercia sobre ele uma força quase sobrenatural, como se ela o forçasse a se tornar o assassino apelidado de Vampiro em face de seus atos hediondos.

Com o pai condenado por incesto, coube a Peter, o mais velho, sustentar os demais. Ele conseguiu um emprego na mesma indústria e desempenhava o papel de aprendiz. O adolescente, entretanto era estranho e impopular, preferia ficar sozinho, não se misturava com ninguém e guardava para si suas próprias fantasias. Estas iam muito além dos sonhos e da curiosidade natural sobre garotas. Peter havia desenvolvido uma fixação por animais e visitava as estrebarias em busca de cabras e ovelhas. A bestialidade concedeu algum alívio para suas fantasias doentias, mas logo aquilo começou a se tornar cansativo. Peter precisava de algo mais do que o sexo com animais, e ele acabou encontrando esse "algo mais" através da violência. A tortura era muito mais gratificante e ele começou a ferir e mutilar os animais da fazenda. Posteriormente Peter conheceu um vizinho que tinha por ofício apanhar cães de rua. Ele se juntou ao homem em uma rotina que envolvia torturar os animais capturados e eventualmente matá-los com requintes de crueldade.

O sadismo deu um novo ânimo ao rapaz e isso o levou de volta às fazendas. Em dado momento em meio ao ato sexual, ele apunhalou uma ovelha com uma faca. O sangue quente escorrendo da garganta e os balidos frenéticos do animal lançaram uma onda de energia que o deixou extasiado. Peter descobriu que o sofrimento era o elemento que faltava, e aquele que o deixava mais excitado. Dali em diante ele ligaria para sempre o prazer sexual com o sangue de seus parceiros. Nenhum prazer poderia ser obtido sem um componente sangrento.

Eventualmente, o pai de Peter Kurten foi solto da prisão, retornando ainda mais violento do que antes. Mas Peter estava perto de completar a maioridade, e assim que atingiu 18 anos, roubou dinheiro da fábrica e da família, fugindo sem pensar duas vezes. Peter se estabeleceu no vilarejo de Cobling, vivendo com uma prostituta, dois anos mais velha que ele. O rapaz deu início a um relacionamento baseado no abuso, semelhante ao que o pai infligia na família. O prazer só era atingido mediante tortura e sadismo que se tornavam cada vez mais intensos. Em dado momento, ele foi longe demais e acabou sendo denunciado pela namorada. 

Peter foi detido em 1903 e em seguida expulso de casa. Vivendo nas ruas, ele começou a roubar para se sustentar e acabou sendo preso e condenado por furto. Enviado para uma prisão em Dusseldorf, Peter conheceu vários prisioneiros que haviam sido condenados por crimes graves e se tornou amigo de assassinos e estupradores com quem dividia histórias. Ele ouvia com atenção as narrativas detalhadas que alimentavam suas fantasias doentias. 

Quando enfim foi libertado, Peter estava ansioso para colocar em prática aquilo que havia ouvido. Uma de suas curiosidades era à respeito de arsonismo, um crime que ele ainda não havia tentado. Logo ao ser liberado da cadeia ele incendiou um galpão, sentindo enorme satisfação ao ver as chamas dançando e devorando a estrutura de madeira.

Pouco tempo depois, Peter procurou alguma atividade onde pudesse se enquadrar. Ele acabou se alistando no Exército, sendo mandado para treinamento na França. Mas obviamente, a vida dura de recruta não o agradou e ele acabou desertando. Sua transgressão acabou sendo descoberta após nova prisão por roubo, o que acarretou em uma pena de oito anos numa severa prisão na Alemanha. Durante o cumprimento de sua pena, Peter se envolveu em muitas brigas, sendo mandado para a solitária repetidas vezes. Numa cela pequena e escura ele se desesperava, tendo como único alívio as memórias de seus crimes e as fantasias perversas que desejava realizar. Na solidão total ele sentia algo crescendo, um ódio e um ressentimento que não cabia em seu peito. 

O assassino estava no último estágio de gestação.

Aos 30 anos, Peter Kurten enfim foi libertado e ansiosamente colocou em ação um de seus sonhos. Ele invadiu uma casa na sua cidade natal em Monhaim com o plano de roubar o lugar, mas se deteve ao encontrar os membros da família dormindo em seus quartos. Ele se interessou especialmente por uma menina de 10 anos chamada Kristin Klein e foi até sua cama. Ele passou alguns momentos observando a criança, pensando no que fazer e em seguida deixou seus instintos assassinos virem à tona. Peter a esganou com as mãos, mas foi só quando produziu uma faca e cortou seu pescoço que se sentiu plenamente realizado. A visão do sangue vertendo da ferida fez com que ele sentisse alívio sexual imediato. 

No dia seguinte Peter assistiu a polícia investigar a cena do crime, acompanhou a família no enterro e até visitou a sepultura na calada da noite. Estar perto da sua vítima o deixava excitado. Peter não foi considerado suspeito e se sentiu livre para prosseguir em seus experimentos com assassinato. Ele arranjou um pequeno machado e usando essa arma, vagava pela cidade em busca de alguma vítima. Seu método de ataque era sempre o mesmo, ele carregava a arma escondida em um saco, se aproximava por trás e desferia um golpe certeiro no crânio da pessoa. Homens, mulheres ou crianças... ele não escolhia as vítimas, atacava sempre que surgia a oportunidade e fugia. Peter também se dedicava a incendiar prédios e casas, escondendo-se na mata para ver os lugares ardendo. Tanto os ataques quanto os incêndios despertavam um furor sexual, mas ele sentia que precisava mais do que aquilo - ele ansiava por proximidade com suas vítimas.

Kurten escolheu sua vítima seguinte com cuidado, uma jovem de 17 anos chamada Gertrude Franken. Ele arrombou a porta da frente da casa e se esgueirou até o quarto da garota observando-a dormindo tranquilamente. O monstro não perdeu tempo e agiu, apertando a garganta dela até partir seu pescoço - ela não teve a chance de gritar. Excitado ele saiu do quarto alegremente. 

Peter continuou explorando a região, produzindo incêndios criminosos até ser capturado pela polícia. Ele acabou sendo mandado novamente para a cadeia, cumprindo pena de seis anos numa prisão militar ao lado de outros desertores, assassinos e facínoras que cometeram crimes na Grande Guerra. Peter se deleitava com as histórias de veteranos embrutecidos que descreviam os cadáveres, o horror e a violência das trincheiras. Ele desejava ser liberado para lutar, mas os médicos julgaram que seria uma temeridade dar uma arma a um sujeito tão problemático.

Quando ele foi solto em 1920, a Guerra havia terminado e a Alemanha estava despedaçada. Ele se mudou para Altemberg onde tencionava reconstruir sua vida ao lado da irmã que lhe deu acolhimento. Peter conseguiu um emprego estável e chegou a casar, construindo uma fachada de homem sério e cidadão exemplar. Em 1925 ele convenceu a esposa a mudar para Dusseldorf. Peter contou mais tarde que ainda sentia que alguma força na cidade o chamava, quase que como um canto sedutor para que ele retomasse sua rotina criminosa. Em Dusseldorf ele experimentava sonhos alucinantes em que praticava assassinato, estupro e tortura. Ele acordava banhado de suor, agarrando a esposa, a agredindo repetidas vezes como se fosse uma continuidade de seus sonhos febris. 

Kurten acreditava que os espíritos malignos ou o demônio em pessoa o tentavam. Queriam que ele espalhasse violência pela cidade. Ele eventualmente acabou cedendo a esses anseios e buscou mulheres que aceitavam se sujeitar às suas vontades hediondas. Ele também deu vazão a uma onda de incêndios criminosos em fazendas e celeiros da cidade, tentando até atear sem sucesso fogo a um orfanato com o intuito de ouvir os gritos de crianças inocentes. Apesar de ainda fantasiar com assassinato, ele não havia matado ninguém em mais de uma década. Mas isso estava prestes a mudar. 

No fatídico ano de 1929, a situação econômica em Dusseldorf se deteriorou a ponto de deixar a maioria das pessoas sem emprego e famintas. Era a Grande Depressão que havia se instalado no mundo todo. Não se sabe ao certo se foi o stress social ou algum outro fator particular que despertou novamente a sanha assassina de Kurten, mas ele estava prestes a iniciar o período mais sanguinolento de sua carreira homicida.

Ele começou a vagar pelas ruas escuras de Dusseldorf ouvindo a voz sedutora de seus muitos demônios internos garantindo que a sensação de matar era a mais doce de todas. Em uma noite particularmente propícia, iluminada por um céu avermelhado, que ele julgou ser um sinal, Peter Kurten deu início a mortandade que colocaria seu nome no rol dos assassinos mais perversos da história.

Ele seria para sempre o Vampiro de Dusseldorf.

Mas esse é assunto para a continuação desse artigo.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Cidade do Demônio - A Cidadela criada pelo Vento no coração da Mongólia


O gigantesco e aparentemente interminável Deserto de Gobi, na Mongólia Central, é um lugar assustador e perigoso.

Trata-se de uma vasta extensão inóspita, formada por nada além de areia, vento e um calor infernal. Na antiguidade, os exploradores que ousaram vagar por seu interior comparavam o Gobi como o Fim do Mundo. Outros o chamavam de "o lugar onde Deus abandonava a Terra", pois não podia haver local mais hostil ao homem na criação.

Se você caminhasse por suas extensões remotas, poderia acreditar que nada seria capaz de se estabelecer naquelas estepes. Nada exceto escorpiões e espíritos malignos. No entanto, nômades garantiam existir em seu interior implacável estranhas construções projetando-se no horizonte árido - enormes castelos, grandes monumentos e formações incomuns. Muitos acreditavam que essas narrativas alucinantes não passavam de meras lendas ou devaneios causados pelo esmagador sentimento de isolamento. O calor do deserto, afinal de contas, podia mexer com a percepção de um homem e fazê-lo acreditar em visões e miragens.

O rico folclore das tribos mencionavam povos ancestrais que ali viveram muito antes do homem. Seria uma raça de gigantes com pele cor de cobre que ergueram construções imponentes que lhes servia de lar. Seriam eles os antepassados dos homens, contudo, maiores, mais poderosos e implacáveis. Segundo a cultura local, esses gigantes escravizaram os homens antigos e os obrigaram a construir suas cidades de pedra. Em algum momento, os gigantes deixaram de existir, mas suas cidadelas rochosas permaneceram para sempre. Tamerlão, o terrível conquistador mongol, que levou a morte ao ocidente afirmava que em suas veias corria o sangue desses gigantes.

Ao longo dos séculos, a crença de que as ruínas eram habitadas por fantasmas e espíritos malignos se espalhou. Não por acaso a ruína tornou tabu para os viajantes do deserto cujas caravanas passavam ao largo, evitando até mesmo olhar na sua direção. Nem mesmo uma tempestade de areia faria com que eles buscassem proteção nesses redutos malignos. 

Chamavam o lugar de Cidade do Demônio e a evitavam a todo custo.


As lendas se mantiveram intactas por gerações, e apenas quando estrangeiros e forasteiros vieram explorar o interior insalubre da Mongólia é que a cidadela foi enfim vasculhada.

As tribos das estepes que habitam a orla possuíam muitas histórias sobre as formas surreais na paisagem agreste. Além do mito dos gigantes de cobre, alguns acreditavam que aquelas estruturas colossais estavam fadadas a um dia se erguer e andar e que quando o fizessem, destruiriam o mundo com sua fúria.

Os contadores de historias também afirmavam ouvir vozes fantasmagóricas vindas do coração do deserto. Elas cantavam, gemiam e lamentavam com uma voz inumana proveniente do vazio. Essas palavras podiam levar um homem à loucura, obrigá-lo a vagar pelo deserto e até forçá-lo a matar seus amigos e a si mesmo. Para espantar essa força maligna os locais estalam os dedos e repetem mantras para nublar o chamado.

Mas qual a origem da Cidade do Demônio? De onde vieram essas enormes formações rochosas únicas no mundo?

Foi o vento selvagem que varre o Gobi o responsável por criar a cidadela. Ele soprou sobre os montes de terra, dilapidando as ravinas e moldando as enormes rochas. Lentamente elas foram transformadas, dando forma a estruturas massivas que lembravam castelos, animais e até os tão temidos demônios que atormentavam o sonho dos locais. 

Localizada atualmente na Reserva Geológica de Yadan, a Cidade do Demônio fica a 180 quilômetros de Dunhuang, o assentamento mais próximo. A paisagem poeirenta é marcada por algo conhecido como Relevo de Yadan, formações criadas ao longo de milhões de anos por erosão éolica, clima seco e terríveis tempestades. Essas condições são essenciais para esculpir as pedras gerando suas formas desconcertantes. 


Pesquisadores acreditam que durante o Período Cretáceo, há cerca de 100 milhões de anos, o lugar não era um deserto, mas sim um enorme lago de água doce. Com o tempo, este lago recuou para expor rochas sedimentares, pedregulhos e desfiladeiros originalmente submersos, que então foram transformadas pelas forças da natureza no impressionante conjunto de esculturas espalhadas pela reserva. Acredita-se que os acidentes geográficos de Yadan em seu estado atual tenham sido formados durante um período de 300 a 700 mil anos. A reserva possui o maior número de formações desse tipo no mundo.

Alguns relevos tem até 20 metros de altura e foram esculpidos de tal maneira que é difícil acreditar que não foram feitos por mãos humanas e por um engenhoso senso artístico.

Nos anos 1920, expedições estrangeiras que estiveram na Mongólia descreveram as Estruturas de várias maneiras. Elas foram chamadas de castelos, de escadas, templos, pagodes e palácios. A Expedição americana liderada pelo famoso arqueólogo Roy Chapman Andrews, explorou o lugar cuidadosamente entre 1921 e 1930. Eles chegaram a anunciar a descoberta de uma civilização desconhecida responsável por erigir aqueles monumentos. Em seus diários, Andrews citou monumentos em que era possível distinguir rostos humanos, animais estranhos e criaturas aterrorizantes. 

A suspeita era de que o lugar seria um sítio arqueológico ancestral, um dia habitado por povos com enorme sensibilidade artística e conhecimentos de arquitetura e engenharia, capazes de moldar os monólitos daquela maneira. Expedições posteriores, no entanto concluíram a origem natural das "obras de arte", desacreditando a hipótese delas serem resultado de alguma ação humana. De fato, não havia sinal de ocupação da área em momento algum da história humana, quase corroborando as lendas de que ali "o mundo terminava".


Em meio aos acidentes geográficos mais impressionantes encontra-se a infame Moguicheng, a esplanada principal da Cidade do Demônio. A área possui enorme concentração de Estruturas de Yadan que realmente criam a ilusão de ser uma cidade abandonada com edifícios, praças e monumentos deliberadamente esculpidos.

As mais notáveis formações são aquelas que as tribos reconheciam como demônios. É fácil entender porque os nativos supersticiosos temiam esses megálitos imponentes. Não é preciso usar de muita imaginação para enxergar a face aterrorizante de bestas gigantes, com presas recurvadas e prontas para atacar. Essas feras assustadoras pairam sobre a paisagem como sentinelas vigiando seus domínios. Numerosas pedras multicoloridas nas colinas que cercam a área contribuem para o efeito surreal e místico. Parece um outro planeta, uma realidade paralela de estranheza alienígena. 

Um dos aspectos mais bizarros da Cidade do Demônio são os sons misteriosos e inexplicáveis ​​que parecem emanar da área circundante. Os sons tem muitas variações. Diz-se que durante o dia pode-se ouvir sons de cordas de violão sendo dedilhadas, o toque de sinos e vozes humanas sussurrando, gritando e até cantando. Ainda mais assustador, há momentos em que esses sons que permeiam o ar assumem a qualidade de gemidos, gritos, brigas ou o choro de bebês. À noite e quando os frequentes ventos que açoitam a região sopram areia e cascalho pelo ar, os sons misteriosos transformam-se numa cacofonia assustadora que é descrita como uma reminiscência de leões rugindo, lobos uivando, elefantes trombeteando e porcos sendo abatidos.

A origem desses sons estranhos não são claras e, na maioria das vezes, dizem que parecem vir de todas as direções ao mesmo tempo, como se se materializassem no próprio ar. É provável que os sons sejam algum efeito ainda pouco compreendido do vento passando pelas formas incomuns de Relevo de Yadan. Mas o estranho fenômeno acústico ainda é muito debatido e os testes para explicar sua origem se mostraram inconclusivos. Finalmente, a área também exibe um nível incomum de magnetismo que sugere haver grandes depósitos de ferro e hematita. Não é estranho que bússolas falhem e que objetos de metal se mostrem estranhamente imantados.


A Reserva Geológica de Yadan e sua Cidade do Demônio estão abertos a visitação de turistas, muitos dos quais vêm na esperança de vivenciar o estranho fenômeno dos ruídos por si próprios. Ele é bastante comum e muitos saem impressionados pelo efeito bizarro.

O parque é alcançado após uma viagem de cerca de duas horas saindo de Dunhuang em um ônibus operado por várias empresas de turismo localizadas lá. Os visitantes dessa região castigada pelo vento e pelo sol encontram um lugar cheio de beleza natural e mistério inescrutável. É um sítio antigo que inspira um profundo sentimento de admiração e apreço pelas forças poderosas que moldaram o nosso planeta. Mais do que isso, muitos mencionam uma sensação de esmagadora insignificância, quase como se os Gigantes de Cobre ou Demônios do Deserto, realmente os estivessem observando.

E quem duvida que realmente estejam?

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Terrível Ancião - a verdade sobre o Capitão Richard Holt

A cidade de Kingsport é um lugar de muitos segredos, mas um de seus maiores mistérios diz respeito a um Ancião que vive numa antiga casa próximo da orla marinha.

Chamado por alguns de "O Velho Ruim" e por outros de "O Terrível Ancião", o homem de longos cabelos grisalhos e aspecto desgrenhado passa a imagem de ser um eremita inofensivo. Mas aqueles que cresceram temendo as lendas sobre seus feitos e desfeitos, sabem que aparências podem enganar.

Os mais antigos residentes afirmam que o Terrível Ancião atende pelo nome de Richard Holt e que ele foi um Capitão de Clipper quando as rápidas embarcações mercantis cruzavam a Baía rumando para portos no outro lado do mundo. 

Ele teria servido a Companhia das Índias Orientais e empreendido inúmeras viagens pelos mares do sul. Nessas ele conseguiu acumular um tesouro considerável em dobrões de ouro espanhóis que supostamente ainda guarda em algum lugar de sua casa. A prova disso é que até hoje ele costuma abastecer sua despensa com provisões pagas em ouro cunhado no século XVII.

Até onde se sabe, Holt nunca casou ou teve filhos. Não há herdeiros para sua casa e coleção de tranqueiras exóticas. Haviam alguns Holt que viviam em Kingsport, mas quando perguntados sobre parentesco, se apressaram em negar qualquer ligação com o Velho. Como se eles quisessem se distanciar o máximo possível desse ramo genealógico. Os últimos da família deixaram Kinsgport ou morreram faz tempo. Hoje o velho é o único com esse sobrenome na cidadezinha. 

A razão para renegar qualquer laço de sangue com o velho pode ter origem em preconceito. Muito se falava que o capitão teria absorvido a cultura ímpia de certos povos do Pacífico. Ele teria entrado em contato direto com tribos selvagens na Polinésia que lhe confiaram rituais secretos de origem diabólica.

Esse seria o segredo por trás de sua longevidade, pois alguns supõem que o Capitão passou, e muito, dos cem anos. Para outros, isso é um exagero e ele não seria mais que um octogenário. 

Discute-se aos sussurros o preço que o velho lobo do mar teria pago para viver tanto tempo. Garantem alguns que o astuto Capitão teria vendido a alma ao diabo em troca de imortalidade, mas que achou uma forma de enganá-lo. A punição destinada a ele no inferno será tão terrível que ele não ousa morrer e descobrir o que o aguarda.

Além da vida extremamente longa, o Velho Ruim teria aprendido portentos de feitiçaria, convivendo entre os ilhéus dos mares do sul. Há testemunhos que dizem tê-lo visto com amuletos e patuás místicos, além de tatuagens intrincadas desenhadas em sua pele enrugada. As estátuas em seu quintal suscitam dúvidas, se seriam meras carrancas ou ídolos pagãos de deuses e demônios marinhos.

Nesse contexto, falam ainda de sua bizarra coleção de garrafas azuladas que emitem um tilintar como se respondessem aos solilóquios do velho. Quem assistiu a essas entusiasmadas conversas se reserva ao direito de dizer que o Velho Ruim se refere a cada vasilhame incongruente por um nome próprio. Outros vão mais longe afirmando que os nomes correspondem ao de antigos companheiros do velho em seus dias de capitão.   

Também há rumores sobre o notável vigor do Terrível Ancião, de uma centelha de energia que trai a imagem de que ele seria um velho frágil em idade avançada. Ele não faz questão de demonstrar tal coisa, mas para alguns seu andar manquitolante e modos débeis são um engodo. O mesmo pacto blasfemo que lhe conferiu tantos anos de vida o teriam abençoado com uma saúde de ferro. Não há doença ou moléstia que o tenha acometido e seus pés jamais pisaram num hospital.

Poucos anos atrás, foi comentado à boca miúda que o Ancião atraiu a atenção de três notórios criminosos de Kingsport. Estes teriam ouvido as histórias sobre o tesouro guardado pelo velho capitão em algum lugar de sua casa decrépita. Pensavam que seria fácil adentrar a mansão situada na isolada Rua da Água e aliviar o velho de suas riquezas. Pensaram errado!

Lenda ou boato, fato é que os três ladrões, todos eles bandidos infames no cais do porto, gente da pior laia, sumiram misteriosamente. Deles não se soube mais e provável que jamais há de se saber.

Para o bem ou para o mal, o velho Capitão Holt é tratado como uma espécie de indesejável celebridade em Kingsport. Não há ninguém que não o conheça ou não tenha alguma história a contar sobre ele. Essas fofocas de viúvas parecem ser um passatempo comum entre os moradores do balneário. Mas apesar de sua fama, não são muitos os residentes que visitaram a casa e tiveram um dedo de prosa com seu vetusto habitante.

É sabido que ele costuma selecionar sua companhia e que tem por hábito afastar os curiosos. Não é estranho, contudo que ele receba forasteiros e visitantes que vão até ele com o intuito de ouvir seu aconselhamento. 

O Capitão Holt parece ser um conhecedor profundo de antigos mistérios tanto de terra quanto de mar. Quando está disposto a compartilhar seu saber, ele se mostra uma valiosa fonte de informações, convidando indivíduos para ter com ele um convescote. As reuniões ocorrem em sua casa, diante da coleção de garrafas pousada sobre a mesa na sala. Quando não quer ser incomodado, ele expulsa aos berros os que batem sua porta. Os que insistem, descobrem que o Velho Ruim, dado a excentricidades, pode ser bastante irascível e até belicoso em seus modos.

Um dos temas favoritos dele são os sonhos, afinal, o cenário idílico de Kinsport favorece experiências oníricas bastante reais. Ou assim dizem! Quem visita o balneário relata ser arrebatado por sonhos (e também pesadelos) muito reais. Os antigos culpam as névoas oceânicas que proporcionam esse sono agitado, mas quem pode saber ao certo?

O Capitão Holt é um personagem único, um indivíduo peculiar que se converteu em parte do folclore de Kingsport. 

A VERDADE

Por vezes lendas não passam de uma coleção de histórias construídas sobre o disse me disse do exagero. Um rumor é aumentado, acrescido de boatos infundados e tolices sem nexo. Contudo, há casos em que as histórias não apenas têm base em fato, mas são dolorosamente reais. E isso é verdade no que diz respeito ao Capital Richard Holt de Kinsgsport.

Por mais incríveis que possam ser os relatos sobre sua origem, quase todas as histórias são verdadeiras.

Holt tem 125 anos de idade e provavelmente viverá por muitos outros anos. Sua longevidade, como muitos supõem decorre do sobrenatural que lhe agraciou também com força e vitalidade.

Não foi um pacto diabólico que lhe conferiu esses predicados, mas a feitiçaria dos mitos ancestrais. Desde jovem, o Capitão temia as limitações da idade avançada: perder o vigor e descobriu-se frágil, eram perspectivas que o atormentavam.

Nos Mares do Sul, Holt descobriu a solução. Ao visitar tribos isoladas famosas pela longevidade de seus membros, ele desejou conhecer seus segredos. Um feiticeiro que afirmava ter mais de 300 anos aceitou compartilhar como tal milagre era possível. 

O método envolvia a obtenção de energia vital através de um feitiço pérfido que drena a vida de alguém e a passa para o utilizador. Quanto mais jovem e forte a vítima, mais energia é transmitida para o realizador em detrimento do alvo. Alguém drenado até o limite teria uma existência miserável dali em diante, podendo até ser completamente exaurido, morrendo no processo. Em contrapartida, o realizador ganha saúde e longevidade.

O processo embora funcional, tem suas limitações. O feitiço não confere juventude eterna, a pessoa continua a envelhecer ainda que não possa morrer por idade avançada, outrossim, ele recebe energia vital que lhe garante saúde plena.

Além do segredo da longevidade, o Velho conhece um feitiço aterrador que lhe permite extrair a alma imortal (ou essência) e capturá-la em garrafas. Em algum momento de seu comando como capitão, Holt teria enfrentado uma tentativa de motim e resolvido a questão removendo a alma dos amotinados e as lançando em garrafas de cristal azulado. O feitiço lhe garante a faculdade de se comunicar com as vítimas feitas prisioneiras. O mesmo encantamento lhe permite libertar temporariamente essas almas e forçá-las a defender sua casa. Uma palavra de poder, conhecida apenas pelo Velho Ruim, permite a ele conjurar esses espíritos até três vezes. Eles se manifestam como bem preservados cadáveres de marujos portando facas, ganchos e porretes.

Embora seja um homem sinistro e cheio de histórias perturbadoras, o Capitão Richard Holt não é necessariamente maligno. Dono de um senso de justiça único e de um código de conduta particular, ele pode ser surpreendentemente honrado. Através da conversa com seus marujos capturados ele parece ter aprendido muito sobre os segredos da vida após a morte e sobre os sonhos.

Aqueles que conseguem convencer o Terrível Ancião a revelar alguns desses segredos, podem ter um aliado valioso. Por outro lado, qualquer tentativa de logro, em especial no que diz respeito aos seus tesouros (tanto seu ouro quanto suas garrafas) atrai sua ira, e essa faz jus às lendas que o cercam.