terça-feira, 12 de agosto de 2025

Invocação da Bruxa - Resenha do romance clássico de Fritz Leiber pela Darkside


Uma das melhores coisas sobre escrever resenhas é ter a chance de conhecer mais a fundo a obra de escritores consagrados. 

Tudo bem, Fritz Leiber não é lá muito conhecido no Brasil e muitos provavelmente dirão nunca ter ouvido falar dele, mas ele produziu material de primeira. Nos anos 30 e 40 suas histórias de horror sobrenatural estavam nas principais Pulp Magazines do período. Leiber também transitou por algum tempo no universo dos Mythos, explorando com maestria o horror de deuses ancestrais, cultos fanáticos e horrores inomináveis. Nas histórias de Fritz Leiber não faltavam castelos góticos, tumbas sobrenaturais e heróis destemidos que enfrentavam monstros tentaculares. Sua obra mais famosa no entanto foi a série Lankmar, agraciada com o Hugo Awards. Na sua ambientação a dupla de aventureiros Fafhrd e Grey Mouser exploravam o submundo de uma cidade fantástica enfrentando feiticeiros e ladrões rivais. Lankmar ajudou a definir a Fantasia e sedimentou o subgênero Espada e Feitiçaria

Eu sempre gostei do estilo de Leiber e por isso fiquei muito interessado na notícia de que um dos seus livros mais famosos, Invocação da Bruxa (Conjuring Wife) seria publicado no Brasil. A edição caprichada sai pela Editora Darkside corrigindo o grande absurdo que era esse romance jamais ter sido traduzido por aqui. 

Invocação da Bruxa é um clássico do terror que foi adaptado nada menos do que três vezes para o cinema (em 1954, 1962 e 1980). É também um conto sobre a linha nebulosa que conecta o mundo real com os reinos misteriosos do oculto. Eu fiquei interessado, sobretudo porque "Burn Witch! Burn" a versão dos anos 60, é um excelente filme que foi inspirado nesse romance. O autor alterna com familiaridade o universo do sobrenatural, misturando-o com o cotidiano suburbano dos Estados Unidos dos anos 1950.


Na trama, Norman Saylor é um racional professor universitário que tem uma vida bastante comum ao lado de sua bela esposa Tansy, ao menos até ele fazer uma descoberta inusitada. Norman descobre estranhos objetos que eram mantidos em segredo na penteadeira da esposa: são potes com terra de cemitério, ingredientes exóticos, talismãs mágicos e relíquias bizarras guardadas em gavetas trancadas. Tansy pega o marido curioso em flagrante, e a discussão sobre o que são aquelas coisas a faz admitir algo inesperado. Ela não apenas é uma praticante de feitiçaria, como sempre foi uma Bruxa. Mais do que isso, ela usou magia negra para proteger o marido de maldições intentadas por outras bruxas. 

Sem acreditar na explicação de Tansy, ele convence a esposa a queimar os objetos e se livrar daquela coleção de tranqueiras supersticiosas. Mas será que a racionalidade de Norman conseguirá explicar as coisas estranhas que começam a acontecer dali em diante? Sua vida e carreira parecem ser afetadas por incidentes inexplicáveis. Isso sem falar de uma cabala maligna que parece planejar sua morte. Ele estará disposto a aceitar que os talentos de Tansy são a única que pode salvá-lo dessa ameaça sobrenatural?  

Invocação da Bruxa é um romance de terror interessante pelo fato de não parecer um romance de terror. O livro parece se concentrar mais no impacto psicológico e social do ocultismo do que nas forças sobrenaturais em si. Norman é um professor de sociologia, um típico homem de ciência que não crê no paranormal. Ele mantém uma convicção inabalável de que a magia reside apenas na mente fraca e supersticiosa dos tolos.


Ao longo do romance, Norman tenta racionalizar cada incidente perturbador sem dar o braço à torcer. A cena que melhor exemplifica seu ceticismo se passa na sala de estar da casa dos Saylor. Tansy fica cada vez mais angustiada com a ideia de que feiticeiras estão usando magia negra contra seu marido desprotegido pela remoção de seus feitiços de proteção. Ela então recorre a um intrincado ritual para salvá-lo de uma entidade aterrorizante que o persegue com intento assassino. 

A teimosa do protagonista em reconhecer os poderes agindo nas sombras poderia ser irritante, mas é ela que nos conecta a um dos temas centrais da trama: a suspensão de descrença. Se fôssemos colocados em uma situação parecida, será que seríamos capazes de acreditar no inexplicável? Ou assim como Norman buscaríamos, quaisquer explicações mais razoáveis? 

O romance aborda outra noção interessante. No mundo de Invocação da Bruxa, muitas mulheres possuem sensibilidade para o mundo oculto e aprendem como manipular essas forças passando o conhecimento de mãe para filha. Elas aprendem a defender suas famílias de ataques mágicos de rivais e a proteger seus maridos do mal que incide sobre eles. Ao mesmo tempo há feiticeiras inescrupulosas que usam os poderes para o mal. Há todo um mundo invisível e perigoso que os homens sequer podem imaginar. Eventualmente, Norman e Tansy terão de aceitar o ponto de vista um do outro, respeitar suas crenças e se comprometer a trabalhar juntos se quiserem escapar da ameaça que os cerca.


Leiber conta a história em alguns momentos como se fosse um romance de relacionamento, mas o suspense e a estranheza estão sempre à espreita abaixo da superfície de aparente normalidade. Os verdadeiros horrores são mais insinuados do que mostrados abertamente. A cabala é ardilosa, agindo de forma astuta se aproveitando da incredulidade de Norman para fazer dele um alvo. O leitor da mesma maneira é levado a duvidar se as ameaças são reais ou se não passam de simples superstições.

Fritz Leiber escreve bem, mas seu estilo detalhista pode soar excessivamente rebuscado para alguns leitores. Eu francamente não me importo, ele narra a trama com maestria. Os personagens são interessantes e você se importa com eles e as situações compelem o leitor a ler sem parar querendo saber o que vai acontecer em seguida.  

Invocação da Bruxa não é uma história aterrorizante de Horror, não se trata de um Folk Horror ou algo do gênero, como nos habituamos a encontrar em histórias centradas em magia negra. Mesmo assim, a trama é decididamente atraente e vale a pena ler.

FICHA TÉCNICA:

Invocação da Bruxa (Conjuring Wife), 1953
Editora DarkSide
Tradução de Eduardo Castro
Ano de Lançamento: 2025
190 páginas

Página oficial da Darkside: 



sábado, 9 de agosto de 2025

Dicionário do Mythos: Letra G de Gof'nn Hupadgh de Shub-Niggurath


GOF'NN HUPADGH SHUB-NIGGURATH

Os seguidores de Shub-Niggurath, a Cabra com mil filhos, estão entre os mais fanáticos e fiéis serviçais dos Deuses Ancestrais. Sua devoção é inquebrantável e eles rastejam aos pés da abominável Deusa da Fertilidade desejando e ansiando pelo seu favor. Uma das maiores dádivas da Deusa aos seus serviçais de valor é transformá-los no que se convencionou chamar Gof'nn Hupadgh

O termo se refere a "Favorito da Deusa", em uma corruptela gaélica usada na maior parte da Europa, sendo possível que o nome tenha variações em outras partes do mundo. No Sudeste asiático eles são chamados Giff'n Vulapendi, na África Subsaariana de Fillun Cachek e na Península Ibérica Cabrinhas da Deusa (é possível até que a Cabra Cabriola do Brasil seja uma referência a esses seres).

Um Gof'nn Hupadgh é criado apenas em rituais onde Shub-Niggurath é invocada para abençoar as celebrações com sua presença. Nessas raras cerimônias, cultistas especialmente escolhidos são levados diante da entidade e apresentados a ela. Recebem então a honra de beber o leite negro da deusa que verte diretamente de seus muitos úberes. Em um transe alucinógeno induzido pela substância eles dançam em total abandono ao redor da Deusa enquanto cânticos são entoados pela congregação. No ápice do ritual, se a Deusa se mostrar satisfeita com a performance, Ela abre uma enorme e cavernosa vagina permitindo a entrada dos cultistas. Estes são então mergulhados em uma infinidade de sucos e secreções que operam uma transformação corporal. Em seguida eles são expelidos por um movimento de contração já transmogrifados em um novo ser.

Nem todos sobrevivem ao processo, mas aqueles que resistem emergem como Gof'nn Hupadgh. Não há dois destes seres idênticos já que variedade é uma das dádivas da Deusa, contudo as características marcantes dessas criaturas incluem chifres, cascos fendidos nos pés, garras nos dedos, olhos amarelados com a íris alongada e o surgimento de abundante pelagem crespa por todo corpo. Há ainda outras características que podem tornar o indivíduo em algo totalmente inumano. A mudança permanente também "abençoa" o indivíduo com virtual imortalidade.

Os Gof'nn Hupadagh são considerados como indivíduos "tocados pela deusa" e doravante adorados e reverenciados com tal. É possível que eles recebam instruções para expandir o culto e criar novas ramificações, interagindo em uma base limitada com humanos. Muitos deles se convertem em profetas, sacerdotes ou líderes do Culto, recebendo oferendas, sacrifícios e o direito de escolher companheiros para reprodução. Sua prole nasce com características humanas, mas desenvolvem com o tempo enervantes feições caprinas. Em face das profundas alterações corpóreas, os Gof'nn Hapadgh costumam ficar ocultos em suas comunidades, revelando sua forma grotesca apenas nos rituais para o regozijo de seus seguidores.

É possível que tenha sido o avistamento de tais criaturas que inspirou muitas lendas clássicas sobre faunos, sátiros, dríades, curupiras e outras criaturas fantásticas que habitam as matas primordiais. Os Cultos dedicados a Shub-Niggurath sempre consideraram esses seres como semideuses e é possível que eles sejam os "milhares de filhos da Cabra Negra" aludidos no epíteto da Deusa. Os Gof'nn Hupadagh são capazes de falar o idioma das crias Negras e podem contatar Shub-Niggurath através de visões.

No decrépito vilarejo de Goatswood, no Vale de Severn, Inglaterra, há relatos de uma grande Cabala de cultistas de Shub-Niggurath presidida por um venerável conselho de Gof'nn Hupadgh. Alguns destes são extremamente velhos, remontando segundo rumores aos tempos da antiga Roma. Tais indivíduos teriam extenso conhecimento druídico e seriam Arquitetos de planos cuja frutificação dará ensejo ao reinado terreno de Shub-Niggurath.

A grotesca forma dos Gof'nn Hupadgh pode ter dado origem às lendas de sátiros.

Nunca dois desses seres são idênticos.

A concepção através da Cabra Negra

O Unausprachlichen Kulten (Cultos Inomináveis) menciona o nascimento dos Filhos da Cabra.

Bônus: GOATSWOOD

Vilarejo na região do Vale de Severn, ao sudoeste de Brichester. Bem como sua vizinha Temphill, ela foi fundada por templários que retornaram da Cruzadas no início do século XIV. O assentamento, no entanto era muito mais antigo remontando ao menos ao período romano com legionários descrevendo a região e seus estranhos habitantes.

Os povoados adjacentes tradicionalmente evitam Goatswood, uma vez que visitantes supostamente desaparecem sem deixar vestígios. Muitos dos moradores são membros de cultos religiosos centrados em Deusas Caprinas dedicadas a Fecundidade. Em Goatswood ocorrem rituais sagrados diante de um artefato de vidro conhecido como as Lentes da Lua.

As densas florestas que cercam Goatswood também são tidas como assombradas. No século XVII uma cabala de bruxas se encontrava em uma clareira nessas matas fechadas. Elas se reuniam ao redor de uma pedra que alegadamente teria se precipitado dos céus. Com o tempo, os habitantes do Vale ficaram preocupados com as atividades ímpias praticadas e pediram ao infame Caçador de Bruxas Matthew Hopkins  que extirpasse o culto. 

De alguma forma, entretanto, Goatswood perseverou diante dessa e de outras provações. Segundo boatos, as forças armadas britânicas realizaram uma operação militar acobertada que destruiu o vilarejo em 1968. Na ocasião foram realizadas apreensões e captura de indivíduos suspeitos de atividades bizarras. O rumor jamais foi confirmado e muitos afirmam que Goatswood ainda existe. 

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Covil Diabólico - O Aterrorizante Caso do Demônio de Brownsville Road


Não há nada mais assustador do que uma assombração agindo sem controle. Estar à mercê de forças sobrenaturais invisíveis que não se pode tocar ou mesmo compreender pode ser um evento chocante e transformador. A sensação é similar a um caso grave de stress pós-traumático (PTS), no qual frustração, medo e confusão tornam a vida daqueles expostos, num verdadeiro inferno. 

Ainda mais aterrorizantes são os casos que vão além de mera assombração, abrangendo forças malévolas de natureza decididamente demoníaca. Quando o mal em estado puro visita uma casa, sua marca pode se manter por muito tempo. Um caso assim ocorreu em uma cidade tranquila da Pensilvânia, onde uma família teve sua vida pacífica naquela que seria a casa dos seus sonhos transformada em um pesadelo, atormentada por um demônio cruel que parecia ter rastejado de algum reino infernal.

Em dezembro de 1988, Bob Cranmer e sua família compraram o lar dos seus sonhos, uma bela casa vitoriana de 105 anos em um bairro tranquilo na Brownsville Road, 3406, em Pittsburgh, Pensilvânia. Bob há muito desejava morar numa casa semelhante e quando conseguiu comprá-la pagou um valor incrivelmente atraente. De fato o vendedor aceitou a oferta sem negociar ou barganhar o preço. Não havia nenhum lance e, ao que tudo indica, todos ficaram muito animados quando finalmente viram a casa. Era quase bom demais para ser verdade, e talvez fosse, pois logo ficaria claro que havia algo muito errado com o lugar. A história evoluiria para uma experiência perigosa de terror sobrenatural como ninguém poderia imaginar.

De acordo com Cranmer, os incidentes estranhos começaram antes mesmo da família se mudar para a casa. Seu filho de cinco anos chorava sem parar sempre que eles se aproximavam da casa para trazer seus móveis e objetos. Na época, Bob havia considerado que não era nada de mais, mas as coisas ficaram cada vez mais bizarras após a mudança. Tudo começou com uma sensação inabalável de estar sendo observado o tempo todo e um pressentimento difícil de explicar. Era como se algo simplesmente não estivesse certo. A casa parecia, à primeira vista, normal, mas havia a sensação de que algo crescia e se agitava sob a bela fachada, e todos sentiam isso. Bob Cranmer diria sobre esse pressentimento estranho e sinistro:

"Desde o início, minha esposa Lea e eu tivemos a sensação de que não estávamos sozinhos naquela casa, que estávamos sendo observados por alguém ou por alguma coisa. Lembro-me dessa sensação com muita clareza. Mas por achar que era ridículo não comentávamos um com o outro preferindo guardar segredo. Mas era inegável que sentimo-nos cercados por alguma coisa antiga e maligna, como se fôssemos apenas "visitantes temporários", tolerados, que eventualmente seriam expulsos da casa."

Essa situação logo evoluiu para atividade paranormal de fato, que começou de forma bastante inócua, com luzes acendendo e apagando sozinhas, objetos estranhamente deslocados e outras pequenas esquisitices, como uma corda de luminária sempre encontrada enrolada em vez de pendurada. Era estranho, mas aquelas pequenas anomalias poderiam ser atribuídas à imaginação, exceto pelo fato de continuarem ocorrendo com incrível frequência. 


Mas a coisa se tornou realmente apavorante quando as meras estranhezas se intensificavam. De repente havia batidas fortes no assoalho e nas paredes, além de passos pesados percorrendo os corredores da casa quando ninguém estava lá. Ainda mais assustadores eram os casos em que itens eram encontrados amassados ou quebrados, incluindo um crucifixo torto e deformado que foi encontrado jogado no chão.

Além disso, parecia haver algo muito errado com um cômodo da casa que a família apelidou de "Quarto Azul", assim chamado porque tinha papel de parede e tapete dessa cor. As crianças que dormiam lá, reclamavam constantemente de um frio excessivo e de um cheiro desagradável de carne podre empesteando o ar. Elas sentiam como se algo estivesse lá constantemente com elas. Espreitando nos cantos e olhando para elas com um misto de rancor e cobiça. A força sobrenatural se fazia sentir sempre que uma das crianças ficava sozinha e o medo era palpável. 

A coisa chegou ao ponto que as crianças se recusavam terminantemente a dormir no quarto, ou às vezes até mesmo a chegar perto dele, reclamando que havia algo ruim lá dentro. A princípio era uma presença invisível, mas o que quer que fosse, essa coisa começou a se revelar como uma entidade sombria envolta no que parecia uma névoa com um pronunciado fedor de podridão.

"Era o mal! Eu não sei explicar, mas consigo dizer que era algo mal!" diz Bob Cranmer sobre o horrendo inquilino que compartilhava de sua casa. "É difícil de categorizar esse sentimento. Talvez seja como uma sensação de ser odiado e de se estar sob constante ameaça. Era um ódio que nos deixava aterrorizados".

Um dos encontros mais assustadores com essa estranha aparição ocorreu quando o genro de Cranmer os visitou certa noite. Enquanto ocupava  o quarto azul, ele viu uma enorme sombra pairando sobre o teto. Ao ser percebida, a sombra escorreu pela parede entrando em um vão escuro onde desapareceu. A experiência foi tão traumática que a testemunha saiu da casa e disse que não retornaria sob nenhuma circunstância. Em outra ocasião, o filho de Cranmer viu a mesma entidade e começou a chorar sem parar. A criança inconsolável gritava: "Monstro, o monstro vai me pegar! Ele estava olhando pra mim". 

As aparições se multiplicavam com a sombra se deixando perceber pelos moradores. A presença se manifestava repetidas vezes pairando sobre as pessoas ou vagando sobre a parede como um miasma maligno feito de fumaça escura e vapor fétido. Essa situação continuou por meses até que ela se tornou ainda mais ousada e violenta. Antes ela ficava contida no quarto azul, mas agora aparecia em outras áreas da casa e podia até ser ouvida rastejando pelas paredes e vãos. O cheiro ocre que a acompanhava era nauseante e todos sentiam aquela sensação de ameaça.


O terror físico teve inicio quando membros da família começaram a sofrer ataques ferozes de mãos invisíveis, especialmente nas proximidades do Quarto Azul. As investidas deixavam arranhões e hematomas arroxeados na pele. Uma das crianças foi empurrada e se chocou contra a parede quebrando dois dentes. Lea, a esposa de Bob, foi puxada com tanta força que teve uma torção no pulso. Em um dos ataques mais medonhos, uma das crianças terminou com marcas claras de mordidas no estômago.

A princípio Cranmer acreditava se tratar de um fantasma, mas logo ele se convenceu que era algo muito pior. Um amigo sugeriu que o fedor constante na casa era de enxofre e que aquela era a marca deixada por mas um Demônio. A família tentava ler a Bíblia e pendurar imagens sacras para afastar a entidade, mas isso pareceu deixá-la ainda mais furiosa. Cranmer afirma que ela arrancava a Bíblia de suas mãos, arranhava seu pescoço, destruía rosários, torcia e deformava crucifixos  Ela também parecia detestar completamente o filme "A Paixão de Cristo", desligando a TV e fazendo barulho sempre que o filme passava na televisão. Em certa ocasião, uma pesada bandeja de madeira foi arremessada contra a TV quebrando o aparelho. 

Familiares que usavam crucifixos na vã tentativa de manter a aparição sob controle às vezes os encontravam dobrados ao meio, como se "tivessem sido colocados em um torno e torcidos com um alicate". Para tornar tudo ainda mais assustador, um quarto escondido foi encontrado atrás de uma parede, obviamente selado por razões desconhecidas. Quando abriram a divisória que o escondia, foram achados vários brinquedos das crianças que ninguém sabia explicar como haviam chegado lá. O fedor no aposento secreto era tão forte que ele foi lacrado novamente.

Os fenômenos seguiram por anos, com a situação afetando a família. "Eles se intensificavam, então vinha uma pausa de alguns meses, para recomeçar tudo novamente. Era enervante não saber quando o pesadelo recomeçaria". Os Cranmer tentaram ver em outra casa e descobriram que a entidade os acompanhava onde fossem, levando o mesmo terror a outros lugares. "Não é algo simples de explicar! Aquela coisa nos acossava e perseguia. Ela era uma manifestação inteligente, não uma coisa irracional".  


Desde o início Bob Cranmer procurou a Igreja Católica para tentar resolver o problema espiritual que o atormentava. Ele pediu e de fato, implorou que intercedessem por ele. Ele sempre falava a respeito de um exorcismo, mas o processo era burocrático e exigia que um Bispo concordasse com a medida. Além disso, não havia uma pessoa possuída, mas sim uma casa,  que contrariava  dogma do Exorcismo que se refere a um indivíduo. A casa era uma espécie de antro dominado por essa manifestação maligna. 

Ao longo de dois anos, Cranmer tentou provar o que se passava na casa, mas a entidade insidiosa parecia se calar quando um religioso os visitava. "Era desalentador... a coisa não se manifestava quando havia algum observador da Igreja presente". Eventualmente dois padres visitando de surpresa  no meio da madrugada testemunharam a atividade paranormal e ficaram impressionados com a intensidade dela. Eles registraram crucifixos sendo torcidos, o fedor nauseante que emanava do chão e até mesmo um arranhão que um deles sofreu no pescoço. 

A essa altura Investigadores paranormais também já haviam visitado a casa e reconhecido a atividade sobrenatural. O episódio mais notável envolveu o renomado parapsicólogo Ryan Buell, que afirmou durante sua investigação ter visto um crucifixo dobrar ao meio bem diante de seus olhos. Ele também testemunhou sangue aparecer e escorrer pelas paredes. Amostras levadas à laboratório revelaram que se tratava de sangue verdadeiro cuja origem jamais foi determinada.

Apenas em 2006 a casa foi finalmente considerada apta a receber um Ritual de Purificação, uma espécie de Exorcismo mais raro voltado para um Covil Diabólico. Na ocasião o próprio Bispo de Connecticut visitou a casa acompanhado de três padres que realizaram o complexo ritual. Na ocasião os vizinhos registraram muitos gritos, sons de batidas secas e algazarra pela casa. Ao fim de dois dias de orações e bênçãos, a casa foi declarada livre da presença demoníaca que a habitava.

A Família Cranmer continuaria morando lá e Bob escreveria um livro intitulado "The Demon of Brownsville Road" descrevendo os 18 anos de experiências sobrenaturais na casa. A publicação, segundo ele, foi repleta de contratempos e dificuldades, como se algo não quisesse que o livro fosse escrito. A Igreja também se negou a fornecer dados sobre o Ritual censurando o autor por transformar o ocorrido em um livro.

Durante suas pesquisas Bob Cranmer afirmou ter descoberto vários detalhes sinistros sobre a casa na Brownsville Road que ajudariam a esclarecer o que a afligia. Ele descobriu que um massacre ocorreu na propriedade na década de 1700, quando uma mulher e seus quatro filhos foram impiedosamente massacrados por nativos americanos. Os corpos foram enterrados onde a casa estava localizada. Ele também afirmou que um trabalhador imigrante que ajudou a construir a casa foi morto pouco depois dela ficar pronta. Segundo boatos o cadáver teria sido jogado no concreto e literalmente emparedado no quarto azul. Finalmente havia o rumor de que um médico havia operado na casa realizando abortos ilegais ao longo de muitos anos. Esse médico tinha interesse em ocultismo e se envolveu com rituais de invocação que abriam as portas da casa para o demônio que vivia no local. 


Esses elementos mergulhavam ainda mais a casa na escuridão, validando sua fama como a morada em que um demônio poderia se instalar. A entidade seria uma força que se viu atraída pela casa como se dela emanasse uma escuridão irresistível. De fato, o conceito de Covil Diabólico é exatamente esse, um lugar tão maligno que um ser diabólico se sentiria em casa nele.

De fato, Cranmer defendia que seu hóspede indesejado era um demônio, e não um fantasma, dizendo:

"Fantasmas, se você acredita neles, geralmente são almas que sofreram algum evento trágico. Um demônio é o oposto de um anjo. A existência dessa coisa se manifesta de uma maneira muito diferente da de um fantasma. Um fantasma geralmente está revivendo algum tipo de evento que ocorreu durante sua vida. No nosso caso, era um espírito demoníaco, maligno e malicioso que interagia conosco regularmente e queria nos machucar. Queria acabar com a unidade de nossa família."

O livro foi muito popular após seu lançamento, rendendo várias entrevistas e aparições na TV. O trabalho foi amplamente elogiado como uma das mais angustiantes narrativas sobre experiência sobrenatural registrada. Contudo também houve bastante ceticismo sobre o relato. Embora alguns dos fatos descritos no livro sejam coerentes, o principal problema é que algumas das pessoas que moraram na casa antes da chegada dos Cranmer, negaram que tenha havido qualquer tipo de atividade paranormal estranha na casa. Isso parece bastante estranho, considerando que, se a história da casa fosse tão sombria a ponto de atrair um demônio, isso já deveria vir acontecendo há décadas. No entanto, não houve nada de incomum relatado. Uma ex-moradora chamada Karen Dwyer, que morou na casa por 7 anos na décadas de 1960, disse:

"Minha mãe nunca mencionou nada sobre a casa ser assombrada. Minha avó nunca disse nada sobre a casa ser assombrada. E meu avô nunca disse nada sobre a casa ser assombrada. Se o senhor Cranmer quiser escrever sobre demônios a partir de 1988 que o faça; eu não me importo. Mas se quiser falar sobre outras pessoas e coisas que aconteceram antes dele, estará mentindo. Não havia nada de diabólico em Brownsville Road". 

As palavras de Dwyer fizeram muitos críticos acusarem Cranmer de inventar tudo e tentar fazer passar uma obra de ficção como um relato real para obter publicidade e fama. Cranmer rebateu, acusando essas pessoas de esconder a verdade para salvar suas próprias reputações e evitar a desvalorização da propriedade. Ele disse sobre isso:

"As pessoas sempre se preocupam com a possibilidade de serem responsabilizadas legalmente se não revelarem aos compradores problemas de natureza espiritual com uma casa. Esse lugar só foi oficialmente vendido em 1941 pelos proprietários originais e depois foi comprada por meio de um leilão. A casa ficou vazia por um longo período e tornou-se conhecida como casa mal-assombrada pelos vizinhos que sabiam bem de seu histórico".


Cranmer também se defendeu alegando que uma mulher com quem ele conversou, Barbara Wagner, lhe disse que de fato havia atividade paranormal substancial na casa antes de ela ser comprada por sua família. Vários vizinhos também confirmaram que o local era conhecido por ser mal-assombrado. Havia ainda outra testemunha idosa com quem ele conversou, que era apenas uma criança quando morava lá, mas que se lembrava claramente de ter sido aterrorizada por coisas inexplicáveis.

Mesmo diante do ceticismo e das críticas, Bob Cranmer se manteve firme em afirmar que a sinistra história do Demônio de Brownsville era uma descrição fidedigna de eventos ocorridos com sua família.

Curiosamente Bob Cranmer parece ter passado por momentos difíceis depois do lançamento de seu livro. Em 2015, seu filho David faleceu e, naquele mesmo ano, sua esposa, Lea entrou em profunda depressão, o que resultou na desintegração do casamento. os planos de transformar o livro em um filme também foram cancelados.  Apesar de tudo isso, ele continuou a defender seu relato dos eventos, desafiando resolutamente os céticos.

"Eu sei melhor do que qualquer outra pessoa o que foi viver nessa casa. Ainda tenho pesadelos sobre aquela época, mas sei que apesar de tudo, nós conseguimos nos manter. A entidade que nos atormentou desapareceu e desde então temos uma vida normal".

Somos levados a ponderar muitas questões sobre essa historia macabra. O que realmente aconteceu com Bob Cranmer e sua família naquela casa? Quanto das experiências que ele relata em seu livro são baseadas em eventos factuais e quanto é inventado? Se tudo realmente aconteceu, então o que era a entidade habitando a casa? Foi um caso de fantasmas, poltergeists ou, como o próprio Cranmer acredita, um demônio real? Essas são questões pertinentes sem  respostas adequadas, e o caso do Demônio de Brownsville permanece um incidente assustador sem solução. 

domingo, 3 de agosto de 2025

Mesa Tentacular: Aurora Blue no Evento Lendas da Taverna em Porto Alegre

No mês passado, dia 12 de Julho, rolou a primeira edição do Lendas da Taverna em Porto Alegre.

O evento de RPG contou com a presença de várias lojas especializadas em cultura geek/nerd, expositores, criadores de conteúdo e é claro, fãs de RPG. Além disso, várias mesas de RPG animaram o encontro que aconteceu no ginásio do Clube São José.

Foi um daqueles eventos raiz, como os de antigamente, "sem frescura". O pessoal chegava, se informava sobre as mesas disponíveis, se inscrevia, sentava, jogava e se divertia.

Muito bom ainda ter eventos assim!

E pela reação de todos que passaram por lá, essa será a primeira de muitas!

Aproveitei a ocasião para narrar uma Mesa Tentacular e foi uma oportunidade muito legal de conhecer novos jogadores, apresentar e eles Chamado de Cthulhu e espalhar as sementes da Loucura.

O cenário escolhido foi AURORA BLUE, uma aventura da excelente antologia No Time to Scream.

Em Aurora Blue, os investigadores assumem o papel de agentes do Departamento do Tesouro em 1931. Eles recebem ordens de capturar um contrabandista de bebida ilegal chamado Jacob Beaker que produziu um lote adulterado de gin chamado Aurora Blue. A bebida causou mortes em Chicago e o governo quer Beaker detido e processado. O problema é que ele se refugiou em uma fazenda isolada no Alasca está escondido nesse lugar. Apesar das dificuldades ocasionadas pelo clima severo, não parece ser uma missão muito complicada para quatro agentes treinados e experientes.

Mas aí é que o grupo se engana.

O que parecia uma missão simples de captura e escolta se torna uma luta pela sobrevivência em u ambiente hostil e com a presença de algo terrível e sobrenatural espreitando na paisagem gelada.

Aurora Blue é daquelas histórias com a premissa aparentemente simples, mas que esconde um Horror Cósmico intrincado. Um mergulho num pesadelo tenebroso (e extremamente divertido de se jogar).

Seguem algumas imagens do jogo que foi muito legal!

Recursos do Cenário:


As fichas dos personagens nessa história. Dois detetives que trabalhavam para o Departamento do Tesouro, um Contador especializado no Ato Volstead (Lei Seca) e uma ambiciosa Promotora de Justiça.


A imagem de alguns suspeitos e a pasta com os dados e documentos do Departamento do Tesouro.


A ficha do perigoso Sr. Jacob Beaker


As Informações do Bureau de Investigação.


Dois perigosos Comparsas de Jacob Beaker


Mais algumas pistas e documentos importantes


Desenhos feitos por uma criança narrando um estranho fenômeno no Alasca.


Os mapas da Cabana e arredores da Fazenda de Beaker


Fotos da Mesa:


A jogo foi no Ginásio Atlético do Clube São José


Aquela bagunça típica na mesa de jogo


O pessoal que jogou pouco antes do massacre. Foram quatro jogadores nessa sessão.


Os jogadores discutindo como agir e qual será o plano para entrar na fazenda e capturar sua presa.


E terminado o jogo, entre insanos, feridos e mortos, teve bastante diversão. Ótimo grupo, todos tendo a sua primeira experiência em Chamado de Cthulhu. Espero que tenham gostado.


E a tradicional fotografia com o placar da sessão. Dois mortos, um severamente ferido (e cego) e uma sobrevivente.

Então é isso!

Grande evento, jogo animado e muita diversão!

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Fome sem Fim - Como um inverno causou canibalismo em massa na era medieval

Canibalismo em massa parece algo saído de historias de terror e não da historia real. Contudo, um inverno particularmente severo na era medieval deixou muitos questionamentos em aberto sobre o tema e poucas respostas.

Por mais que queiramos nos dissociar dessa ideia atroz, os rumores sobre o que aconteceu naquele inclemente início do século XIV, jamais será esquecidos e segue nos assombrando. A tragédia deixou um lembrança amarga que marcou a Europa para sempre.

O que dê fato aconteceu nesses anos congelante e que as pessoas preferiam não falar a respeito? Seriam os rumores murmurados verdadeiros? Teria esse sido um dos piores anos da humanidade coo dizem alguns cronistas?

Para entender como as coisas aconteceram, temos de voltar no tempo até o distante ano de 1320. Aquele foi um ano que se iniciou como qualquer outro na Europa continental, ao menos até a natureza aparentemente se revoltar e parar de oferecer alimentos para a sobrevivência da população. 

O que se iniciou com chuvas fortes fora da estação, progrediu para enormes enchentes de proporções nunca antes vistas. As inundações se provaram um verdadeiro desastre: mudaram o curso de rios e áreas ribeirinhas foram consumidas por uma torrente de água que arruinou a agricultura. Campos de cultivo viraram um lamaçal,  plantações morreram inundadas e silos de estocagem foram destruídos por completo. O Verão, Primavera e Outono foram marcados por chuvas torrenciais que pareciam não ter fim. Como o Dilúvio bíblico, a Europa se viu de baixo da água.

Para piorar os anos anteriores também haviam sido de escassez e as reservas de alimentos estavam perigosamente baixas. Quando as chuvas começaram a amainar, os fazendeiros se viram a diante da horrenda constatação de que suas reservas de alimento para enfrentar o rigor do inverno estavam muito abaixo do necessário. De fato, em breve não haveria o que comer.

As fazendas ainda tentavam se recuperar do catastrófico ano de 1316 que resultou em colheitas insatisfatórias e em um período de fome sem precedente. Contudo, o que viria a seguir era muito pior, muito mais perigoso e terrível.

Muitos fazendeiros foram obrigados a abater seus animais após fazer as contas e constatar que não haveria como mantê-los ao longo da estação mais fria do ano. Simplesmente não tinha como alimentá-los. Contudo, a única maneira de conservar a carne também se tornou dispendiosa, já que as enchentes alagaram as minas de sal. Com efeito, sal passou a valer tanto quanto ouro, um recurso que a maioria não podia pagar.

Os grãos estocados começaram a apodrecer por conta da umidade, assim como a lenha usada para alimentar os fornos e fogueiras. Logo, o pão atingiu um preço nunca antes visto, custando mais do que uma pessoa recebia em uma semana. A fome começou a se espalhar com enorme rapidez. Vilarejos e aldeias foram se esvaziando, com a população vagando sem destino em busca de um lugar menos depauperado. Infelizmente, constatavam que a tragédia havia atingido todas as regiões vizinhas. A fome era geral, o desespero completo!

Quando o estômago começou a reclamar, e nada havia para aplacar o vazio as pessoas recorriam a qualquer coisa que pudesse aplacar a sensação. Isso os levava a comer coisas que jamais considerariam anteriormente. Grama, embora rara, se tornou uma opção viável quando fervida em um caldeirão numa massa verde e insossa. Madeira de Árvore também era fervida ou transformada em sopa. Ossos de animais que já haviam sido descartados ganhavam uma segunda chance, moídos e dissolvidos em água fervente para virar um cozido ralo. Até itens de couro se tornaram alimento emergencial, com cintos, luvas e mesmo sapatos sendo fervidos até amolecer e poderem ser comidos.

Cães, gatos e ratos se converteram numa ração necessária para sustentar famílias inteiras. O sangue de cavalos era drenado e misturado a qualquer alimento para dar algum gosto. Pombos e pássaros silvestres eram capturados e assados inteiros, nem mesmo as penas eram desperdiçadas. A ordem do dia era conseguir qualquer fonte de proteína. Fungos e liquens podiam ser raspados de pedras indo direto para a panela. Ate mesmo lama e barro cozido podia ser comido na esperança de absorver alguns minerais. 

O desespero e carestia fez com que o pior aflorasse endurecendo o coração de pais e mães que abandonavam seus filhos à própria sorte. As crianças mais fortes eram escolhidas, as que aparentavam fragilidade não tinham tanta sorte.

Mas mesmo essas medidas desesperadas não foram suficientes para algumas pessoas e limites que geralmente não são cruzados por constituir tabus ancestrais acabaram sendo ultrapassados.

Registros de cortes de justiça desse período contam historias que parecem inacreditáveis. A fome conseguiu empurrar as pessoas além de todas as fronteiras morais e éticas pelas quais elas viviam até então. O sistema legal começou a documentar crimes que ninguém poderia prever, quanto mais categorizar e menos ainda julgar. Havia casos de pais que cozinharam e devoraram seus próprios filhos. Juízes tinham de lidar com famílias que estavam literalmente morrendo de fome e que escolheram sacrificar alguns dos seus para que outros sobrevivessem. 

A justiça da Alemanha condenou uma mulher por matar e transformar os restos do marido em carne moída para a vizinhança. Um mercado de carne de procedência duvidosa supostamente de porco, começou a operar no submundo de Bremen. Alguns se perguntavam que carne era aquela, outros preferiam não saber. Vilarejos em Flandres reportaram o desaparecimento de pessoas e mesmo em Paris, na calada da noite, mendigos sumiam em vielas escuras. Ao mesmo tempo, o açougue local recebia um misterioso estoque de carne que chegava sem ninguém saber de onde vinha.

Ate mesmo os corpos de prisioneiros executados, orgulhosamente pendurados em muros ou postes, sumiam de madrugada. Mesmo os mortos não podiam descansar em paz já que cemitérios eram constantemente escavados por ladrões famintos. Crônicas da Dinamarca e Países Baixos atestam que cemitérios eram constantemente vasculhados em busca de mortos recentes. Algumas pessoas eram contratadas para vigiar os mortos ou parentes devotos ficavam de prontidão. Ainda assim, cadáveres sepultados recentemente seguiam sumindo. Os corpos duros e emaciados eram carregados para as casas, esquartejados e fervidos em potes e caldeirões. 

As florestas e matas eram uma espécie de campo de caça para camponeses famintos que vagavam aos bandos cercando e perseguindo grupos menores que cruzasse seu caminho. As turbas de canibais se multiplicavam. Os ladrões habituais de beira de estrada passaram a visar mais do que objetos e posses, eles desejavam a carne de suas vítimas.

A maior parte dos casos de canibalismo ocorriam depois de os recursos se exaurirem por completo e pelo menos um membro da família morrer de inanição. A maioria das comunidades tentava recorrer a outros métodos antes de abraçar o canibalismo, afinal essa não era uma decisão fácil. Nessa época, estranhos ou forasteiros corriam enormes riscos ao viajar para lugares onde não eram conhecidos. Eles podiam afinal, serem convidados a ficar para o jantar, sem saber que seriam o prato principal.

Curiosamente, a Grande Fome atingia a todos, ricos e pobres, nobres e plebeus. De nada adiantava ter ouro e tesouros, se estes não podiam comprar nada. Alguns se tornavam predadores, outros se convergiam em presas. Órfãos, velhos e prisioneiros eram alvos prováveis, pois não haviam muitas pessoas dispostas a protegê-los da sanha faminta das multidões. Se eles desapareciam, ninguém dava pela falta. Algumas aldeias da Normandia organizavam ceias nas quais a origem do alimento oferecido não era questionada. Ao mesmo tempo, masmorras e orfanatos eram esvaziados da noite para o dia. A regra era não discutir, aquilo que não valia a pena discutir.

Igrejas e monastérios conseguiam lidar um pouco melhor com a situação pois muitos possuíam despensas cheias de anos anteriores. Mas quando a população descobria esses depósitos ocultos, muitas vezes se iniciava uma revolta e saque. A devoção religiosa diminuía com a fome. As instituições europeias não estavam preparadas para lidar com a gravidade da situação e não conseguiram reagir a tragédia. Líderes religiosos eram questionados por uma solução para o sofrimento. O Papa declarou que a Grande Fome era uma punição divina pelos muitos pecados cometidos pela humanidade. Padres sugeriam que se rezasse e jejuasse, quando o problema era justamente a falta do que comer. Era como prescrever dieta para quem já estava faminto.

Os Reis descobriram que sua autoridade de nada valia, quando os exércitos minguavam e as estradas se transformavam em um caos. Mesmo os monarcas mais poderosos da época não podiam criar comida do nada. Silos de estocagem acabaram sendo pilhados e preciosos grãos levados pela população, o que motivou a defesa desses lugares por tropas implacáveis. Qualquer um que fosse pego roubando grãos podia ser executado imediatamente. Essa foi a época em que leis encaravam roubar pão ou abater um gamo, motivo para enforcamento.

Revoltas ocasionadas por fome se tornaram cada vez mais comuns pela Europa à fora. As leis se derreteram e a obediência civil com ela. O ódio pelos ricos - que supostamente escondiam comida, se tornou endêmico e plantou as sementes de futuras revoltas de camponeses. Nem a Igreja católica escapava da fúria do povo.

Eventualmente a longa provação do inverno passou e as chuvas diminuíram trazendo uma primavera mais amena, ainda assim, os profundos traumas deixados por esse terrível ano não foram esquecidos facilmente. O temor de que isso voltasse a acontecer fez com que o cotidiano medieval fosse alterado para sempre. Antes havia um receio quanto a passar fome, agora havia um terror paupavel de tal coisa voltar a acontecer. Conselhos municipais exigiam que impostos fossem usados para comprar rações emergenciais que estivessem disponíveis para o inverno seguinte. Agricultores foram forçados a usar métodos de revezamento do solo e promover a estocagem de grãos.

Centenas de vilas foram abandonadas e jamais foram reconstruídas e a sensação de que as cidades grandes lidaram melhor com a crise motivou uma enorme evasão dos campos inflando os centros urbanos com mais e mais gente. 

O folclore medieval incorporou dezenas de fábulas populares à respeito de crianças atormentadas por bruxas famintas dispostas a lançá-las em seus caldeirões e transformá-las em refeição. Muitas dessas historias aterrorizantes se originaram durante a Grande Fome, mas acabaram sendo disfarçadas como parte do folclore local. Em seu íntimo, as pessoas sabiam que não havia encanto na fábula de João e Maria.

A Fome se Fim, como ficou conhecido o período mostrou como o senso de preservação pode se impor aos dilemas éticos. A sociedade humana parece ser bem mais frágil do que imaginamos quando colocada face a face com o impensável. Só podemos esperar que tal provação não venha novamente.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Lugares Estranhos: Bonehenge - O Círculo de Ossos de Mamute na Sibéria


Imagine se for capaz...

Em uma noite gélida nas estepes siberianas luzes de tocha iluminam a noite escura. O bater ritmado de tambores ecoava pela plácida taiga coberta de neve. No firmamento, na abóboda celeste luzes do norte se formam maravilhando os observadores com suas luzes azuis-arroxeadas.

Homens de aspecto rude, cobertos de peles para se proteger do clima gélido se aproximam em reverência. Eles vem de longe, de terras distantes atravessando distâncias consideráveis em uma época em que não existem estradas, mapas ou marcos. Eles vem com o objetivo de se reunir para uma festividade, uma celebração e um ritual ancestral que honrava os Deuses esquecidos de uma época primitiva.

Muitos traziam oferendas: peles, animais, totens e principalmente presas de marfim. Essa era a maior das oferendas, as presas dos poderosos mamutes que um dia marcharam pelas planícies em rebanhos imensos. Animais que se tornavam cada vez mais raros, mas que um dia caminharam fazendo o solo tremer sob o seu peso.

Os homens eram caçadores, eles portavam lanças, facas e machados talhados em pedra. Alguns dominam a recém descoberta técnica da arquearia que lhes dava a vantagem de matar à distância. Eles vinham de longe e quando avistavam seu destino caiam de joelhos extenuados. Muitos ouviram falar daquele lugar mas nunca viram a estrutura. Eles admiram sua grandiosidade e simbolismo místico, não há nada igual no mundo - mesmo as pirâmides do Egito apenas surgirão daqui a milhares de anos.

Após uma longa jornada, enfim eles chegaram ao Círculo de Ossos.


Essa misteriosa estrutura circular se encontra na atual Rússia, em uma região isolada conhecida como Korokov 11. Ela foi apelidada de Bonehenge, não apenas por ser incrivelmente antiga, mas por lembrar o famoso Stone Henge, o circulo de Pedras da Inglaterra. O Bonehenge foi construído por volta de 20.000 mil anos atrás, quando a humanidade ainda era jovem e tentava sobreviver às intempéries desse planeta hostil.

Mais conhecido como o "Circulo de Ossos", a estrutura central era formada por centenas de ossadas de animais de grande porte. Elas foram levados até lá e arranjada em um círculo que compõem uma das mais antigas estruturas construídas por mãos humanas.

Acredita-se que a construção do círculo tenha se iniciado durante a última Era do Gelo, ela foi erguida por tribos de Caçadores-Coletores do Paleolítico. Nesse período da historia, a temperatura despencou para -20º com nevasca e gelo constante cobrindo a paisagem. De fato, o Círculo foi erguido durante o auge da Era do Gelo, quando o frio era mais intenso. Este período compreendeu entre 70 mil e 20 mil anos anos e foi um dos mais severos para a manutenção da humanidade. Francamente, é notável que a raça humana tenha conseguido perseverar diante de tamanha provação.

O Dr. Alexander Pryor, um Arqueólogo Paleolítico da Universidade de Exeter liderou o estudo do local e falou a respeito do severo ambiente que as pessoas enfrentaram. 

"As pesquisas arqueológicas estão mostrando como nossos ancestrais conseguiram sobreviver em condições desesperadoras, num frio inconcebível e com enorme falta de recursos", ele prossegue "Na maior parte da Europa, em latitudes similares houve um grande êxodo em busca de áreas mais abundantes em comida, água e abrigo, contudo, o Círculo de Ossos é uma demonstração da capacidade de adaptação e sobrevivência do povo das estepes".


A estrutura mais antiga do círculo mede cerca de 20 metros de diâmetro e foi erguida inteiramente com ossos de Mamutes das planícies, o que inclui 64 crânios, 51 mandíbulas, além de quase 400 presas de marfim alinhadas como uma parede. Os ossos foram dispostos em uma estrutura mais ou menos redonda, parcialmente enterrada e unida com amarras. Mais ossos foram achados em seu interior bem como três enormes fossos escavados onde eram acendidas fogueiras.

Enquanto a maioria esmagadora dos ossos pertencem a Mamutes, há uma quantidade significativa de ossos de cavalos, renas, lobos, ursos e raposas do ártico, outros animais que dividiam a região com as tribos primevas. 

Ao redor dessa estrutura central maior existiam círculos menores, ao menos 30 deles, dispostos pelo perímetro formando o que seria uma espécie de comunidade ou vilarejo capaz de hospedar algo entre 400 e 600 indivíduos, garantindo a eles abrigo diante do rigor climático.

Além dos ossos, arqueólogos encontraram restos de plantas, madeira usada para as fogueiras, carvão e pedras talhadas. Os indícios sugerem que as estruturas serviam como uma espécie de alojamento para as tribos. A especialização de algumas estruturas surpreendeu os estudiosos que encontraram alojamentos que funcionavam como cozinhas comunitárias, depósitos, oficinas e até mesmo uma enfermaria primitiva onde eram estocadas ervas, raízes e plantas medicinais. Uma das oficinas produzia roupas, barbante e peles essenciais para a sobrevivência.

Além disso, eles encontraram evidências de ferramentas primitivas que são muito mais avançadas do que quaisquer outras achadas nesse período e nesse local. "É como encontrar uma sociedade organizada em meio a vizinhos primitivos que mal conheciam os rudimentos da confecção de roupas".


O mais notável, entretanto são as descobertas feitas no círculo maior de ossos exatamente no centro da comunidade. 

"É sensacional! Impossível não associar essa estrutura com algum tipo de templo religioso primitivo", comenta o Dr. Pryor. 

Os arqueólogos descobriram sinais inequívocos de que o lugar servia para reunir os participantes de cerimônias religiosas de suma importância. Além das fogueiras acesas em fossos, onde se preparava comida, a área central era usada para danças ritualísticas e cerimônias. 

O povo das estepes possuía um conjunto de crenças religiosas que só recentemente começaram a ser compreendidas. É provável que eles prestassem reverência a divindades naturais que eram representadas pelo sol, pela lua, pela terra e pelo fogo, além de forças espirituais na forma de animais totêmicos. De fato, escavações revelaram a existência de totens de quase 18 mil anos representando mamutes, lobos e renas.

"Estes povos apesar de primitivos possuíam crenças enraizadas em seus costumes e se reuniam nessa estrutura impressionante para honrar seus deuses, pedir a eles força e fartura na caça."

Pryor acredita que rituais eram executados no grande salão, com a iniciação de jovens caçadores e a união de tribos por laços de cooperação. 

A descoberta de ossos humanos carbonizados nas piras sugere que sacrifícios humanos para os deuses também era algo frequente no Círculo. Dentre as plantas medicinais foram achadas substâncias que provavelmente eram consumidas pelos participantes ou queimadas nas piras para criar efeitos alucinógenos. 


Restos de instrumentos de percussão, com chocalhos de ossos e tambores de pele completam o cenário de uma celebração ruidosa e espontânea. 

"Seja lá quais fossem os deuses e entidades que esses indivíduos cultivavam, não é exagero dizer que este era um grande centro de devoção. Ele atraía viajantes de terras distantes que provavelmente ouviam falar desse círculo de ossos. Eles empreendiam verdadeiras jornadas pelas estepes agrestes afim de conhecer o templo onde os deuses se manifestavam. Devia ser algo muito significativo comparecer a essas festividades".

Os sacerdotes tinham uma tradição xamânica e eram responsáveis por comunicar aos mortais a vontade divina. Após consumir doses maciças de substâncias alucinógenas, eles experimentavam visões proféticas que precisavam ser interpretadas. Eles também conduziam os rituais que muitas vezes envolviam violência e sacrifício. Os sacerdotes barbudos, cobertos de pele e com galhos de renas brotando dos cabelos, portavam clavas usadas para golpear os sacrifícios na cabeça. 

"As divindades totêmicas representavam forças da natureza primaz, que precisavam ser apaziguadas ou satisfeitas para permitir ao grupo prosperar. Não oferecer o sacrifício correto, era, aos olhos dos xamãs, um risco que poderia decretar a morte de todos".

Só podemos imaginar o teor desses rituais selvagens e alucinantes. Mas apesar da violência eles podem ter representado um fator de união que permitiu a essas tribos sobreviver em um ambiente inconcebível. 

Para as tribos que ainda hoje habitam a região de Korokov 11, as ruínas do velho Círculo de Ossos constituem um tabu. Seu folclore menciona que esse lugar foi tocado por deuses e espíritos selvagens e que estes uma vez invocados por ritos de seus ancestrais, jamais partiram. 


Os velhos que ainda mantém as tradições de seus antepassados falam de fantasmas e espíritos que vagam no limiar do real e imaginário. Há ainda a lenda do Monstro Labynkir, uma criatura feroz e incontrolável, fera gigantesca e poderosa que vagava pelos arredores devorando tudo que conseguia agarrar. 

O Labynkir possui uma origem medonha, como um espirito desencarnado que era trazido para o mundo contra duas vontade e forçado a possuir algum animal selvagem, tornando-o uma besta com implacável sede de sangue. 

"O folclore local é rico em todos tipo de criatura e monstro" diz o Dr Pryor que salienta "muitos deles com uma ordem extremamente antiga. Algumas lendas podem ter se originado milhares de anos atrás, sendo transmitidas de pais para filhos ao longo de gerações".

O Círculo também representava uma espécie de proteção contra essas feras terríveis, naturais e sobrenaturais, um lugar seguro em que as pessoas podiam descansar, honrar os deuses e pedir pela sua intercessão. Tudo isso em meio a um dos períodos mais dramáticos de nossa historia, quando o Circulo de Ossos era a única coisa entre a sobrevivência e a morte certa.