Por V(...)
Eu não peço que acreditem na história a seguir, mas foi assim que aconteceu. E é assim que eu lembro...
1984
Quando eu tinha nove anos de idade havia um programa de televisão que eu gostava muito. Eles tinham atores vestidos de animais com pinturas coloridas no rosto e fantasias: Sr. Urso, Sr. Zebra, Sr. Tigre, esse tipo de coisa. Entre um bloco e outro havia vídeos educacionais e músicas bobas do tipo que crianças adoram ouvir e depois cantar repetidamente até enlouquecer os adultos.
Eu não vou dizer o nome do programa, em parte por que o programa era bom e nada do que aconteceu, no fim das contas, foi culpa deles. Para evitar qualquer constrangimento, vou chamar o programa simplesmente de "O Show de M".
"O Show de M" passou por anos e anos na televisão e eu assisti ao longo de toda minha infância. Quando eu voltava do colégio, corria para sentar em frente da televisão com minha irmã mais velha L(...) e minha amiga, B(...) que morava na casa ao lado.
Aquele era o nosso pequeno ritual.
Todo dia, nós três sentávamos na frente da televisão, com doces que nossas mães haviam comprado, biscoitos, copos de leite ou outras guloseimas. Nossos olhos sequer piscavam! O entretenimento era total, quebrado apenas pelos comerciais. Nos intervalos aproveitávamos para conversar sobre aqueles assuntos que na nossa idade pareciam tão importantes: deveres de casa, video-games, amigos do colégio...
Eu lembro daquele dia em especial.
Era uma sexta feira quente de verão, L(...) voltou do colégio dizendo que as outras crianças falavam a respeito de um concurso sobre "O Show de M". Era algo que ela havia ouvido das outras meninas de sua turma. Para participar, as crianças tinham de responder perguntas sobre o programa, os personagens e sobre si mesmas. As melhores respostas concorriam a um prêmio especial, a chance de viajar com a família até onde o programa era gravado e participar dele.
Mas a melhor parte é que todas as crianças que escrevessem uma carta e enviassem para um determinado endereço se tornariam membros do "Fã Clube do Show de M". Naquele mesmo dia, depois de assistir ao Show de M, nós três arrancamos folhas de cadernos e respondemos as perguntas. As perguntas eram bastante difíceis. Eles queriam saber detalhes a respeito de programas antigos, e sem L(...) para nos ajudar, B(...) e eu jamais conseguiríamos responder todas aquelas perguntas. Algumas questões eram estranhas: queriam saber idade, cor de cabelos e olhos, altura, peso, coisas assim... mas nós não nos importamos! Qual o seu personagem favorito? O meu a Sra. Zebra, de B(...), o Sr, Tigre. Tudo aquilo parecia perfeitamente natural, até mesmo o pedido para que fosse enviada uma fotografia recente.
L(...) conseguiu envelopes e selos na gaveta do escritório onde essas coisas ficavam guardadas. Cada um de nós preencheu as respostas e colocou a folha em um envelope com nossos nomes, um telefone para contato e as fotografias que conseguimos surrupiar de álbuns de foto. A minha era do Natal passado.
Enviamos as cartas no dia seguinte, colocamos em uma caixa de correio perto do colégio.
Dali em diante, todos os dias corríamos para casa ansiosos para saber se nossos nomes haviam sido aceitos como membros do Fã Clube do Show de M. As crianças no colégio mencionavam que aqueles aceitos no clube recebiam um distintivo especial. Estranho, pois todos falavam a respeito, mas ninguém realmente tinha um desses distintivos para mostrar. Era sempre o amigo de um amigo que havia tido a sorte de receber o seu.
Meses se passaram e aos poucos o interesse foi diminuindo. Ainda checávamos o que o correio trazia, mas L(...) e eu já não estávamos mais tão empolgados. B(...) no entanto, continuava falando a respeito e sempre conferia a caixa de correios na esperança de que seu distintivo chegaria. B(...) e eu continuávamos assistindo diariamente, mas o "Show de M" já não interessava tanto à minha irmã, três anos mais velha que eu.
Foi perto da primavera quando finalmente tivemos notícias que já nem esperávamos mais receber. L(...) foi quem encontrou a carta, um pequeno envelope amarelo que havia chegado aquela manhã com o meu nome impresso. Eu corri para meu quarto e abri o envelope fino tomando cuidado para não rasgar o conteúdo. Dentro havia uma folha onde se lia:
"Bem Vindo ao Fã Clube oficial do Show de M"
Não havia muitos detalhes, apenas um folheto fino com boas vindas e uma pequena carteira plastificada com meu nome e o símbolo do programa. Abaixo disso, haviam as palavras:
"Membro número #2903".
Eu não poderia estar mais feliz, aquilo era incrível. B(...) recebeu seu envelope naquele mesmo dia, seus olhos brilhavam de felicidade por ser o "Membro #2899".
L(...) apesar de não assistir mais ao programa, ficou chateada por não receber a sua carteira. "Talvez eles soubessem que ela não assistia mais o programa e por isso não havia recebido", especulou B(...) a respeito. Seja como for, nós estávamos felizes demais.
Dali em diante, toda sexta feira, chegava pelo correio uma carta endereçada aos "Membros do Fã-Clube". Eram fotos, anedotas, jogos de sete erros, ligar pontos e histórias dos personagens do Show de M. Os folhetos pediam que as crianças falassem a respeito do Clube para outras crianças, compartilhassem o endereço e as perguntas necessárias para fazer a inscrição e se tornar membros do Fã-Clube.
Alguns meses mais tarde, um dos folhetos mencionou brevemente algo chamado "Visita do Show de M à sua cidade" sem dar muitos detalhes. Eu e B(...), é claro, ficamos muito empolgados, mas não havia informações, apenas a promessa de que em breve explicariam do que se tratava.
Foi no começo de Junho que recebemos uma nova correspondência dessa vez com dois folhetos dentro do envelope. O primeiro era o de sempre: fotos, brincadeiras e propagandas, mas o segundo fez com que ficássemos em estado de graça. Era um convite especial para membros do Fã Clube. O folheto dizia que um ônibus especial estaria na cidade com os personagens do Show de M. Essa seria a oportunidade dos membros do Fã Clube conhecerem os personagens do show e se tornarem MEMBROS ESPECIAIS (essas palavras estavam gravadas em dourado).
O ônibus chegaria no domingo e todos os que receberam o convite poderiam aparecer em um determinado endereço acompanhados de um responsável. Nós ficamos incrivelmente animados! Era como um sonho se realizando!
Tenha em mente que isso aconteceu nos anos 80. Não existia muita preocupação dos pais a respeito do que seus filhos recebiam. Meus pais, é claro, perguntaram a respeito da correspondência, mas depois de ver o conteúdo dos dois primeiros envelopes com os folhetos do programa, perderam o interesse sobre o assunto. Para todos os efeitos, era apenas aquele programa que as crianças tanto gostavam de assistir. Isso também aconteceu antes de todos terem acesso a computadores. Acho que não havia tanta maldade na mente das pessoas.
O folheto dizia que os membros interessados em participar da visita deveriam ir a um determinado endereço às duas horas da tarde. Lá encontrariam os personagens principais do Show de M que os receberiam com jogos e brincadeiras e os presenteariam com as carteiras douradas de membros especiais.
Os nove dias que se seguiram até o domingo foram os mais longos da minha vida. B(...) e eu planejávamos o que iríamos fazer e nossas mães concordaram em nos levar. S(...) não havia sido convidada e ficou irritada. Como não havia recebido seu cartão, tinha dito "não querer ouvir mais nada a respeito sobre esse programa estúpido".
L(..) provavelmente estava ficando velha demais para o Show de M. Talvez por isso, nós imaginamos, ela não havia recebido seu cartão de sócio. O clube era para crianças! B(...) dizia que ia tirar fotografias com os personagens e conversar com cada um deles. Estávamos alegres demais com tudo aquilo.
No sábado, L(...) foi convidada para uma festa na casa de uma colega do colégio. Era uma daquelas festas que meninas costumavam participar, em que ficavam acordadas até de madrugada fofocando e falando bobagem. Minha mãe deveria buscar L(...) no dia seguinte antes do meio dia.
No domingo, o grande dia, B(...) estava muito ansiosa e tocou a campainha da minha casa. Sua mãe já estava se arrumando e ela queria saber se estava tudo certo para irmos. Logo a seguir o telefone tocou e ouvi a minha mãe atender. Era L(...) perguntando se podia ser apanhada um pouco mais tarde do que o combinado. Aquilo me irritou! Minha irmã estava fazendo de propósito, queria que eu perdesse a oportunidade de visitar o Show de M.
A mãe de B(...) conversou com minha mãe e garantiu que não haveria problema nenhum de me levar junto. Minha mãe pensou por um instante, e então disse não. Era muito gentileza, mas ela preferia me levar até o Show de M pessoalmente. Eu não podia acreditar, era muito injusto! Se eu chegasse depois do horário, eu perderia as brincadeiras. Aquilo podia colocar tudo a perder! Eu reclamei e quase chorei, mas minha mãe estava irredutível. Nós pegaríamos L(...) na casa da amiga e depois iríamos direto para o Show de M. Quando protestei mais uma vez, ela deu aquele temido ultimato que os pais costumam dar para encerrar um assunto: "É isso, ou você não vai a lugar nenhum hoje!"
Eu tive de me contentar com aquilo. Assisti o carro da mãe de B(...) sair da garagem e ela me acenou da janela traseira. E eu quase chorei.
Finalmente às duas, minha mãe foi buscar L(...) e depois me levou direto até o endereço combinado. Eu estava tão irritado que nem olhei para minha irmã. Eram 14:35 quando chegamos ao local. Era um grande estacionamento, haviam muitas pessoas por lá, e nós andamos na direção deles. Eu não vi nenhum ônibus e nenhum dos personagens do Show de M, apenas aquelas pessoas, a maioria delas pais, reunidos em um círculo, alguns pareciam preocupados, outros simplesmente riam e conversavam entre si.
Minha mãe avistou a mãe de B(...), e nós andamos até ela. A mãe de B(...) era um dos pais que estavam preocupados. Ela nos contou que o ônibus do Show de M estava lá, junto com vários dos personagens do programa, todos eles vestindo roupas coloridas de animais: tigres, zebras, antílopes e ursos. Era um ônibus grande de turismo com uma enorme símbolo do programa pintado na lateral. Eles distribuíram doces para as crianças e um dos atores, que estava vestido de tigre, explicou aos pais que seria feita uma filmagem dentro do veículo em movimento. O ônibus levaria as crianças para um lugar onde algumas cenas de um programa especial seriam filmadas. As crianças seriam levadas primeiro para adiantar as coisas e um segundo ônibus, que já estava à caminho, levaria os pais em seguida.
Alguns ficaram reticentes, mas as crianças estavam muito ansiosas e depois que três ou quatro adultos que estavam presentes (todos assumiram que eram pais) concordaram em ir junto com elas, os demais se acalmaram e acabaram concordando.
"O segundo ônibus estava vindo, não havia com que se preocupar", certo?
Quando eu ouvi isso, fiquei feliz, ao menos eu ainda poderia participar da filmagem no local.
Eu puxei a mão da minha mãe para que fôssemos os primeiros na fila que já se formava para embarcar no ônibus. Eu não dei muita atenção para a expressão preocupada da mãe de B(...) enquanto ela falava com a minha mãe. Os minutos passaram e nada, até que alguém resolveu chamar a polícia.
O ônibus estava demorando demais. De fato, ele nunca apareceu.
No programa do Show de M de segunda feira um dos personagens subiu ao palco e pediu de maneira muito séria que as crianças que estavam assistindo chamassem papais e mamães para assistir aquele bloco. Minha mãe já estava sentada ao nosso lado, com meu pai. Os dois estavam de mãos dadas, dedos entrelaçados tão apertados que os nós ficavam brancos.
O personagem explicou que o Show de M não possuía um Fã Clube e que não enviava para as crianças correspondência.
Nunca enviou!
Naquela semana, a mãe de B(...) chorou muito e eu podia ouvir da nossa casa seus lamentos. Policiais entravam e saiam, o padre veio e algumas pessoas que depois eu soube, eram parentes de fora da cidade, também passaram uns dias lá.
Ninguém me contava nada, mas eu estava certo de que B(...) estava bem!
Eu achava que ela estava se divertindo tanto que não queria voltar.
Ela deveria estar se divertindo muito, pois nunca voltou!
A mãe de B(...) chorou ainda mais quando, no mês seguinte, um pacote chegou endereçado à sua filhinha. Dentro desse pacote havia um envelope contendo uma carteira de identidade do Fã Clube do Show de M.
Dourada como prometido!
Ela dizia que B(...) era agora um "MEMBRO ESPECIAL".
O Pacote sem remetente continha também uma fita de vídeo. Ela tinha apenas um minuto de duração e mostrava B(...) no que parecia ser um set de filmagens do Show de M. Usava a mesma roupa daquele domingo quando tocou a campainha da minha casa ansiosa para ir ao encontro.
No vídeo, B(...) sorria e um ator vestindo uma roupa de tigre branco permanecia em silêncio ao seu lado, segurando sua mão.
"Oi mãe, eu estou muito feliz aqui!" ela dizia "O Sr. Tigre pediu que eu dissesse que estou feliz! Pena que os outros não conseguiram chegar a tempo. Eu queria que eles também estivessem aqui! Comigo, o Senhor Tigre e os outros animais"