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Essa noite eu entrego minha vida aos Deuses,
Corremos para lutar na batalha, em busca de glória
Irmão urso dê sua força e lutarei ao seu lado,
Para rasgar e ferir, para matar e morrer!
A Canção do Berserker
Há séculos os guerreiros nórdicos conhecidos como Berserker são tratados com um misto de fascínio e curiosidade. Dizem as lendas que eles lutavam como animais selvagens: implacáveis, sem medo, por vezes confundindo aliados e inimigos em sua fúria cega. Seriam eles virtualmente imbatíveis no campo de batalha. A palavra inglesa berserk que significa "violento, incontrolável ou destrutivo" tem a sua origem nessas estranhas figuras. Uma mitologia inteira surgiu ao redor dos berserkers, mas na prática sabemos muito pouco a respeito deles: Realmente existiram esses guerreiros ferozes? Quem foram? É verdade que eles conseguiam suportar enormes ferimentos e continuar lutando? Qual era a fonte de suas habilidades? Nesse artigo, procuramos as origens da lenda, vestimos nosso elmo de ferro e afiamos nosso machado para encontrar os verdadeiros berserkers.
Há muitas lendas e teorias sobre como os Berserker se comportavam no campo de batalha. Diz a lenda que eles podiam sustentar enormes danos e prosseguir lutando a despeito de ossos quebrados, hemorragias internas e flechas perfurando sua carne. Seria algum tipo de transe ou frenesi que os tornava imunes a dor? Eles ficavam realmente mais fortes e poderosos? Seria verdade que eles ingeriam cogumelos alucinógenos? Antes de partir para essas questões, vamos nos concentrar nos fatos.
O que nós sabemos a respeito dos Guerreiros Berserker?
Os Berserkers são citados em várias Sagas, históricas épicas escritas pelos Povos Nórdicos entre o século X e XIV. A palavra vem de ber-serkr, usualmente traduzido como homem com peito de urso, possivelmente se referindo a homens que usavam armaduras ou proteção em combate feita do couro ou da pele de ursos. Há outras interpretações que sugerem que esses guerreiros "lutavam como ursos", ou seja, sem armaduras, de peito nu e sem qualquer proteção. Uma terceira possibilidade é que os berserkers utilizassem partes de animais ferozes, como ursos, lobos e javalis como ornamento sobretudo nos capacetes. Essas fantasias serviam para evocara fúria dos animais em uma estratégia que visava aterrorizar os oponentes. E parecia funcionar, a mera visão dos berserker em ação podia ser o bastante para deixar os inimigos em estado de choque.
De fato, uma das menções mais famosas a respeito de berserkers surge em uma saga na qual eles cumprem o papel de tropas de choque do Rei Harald Fairhair, o primeiro governante da Noruega, em meados do ano 900.
A associação dos berserker com peles de animais levou ao surgimento de uma mitologia específica e comparações nas quais eles eram tratados como
lobisomens e
skinwalkers (homens capazes de assumir a forma de animais selvagens). É provável que os guerreiros estivessem cientes do medo que provocavam em seus oponentes, pois sem dúvida estes mencionavam a ferocidade dos berserker em suas narrativas. Mais de um documento do período falava do horror e do medo que as pessoas sentiam de encontrar esses guerreiros frente a frente. O autor Richard John King, escrevendo em uma edição do jornal literário
Notes & Queries, fez um resumo do controverso trabalho do historiador da cultura Viking, Grímur Jónsson Thorkelin:
"Thorkelin, em seu ensaio sobre o mito do Berserkir, com base no Kristni-Saga, afirma que um antigo nome para a lendária Fúria Berserk é hamremmi, que significa: "Força adquirida de outra pessoa ou de outro ser", pois existe uma crença muito antiga de que as pessoas que experimentam o frenesi do guerreiro na verdade incorporam o ódio de outras pessoas ou de animais ferozes para lhes conceder força e resistência sobre-humana".
"Parece claro, portanto", prossegue Thorkelin, "que o estado desses homens sob a Fúria Berserk assume uma postura diferente do normal, incorporando uma ferocidade que remete a animais e homens selvagens. Enquanto nesse estado, são incapazes de racionalizar, agindo como que por instinto, atacando, ferindo e matando como ato contínuo de defesa diante de qualquer ameaça ou insinuação de ameaça".
Os pesquisadores do Mito do Berserker ao longo do século XIX e XX, compartilhavam desse pensamento. Para eles, o Estado de Fúria podia ser obtido através de uma catarse emocional, na qual o guerreiro voluntariamente regredia ao estado selvagem, abraçando seu lado primitivo e cedendo aos instintos.
A fúria do Berserker, era chamada pelos nórdicos de berserkergang (bärsärkar-gång), um estado de completo abandono da razão. Snorri Sturluson, um proeminente autor e pesquisador das sagas, descreve essa condição da seguinte maneira:
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Os Berserker urravam, gritavam, gargalhavam e choravam, tudo ao mesmo tempo. Alguns não eram capazes de falar. O turbilhão de emoções parecia consumi-los de tal maneira que seus olhos ficavam injetados, os dentes se arreganhavam em um rosnado profundo, a expressão facial se transformava numa máscara e sua postura se assemelhava a de uma fera acuada. Esses guerreiros então se lançavam contra os inimigos, sem armaduras, como cães selvagens ou lobos. Corriam pelo campo de batalha, às vezes nus, almejando chegar o quanto antes até seus inimigos. Por vezes, atacavam seus próprios aliados sem motivo aparente, apenas pela sede de sangue. Eram fortes como ursos ou touros selvagens, e matavam com as próprias mãos, golpeando, arranhando e mordendo. Com um machado ou espada eram destruidores. Não temiam nada, nem aço ou pedras, nem flechas ou óleo fervente".
As Sagas de fato mencionam guerreiros cruzando colunas de fogo, investindo contra paredes de escudos e lanças para romper linhas de defesa, avançando contra inimigos em maior número e mais bem armados. De peito nu, armados com fúria e selvageria. Arrancavam cabeças, mordiam tendões, massacravam o que estivesse a sua frente. Estes são os Berserkers das Lendas.
Mas como homens normais podiam atingir esse Estado de Fúria?
Explicações modernas para o berserkergang invocam o consumo de substâncias que poderiam desencadear a Fúria. Fala-se muito dos cogumelos alucinógenos da qualidade Fly Agaric que produz o componente químico Amanita muscaria, conhecido por provocar visões e delírios. Essa teoria no entanto encontra três obstáculos:
Primeiro: Em nenhuma Saga Nórdica em que ocorre o berserkergang, existe menção a algum alimento, bebida ou substância que precisa ser ingerida como forma de iniciar a fúria. Nas Sagas, a fúria é invocada de maneira espontânea.
Segundo: Existem guerreiros similares aos Berserker em várias culturas ao redor do mundo, e nenhum cogumelo (ou coisa semelhante) se faz necessário para invocar a fúria. A condição é chamada de "Síndrome Amok" na Malásia e na Indonésia, nome que foi incorporado ao idioma inglês no qual "amok" é tradução de enfurecido. Ela é tratada como "mal de pelea" em Porto Rico, de "Transe sangrento" na América Central e de "grisi siknis" na India. Até mesmo os esquimós tem algo chamado pibloktoq, uma fúria deflagrada pelo stress de longas noites sem sono. Nenhum fungo é usado por esses povos, em muitos casos pelo simples fato deles não existirem nesses ambientes.
Terceiro: a teoria do cogumelo alucinógeno é bem pouco fundamentada. Ela foi sugerida pela primeira vez pelo teólogo sueco Samuel Ödmann em 1784, basedo em histórias coletadas por ele a respeito do uso de substâncias por Xamãs Siberianos para obter visões. Não há nada entretanto a respeito da utilização desses mesmos cogumelos por tribos Vikings, seja em rituais ou para a guerra. Trata-se portanto de uma teoria sem qualquer base, mas que, ainda assim, é frequentemente defendida por estudiosos do assunto.
Mas se a fúria dos Berserker não tem a ver com a ação de elementos externos psicotrópicos, como ela poderia ser invocada? A psicologia moderna ofereceu recentemente uma explicação que parece se encaixar em vários elementos. Participar de batalhas medievais era obviamente uma experiência assustadora que cobrava uma pesada carga emocional naqueles que testemunhavam a violência ou dela participavam. Tomemos por exemplo os seguintes trechos extraídos da Saga de Egil:
"Ele ergueu o machado e atingiu a lateral direita da cabeça de Hallvard através do capacete e do crânio. A força do golpe foi tão grande que a lâmina ficou presa profundamente no osso e ele teve de apoiar o pé na face do cadáver para arrancá-la de onde havia se alojado. Em seguida, tomado de grande fúria passou a desferir repetidos golpes no rosto até que ele se transformasse em algo que não podia ser reconhecido como a face de um homem".
Consideremos outro momento em que Egil está disputando um jogo amistoso com seu amigo Thord e o pai deste, Skallagrim. De repente, sem nenhuma provocação:
"Egil segurou Skallagrim com toda sua força e o empurrou para trás, lançando-o sobre Thord que por sua vez também caiu de costas. O estrondo da queda foi tamanho que Skallagrim demorou a se recobrar. Thord, no entanto, não se movia e quando foram verificar descobriram que ele estava morto, o pescoço havia quebrado".
Finalmente, há essa cena envolvendo o mesmo personagem, quando ele reconhece um homem que aparenta ser um inimigo que ele encontrou no campo de batalha:
"...e correu para cima dele com a raiva queimando em seus olhos. Atacou-o pelas costas, segurando seus braços e o jogando no chão. Em seguida subiu sobre ele, imobilizando-o sobre seu peso a medida que segurava a cabeça pelos cabelos e a batia contra o piso de pedra. No terceiro choque o homem desmaiou, mas ele continuou batendo com força até que estivesse morto. E quando terminou, as testemunhas tiveram receio de se aproximar, pois ele continuava sobre o corpo, rosnando furioso".
Considerando esses trechos de Sagas envolvendo berserkers, parece óbvio constatar que a vida dessas pessoas era guiada pela violência. Mesmo em momentos de aparente tranquilidade, eles podiam ser tomados de uma raiva repentina que os consumia, quase que obrigando a adotar uma postura violenta. Psicólogos relacionaram uma modalidade extrema de Desordem por Stress Pós-Traumático (PTSD - Post Traumatic Stress Disorder) que impele o indivíduo a uma reação dissociativa de violência que se encaixa perfeitamente no perfil dos berserker.
É importante notar que a maioria das pessoas que desenvolvem PTSD não age dessa maneira, contudo, eles não estão sujeitos às mesmas condições desses guerreiros. Os berserker estavam inseridos em uma sociedade brutal, participavam de combates sangrentos desde jovens, tornando-os familiarizados com violência extrema, nua e crua na qual, se viam imersos. Nas sagas, os berserker são sempre descritos como veteranos de muitos confrontos, indivíduos forjados no campo de batalha e testados contra inúmeros inimigos.
Pesquisadores atestam que durante um episódio severo dessa modalidade de Choque Pós-Traumático o corpo assume uma postura de hiper-excitação, também chamado de resposta aguda de stress. A adrenalina é bombeada para a corrente sanguínea com mais velocidade. As vias aéreas relaxam para maximizar a capacidade respiratória e o metabolismo. Os músculos realizam glicólise, que produz moléculas ricas em energia para abastecer ações extraordinárias. Endorfinas são produzidas no cérebro para bloquear o desconforto e a dor. A visão periférica se estreita para diminuir qualquer distração e manter o foco. Reflexos e reações melhoram significativamente. Funções não essenciais como digestão diminui seu ritmo ou param por completo. O corpo se ajusta e responde fornecendo ao indivíduo tudo aquilo que ele precisa para reagir, habilidades extraordinárias que constroem um guerreiro berserker afloram.
O episódio causa também uma transformação física bastante perceptível. A pessoa experimenta uma súbita onda de euforia e reações emocionais espontâneas a medida que o rosto assume um tom avermelhado característico de indivíduos furiosos. Em seguida, o controle simplesmente desaparece! É o que muitos se referem como "explodir". A pessoa perde a razão, passa a agir por instinto, avançando como um animal selvagem contra qualquer coisa que possa representar uma ameaça. Sua postura é descuidada, impulsiva e auto-destrutiva.
Ainda que esteja diante de amigos de longa data, se vê incapaz de distinguir amigo de inimigo, investindo preventivamente contra qualquer um que esteja próximo. Esse é um ponto interessante a respeito dos berserker, que segundo as lendas, atacavam até mesmo aliados quando se deixavam levar pela fúria. Durante episódios dissociativos, a memória e a capacidade de reconhecimento diminuem fazendo com que a pessoa demore a reconhecer quem está a sua volta. No auge da crise, percebe apenas vultos que são identificados como ameaças em potencial num campo de batalha. É por isso, que ao fim da crise a pessoa não sabe exatamente o que aconteceu e custa a lembrar que tomou parte nos acontecimentos. Novamente isso está de acordo com o comportamento dos Berserker que após incorporar a Fúria, se mostravam confusos e levavam algumas horas para se recobrar.
Outro elemento interessante a ser analisado diz respeito ao vigor físico dos Berserker. Segundo a lenda, eles se transformavam no campo de batalha, a fúria concedia a eles capacidades "sobre-humanas", não apenas na forma de uma resistência notável para suportar ferimentos, mas de força física, velocidade e determinação. Sabe-se que a produção de endorfinas no cérebro em momentos de stress pode aumentar enormemente com uma forma de compensar possíveis ferimentos e permitir ao corpo suportar a dor. No caso de indivíduos sofrendo de um episódio de resposta aguda de stress, a quantidade de endorfinas liberadas é ainda maior. O sujeito se torna quase imune a dor e sofrimento físico, podendo lidar com ferimentos maciços que normalmente o colocariam fora de combate.
Além disso, a força física é ampliada. Ele corre mais rápido, seus músculos o impelem com mais vigor, gerando potência extra. É como o exemplo de indivíduos que sofrem um acidente de carro e são capazes de mover um peso enorme para escapar de ferragens ou como uma pessoa prestes a ser atropelada que salta além do que acharia possível. A resposta ao stress é quase que imediata, forçando o corpo a uma reação espontânea e inesperada. Na maioria das pessoas, essa reação tende a ser súbita e durar pouco tempo, em indivíduos em crise, ela tem uma duração bem mais longa.
Verificando todos esses elementos do comportamento de uma pessoa em Crise de PTSD é impossível não reconhecer vários indícios em comum com os Berserker. As evidências parecem se encaixar perfeitamente e fazer todo sentido.
Poderiam então, os poderosos Guerreiros Berserker das Sagas Vikings, serem nada mais do que pessoas comuns sofrendo de uma grave desordem psicológica?
A vida de um guerreiro medieval devia ser realmente aterrorizante: o medo constante de morrer de maneira dolorosa, o horror de se ver em meio de uma batalha sanguinária e a perspectiva de sofrer mutilações, acabavam cobrando um alto preço na mente dessas pessoas. Elas se tornavam duras e reagiam de forma natural com extrema violência. Acrescente a isso uma sociedade que glorificava a brutalidade e temos elementos suficientes para construir guerreiros implacáveis e quase imbatíveis.
E acredite, a última coisa que você iria querer encontrar em um campo de batalha seria um Berserker.