Todo fã de filmes de terror e de H.P. Lovecraft espera ansiosamente por um filme de qualidade inspirado na obra do distinto Cavalheiro de Providence.
Infelizmente as produções inspiradas pela obra de Lovecraft no cinema renderam uma safra variada de filmes no que diz respeito a qualidade. Eu costumo dividir os filmes baseados em três tipos:
1) Aqueles bastante fiéis, sobretudo por serem feitos por fãs, como "The Call of Cthulhu" e "The Whisperer in Darkness" ambos produzidos pela HPLHS (HP Lovecraft Historical Society). Outro que possivelmente seria bem fiel, "Nas Montanhas da Loucura" por Guilhermo del Toro,m nunca saiu da pré-produção, mas quem sabe, ainda haja esperança.
2) Os que embora tenham o título e elementos de contos de Lovecraft, não passam de adaptações, por vezes bastante livres do tema original. Por exemplo, "Reanimator" se passa nos dias atuais, assim como "From Beyond" e "Dagon" que tem apenas o nome em comum com a sua fonte. Mais recente, tivemos a adaptação de "A Cor que Caiu do Espaço" com Nicholas Cage. Eles são inspirados pelos contos originais, mas guardam poucas similaridades além do título, das criaturas e de algumas circunstâncias. Esses filmes, algumas vezes longe de serem ruins, tomam enormes liberdades e deixariam Lovecraft chocado pelas cenas de nudez e violência extrema.
3) E tem aqueles que são simplesmente ruins demais. Filmes oportunistas que se apropriam do título, dos nomes e de personagens dos contos e que embora bebam da fonte do horror cósmico não tem nada a ver com a sua inspiração. São em geral produções rasteiras, lançadas diretamente no mercado de homevideo ou streaming.
Finalmente, há uma quarta vertente. São filmes inspirados no Universo de Horror Cósmico do Mythos, sem contudo assumir isso em momento algum. Exemplos clássicos podem ser "O Enigma do Outro Mundo", "O Culto", "The Void" e outros menos óbvios como "Alien". São filmes "Lovecraftianos sem ser Lovecraftianos".
Esses filmes tem se tornado cada vez mais frequentes, já que o tema tem atraído mais e mais diretores e roteiristas. Esses filmes tem elementos claros de Horror Cósmico: impotência, pessimismo, loucura, isolamento, forças esmagadoras não-naturais e uma ameaça à humanidade. Não há uma ligação direta com o Mythos de Cthulhu, mas para bom observador, ela está bem óbvia nas entrelinhas.
A seguir, temos uma pequena lista de filmes tipicamente lovecraftianos, mas na qual você não ouvirá uma vez sequer os nomes Cthulhu, Dagon, Necronomicom etc... Nem todos são "bons", alguns são meio "estranhos", mas no geral são filmes com uma pitada de tentáculo, aqui e um horror indizível ali.
Confesso que tomei emprestado o mesmo texto que escrevi alguns anos atrás quando preparei um artigo exatamente sobre o mesmo tema. Incrível que de lá para cá, pouca coisa mudou e as referências continuam rigorosamente as mesmas. Continuo esperando "aquele filme" lovecraftiano que vai definir o gênero e fazer jus à literatura de Lovecraft. Enquanto isso, vamos nos agarrando ao que temos.
Sem mais delongas, a lista:
1) SACRIFÍCIO
(Sacrifice, 2020)
Esse pequeno filme independente norueguês gerou algum burburinho ano passado entre os fãs de H.P. Lovecraft carentes de um bom filme com temática dos Mythos de Cthulhu. Embora em momento algum ele deixe claro que se trata especificamente de um filme inspirado por Lovecraft.
A presença marcante de Barbara Crampton, atriz que desde "Re-Animator" tem uma ligação bastante estreita com filmes de horror Lovecraftiano também é um sinal claro da intenção do roteiro e do diretor. Apesar do orçamento obviamente curto, a produção consegue ser boa, com fotografia, aspectos psicodélicos e uma atmosfera assombrada adequada. Ele se passa em um ambiente que ressalta o sentimento de isolamento típico do gênero, uma pequena ilha na costa da Noruega. As atuações do elenco de coadjuvantes também são decentes e não atrapalham em nada o filme.
A história é simples; após o falecimento de sua mãe, Isaac e sua esposa grávida retornam para sua cidade natal em uma remota ilha norueguesa esperando receber uma herança e se reconciliar com o passado. Durante a visita, o casal acaba descobrindo um segredo de família e tem que confrontar uma revelação medonha à respeito de Isaac. A viagem que deveria ser agradável, se transforma em um pesadelo a medida que um Culto Profano ameaça a segurança deles e de seu filho não nascido.
Referências a Lovecraft podem ser encontradas aqui e ali. Os maníacos cultuam um deus marinho misterioso, referido como "O Adormecido" e é claro, há estátuas que remetem a Cthulhu e outros horrores reconhecíveis. Além de tentáculos em CGI e algumas sequências de pesadelos que fazem referência direta a monstros das profundezas. Mas apesar das imagens prenderem o interesse, a sucessão de sonhos bizarros começa a cansar à medida que se tornam repetitivas lá pelas tantas. Há uma reviravolta inesperada no final, mas mesmo ela acaba soando como cliché.
O Sacrifício é divertido, bem feito e claramente produzido por pessoas que conhecem os Mythos e quiseram prestar uma homenagem ao gênero. Infelizmente, nem sempre boas intenções são o suficiente... ainda assim, recomendo para quem se dispuser a assistir sem grandes expectativas.
2) O MENSAGEIRO DO ÚLTIMO DIA
(The Empty Men, 2020)
É uma pena que esse filme tenha passado batido pelos cinemas, sendo lançado direto nas plataformas de streaming sem nenhuma cerimônia. Eu assisti semana passada e achei bem interessante a premissa.
O filme começa na Ásia, com um grupo de amigos viajando pelas montanhas do Butão e descobrindo um horror ancestral oculto numa caverna. Dali, a ação se transfere para um ambiente mais familiar, numa típica cidadezinha dos Estados Unidos. Um grupo de adolescentes inconsequentes acaba invocando uma entidade sobrenatural conhecida como o Mensageiro do Último Dia, um tipo de divindade que vai se aproximando gradualmente de quem o convocou ao longo de três dias. Um ex-policial é chamado pela mãe de uma adolescente para descobrir o que se passa e acaba se envolvendo com uma série de incidentes perturbadores que deixam claro a presença de uma manifestação sobrenatural.
O Mensageiro do Último Dia, que recebeu um título muito ruim e poderia tranquilamente se chamar "O Homem Vazio", tem vários elementos de horror cósmico e claras referências lovecraftianas. A entidade, o tal Mensageiro, é indubitavelmente uma Divindade dos Mythos que manipula a percepção e devasta com a sanidade das pessoas. O filme também trata de Misticismo asiático, em especial as estranhas tradições esotéricas tibetanas com a expansão da percepção, alteração da realidade e da interessantíssima lenda do Tulpa - uma espécie de criatura conjurada pelo pensamento que ganha forma real. Além disso, o filme apresenta um Culto pra lá de bizarro, o Instituto Pontifex um tipo de seita moderna arrepiante que promove uma lavagem cerebral nos seus membros. As cenas em que o investigador tenta entender os rituais bizarros e começa a ver coisas que não consegue explicar são perfeitas e me lembraram algumas das melhores sequências de True Detective em que alucinações vão se misturando com o mundo real.
Infelizmente o roteiro não consegue manter o pique ao longo do filme inteiro que poderia ser um pouco mais enxuto. A investigação é interessante, o mergulho no sobrenatural, sobretudo com as cenas dos rituais do infame Instituto são excelentes, mas a reviravolta final fica um pouco forçada e deixa algumas lacunas em aberto. Poderia ser um pouco mais simples, mas ainda assim, é um filme acima da média.
Fica a sensação que poderia ser melhor, mas vale conferir.
3) A CASA DA PRAIA
(The Beach House, 2019)
As opiniões à respeito desse filme independente menor variam bastante. Dependendo de quem escreve a resenha ele é elogiado pela sua originalidade ou criticado sem dó nem piedade. No fim das contas fica no meio termo. Talvez ele fosse melhor aproveitado se tivesse o formato de um curta metragem, com, quem sabe, 45 minutos de duração, já que a história é bem simples e poderia ir direto ao assunto numa metragem menor.
Na trama, um jovem casal decide passar as férias em uma bela casa de praia. Eles acham estranho que o lugar esteja deserto e não haja vizinhos à vista. Sua tranquilidade é interrompida pela chegada de convidados inesperados e bastante estranhos. Se isso não fosse ruim o bastante, um misterioso nevoeiro que parece transportar uma doença, começa a se espalhar pelas redondezas causando reações inesperadas nas pessoas.
Se a sinopse parece meio vaga, é porque esse filme funciona melhor se você não souber muito a respeito dele. Quanto mais de surpresa o espectador for pego, melhor!
Para alguns o filme pode parecer lento, e de fato é, mas o ritmo da trama vai aumentando na porção final quando a coisa fica tensa. Esse é daqueles filmes de terror que permite ao público se acostumar com os personagens para que mais tarde você se importe com o destino deles. E o elenco de rostos desconhecidos é excelente.
"A Casa da Praia" tem reviravoltas muito inteligentes, nada de sustos fáceis e quase nenhum efeito especial mirabolante, mas o horror corporal produz alguns bons arrepios e certo grau de gore. Vale a pena ficar atento aos acontecimentos e se deixar envolver pela construção da atmosfera que está lá para deixá-lo pouco à vontade. As sequências de pesadelos são especialmente bizarras.
O final é um tanto controverso e abrupto, imagino que nem todos irão gostar de como a coisa termina, mas pessoalmente, eu achei bem satisfatório. Assista por sua conta e risco!
4) A PELE FRIA
(Cold Skin, 2017)
Esse filme foi lançado dois anos antes do celebrado "O Farol", e vai num caminho bem diferente embora também trate de dois homens habitando o farol de uma ilha deserta e tendo de enfrentar uma ameaça desconhecida. Enquanto o Farol se concentra nos aspectos psicológicos, "A Pele Fria" trata do confronto direto contra um inimigo de carne e osso, mas não menos assustador.
No ano de 1914, pouco antes do início da Grande Guerra, um jovem observador climático chega à uma ilha isolada no Círculo Polar Ártico com o intuito de realizar estudos ali. Ele deve ficar no lugar por pelo menos 12 meses. O rapaz se vê obrigado a dividir um velho farol, a única construção na ilha, com um homem estranho e de temperamento violento que conhece terríveis segredos a respeito do lugar. Para sobreviver ao ambiente hostil e ao horror que habita as profundezas, os dois terão de unir forças em uma luta desesperada.
A Pele Fria é tratado por alguns como um simples filme de ação, e de fato há uma boa dose de tiros, explosões e lutas, mas em essência, ele trata da luta desesperada de dois homens com personalidades opostas contra um ambiente hostil e criaturas letais. Eu realmente gostei desse filme!
Esqueça as comparações idiotas que alguns estabeleceram entre este filme e o elogiado "A Forma da Água" de Guilhermo del Toro. A Pele Fria é um horror de primeira que escancara o sentimento de isolamento e investe na estranheza diante do desconhecido, elementos clássicos do Horror Lovecraftiano. E quem assistir esse filme vai encontrar vários acenos de que a trama deve muito aos contos de Lovecraft. De fato, o roteiro foi magnificamente adaptado do livro do espanhol Albert Sanchez Piñol.
Visual, efeitos especiais, trilha sonora, maquiagem e um ótimo elenco, encabeçado por Ray Stevenson (o Titus Pulo da série Roma) tornam esse filme uma pequena joia a ser descoberta. Para fãs do gênero, A Pele Fria, é uma ótima pedida.
5) SYNCHRONIC
(Synchronic, 2020)
Outro filme dentro do gênero Horror Cósmico concebido pela dupla Justin Benson e Aaron Moorhead, responsáveis pelo roteiro e direção de "O Culto" e "Primavera", filmes que se debruçam sobre a mesma temática. Embora Synchronic esteja mais para sci-fi do que horror, a premissa dele é incrivelmente adequada a um filme Lovecraftiano.
Nele, dois enfermeiros que trabalham em atendimento de emergência na movimentada cidade de Nova Orleans, descobrem que um número alarmante de jovens estão sendo afetados por uma nova droga sintética que chegou às ruas. Os efeitos colaterais da substância misteriosa, fazem com que alguns de seus usuários morram em circunstâncias inexplicáveis. Eventualmente, eles acabam investigando o caso e se colocando em grave risco ao se expor aos efeitos bizarros do Synchronic.
De todos os filmes da dupla Benson/Moorhead, esse é o que eu mais gostei.
Anthony Mackie (o Falcão dos filmes da Marvel) e Jamie Dornan (da trilogia Tons de Cinza), que interpretam a dupla de socorristas, tem um excelente desempenho, fornecendo credibilidade à trama. Nas mãos de atores menos competentes, ela poderia não funcionar e comprometer o resultado final. Aqui a química é perfeita!
O desenvolvimento da trama é lento, mas a medida que a história vai se desenrolando, os personagens e o público são contaminados pela mesma curiosidade à respeito da droga misteriosa que dá nome ao filme. As cenas em que as pessoas experimentam os estranhos efeitos colaterais causados pelo consumo do Synchronic são incríveis. Para quem conhece os Mythos, a premissa poderia ser: o que acontece quando se toma uma droga que promove um contato com Yog-Sothoth? Mas isso não é dito em momento algum do filme, deixando as coisas um tanto às cegas.
Uma excelente trilha sonora e ótimos efeitos especiais, colocam esse filme entre os mais interessantes a trabalhar os conceitos lovecraftianos, sem jamais mencioná-los. Um autêntico filme Lovecraftiano, sem ser lovecraftiano! Talvez o melhor exemplo possível disso.
Assistam, não vão se arrepender!
6) O RITUAL
(The Ritual, 2017)
Eu penso que esse filme merecia uma resenha mais longa e detalhada, já que na minha opinião é um ótimo filme lovecraftiano. "O Ritual" é um dos melhores filmes de terror dos últimos anos, embora muita gente tenha torcido o nariz para ele. Estranhamente essa produção do Netflix não apareceu no catálogo aqui do Brasil, o que é bem estranho!
Pra começar, "O Ritual" se difere bastante dos filmes de terror que estamos habituados. Não temos que aguentar um bando de adolescentes insuportáveis festejando na floresta, não temos pessoas se comportando estupidamente a ponto de nos fazer pensar "sério?" e ele não envolve uma casa mal-assombrada, possessão diabólica ou assassinos em série... Nada disso!
Aqui o filme tem um toque muito mais "realista". Os personagens são pessoas normais e se comportam como qualquer um de nós, se confrontados com uma situação limítrofe da qual não existe escapatória. Filmes em que você se flagra perguntando: "O que eu faria se isso acontecesse comigo" geralmente são indicativo de uma história atraente.
A trama é simples e aparentemente corriqueira. Um grupo de amigos se reúne depois de muito tempo para planejar uma caminhada por uma floresta na Suécia. Quando um deles acaba sofrendo um acidente, o grupo não têm escolha a não ser pegar um atalho e cruzar um trecho isolado da mata à procura de uma cabana abandonada. O problema é que algo inominável habita essa mata fechada.
Eu sei o que vocês estão pensando: a sinopse parece igual a centenas de outros filmes meia-boca. Mas aí que está o mérito de "O Ritual". Ele pega um cliché e transforma em algo muito bem feito. A atmosfera claustrofóbica vai se tornando cada vez mais opressiva, ainda que o "monstro" não seja mostrado, deixando o público descobrir junto com os personagens qual o verdadeiro horror oculto na floresta. A natureza selvagem e o brutal isolamento são responsáveis por boa parte do suspense e do clima. Acrescente a isso um monstro bizarro com um design que parece ter sido tirado dos contos mais sinistros de Lovecraft, e pronto!
Agradeço a um amigo que assistiu esse filme e recomendou que eu também o visse o quanto antes. "O Ritual" é prova de que uma premissa simples mas conduzida com eficiência, pode se tornar uma experiência aterradora.
Bom, aí está... uma lista de filmes que valem a pena assistir, essa safra foi boa.
Concordo que A pele fria e o excelente O ritual são filmes muito bons, merecem uma boa resenha; o Sincronic é mais ou menos muito arrastado, os outros eu realmente achei bem fracos.
ResponderExcluirConsegue indicar em quais serviços de streaming conseguimos achar os filmes?
ResponderExcluirA Pele Fria, sincronic e o ritual era da Netflix.
ExcluirMensageiro do Último Dia e Syncronic estão no catálogo do Telecine e no NOW.
ExcluirPele Fria na Amazon
Existe uma previsão de "O Ritual" entrar no Netflix, mas até aqui nada. Os demais, ainda não estão disponíveis em serviços de Streaming.
O filme Raízes Macabras de 2021 também é um baita filme.
ResponderExcluirExcelente. Alguns não conhecia, vou procurar e assistir.
ResponderExcluirDeveriam fazer mais posts como esse ... Abrangendo seriados e livros com a temática lovercraftiana
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ResponderExcluirTem um filme também que, mesmo sem citar os Mythos, é bem interessante e pode entrar nessa leva. É o The Veil A seita de 2016, bem interessante e reconendo
ResponderExcluirO Ritual é baseado em livros de Adam Nevill. Muito bom o filme. Indico também pra quem gostou de O Ritual que vejam Ninguém sai vivo, que é um filme q se passa no mesmo universo e é baseado também nos livros do mesmo autor. (Porém, rolou umas modificações na obra.)
ResponderExcluirAlguém já viu?