É inegável que o Cinema de Terror se beneficiou enormemente do diabo e da possessão demoníaca. Nas últimas décadas, um gênero a parte se formou ao redor do tema, influenciado enormemente pelo sucesso pioneiro do filme O Exorcista. A produção de 1973 não foi apenas um divisor de águas dos filmes de terror, recebendo um reconhecimento inédito para um filme do gênero, mas abriu espaço para dezenas - quem sabe até centenas de outros filmes com assunto similar. O inocente possuído por forças malignas, a personalidade subitamente alterada, pervertida por uma entidade invasora, tudo isso já foi explorado ad-nauseum.
A última tentativa de revisitar o tema é mais uma sequência da saga de Exorcista, com o subtítulo o Devoto. Para surpresa de absolutamente zero pessoas, foi um fracasso ao bater na mesma tecla de sempre.
Entretanto, quase que ao mesmo tempo, outro filme de possessão demoníaca roubou o foco e a atenção de críticos e público e é desse que eu prefiro falar.
Dirigido pelo argentino Demien Rugna, Quando Chega a Escuridão (no original "Cuando achega la Maldad" ou ainda When Evil Lurks em inglês) escapa da fórmula dos espíritos malignos se insinuando sobre crianças, e oferece uma noção bem distinta, apresentando uma força sobrenatural que se espalha como uma doença, contaminando com perversidade tudo o que toca. O conceito é uma mudança muitíssimo bem vinda.
Lançado pela pequena IFC Films a produção chegou a apenas algumas salas fora de seu país, mas o boca a boca começou a circular entre os fãs, atraindo um público considerável para um filme estrangeiro de pequeno orçamento. Rugna fez sua estreia no circuito internacional alguns anos atrás com o excelente Aterrorizados, que também criou burburinho entre os entusiastas do gênero. Guillermo del Toro inclusive esta produzindo uma versão americana do filme e sua sequência pelas mãos do diretor também já foi anunciada. Mas é o novo filme que está chamando a atenção, criando o que os críticos norte-americanos estão chamando de "Satanic Hispanic". E toda essa repercussão é mais do que merecida, o filme é ótimo! Tanto que muita gente está elegendo esta pequena joia do cinema argentino como o melhor filme de Terror do ano.
É para tanto? Vejamos...
A trama se inicia com sons noturnos alertando os protagonistas sobre algo muito errado acontecendo perto de casa. Tiros são ouvidos à distância e estes despertam os taciturnos irmãos Yazurlo, Pedro (Ezequiel Rodriguez) e Jimi (Demian Salomon) que vivem em uma propriedade rural lá nos cafundós da Argentina. Esperando até o amanhecer para investigar, eles fazem uma descoberta tétrica em uma floresta próxima – a parte inferior de um cadáver, dividido ao meio. Ao redor do corpo mutilado descobrem evidências indicando que o sujeito era uma espécie de Exorcista contratado para expulsar alguma entidade hostil. Os dois ficam assustados, e começam a buscar notícias sobre possuídos na região onde vivem. Eventualmente isso os leva até um barraco habitado por Maria Elena (Isabel Quinteros) e seus dois filhos, um dos quais se encontra tomado pela entidade maligna. Uriel (interpretado por diferentes atores sob uma grande quantidade de maquiagem medonha) está confinado em seu quarto, inchado, coberto de pústulas, vazando fluidos nojentos. Ele está vivo, o suficiente para implorar: "Mate-me".
Aparentemente, a coisa já se arrasta há um ano e embora as autoridades locais tenham sido notificadas, ninguém fez nada para sanar a situação. O exorcista demorou demais para responder e quando veio não conseguiu cuidar do problema. E que problema! Os Yazurlos insistem com a polícia para agir, mas os policiais os ignoram sumariamente. Percebendo que de alguma forma terão que lidar com o problema sozinhos, os irmãos recrutam um fazendeiro vizinho, Ruiz (Luis Ziembrowski), cuja principal preocupação é com a queda no valor de sua propriedade. A ideia dele para lidar com a questão é simples: mover o possesso quase morto e desovar o "podre" (termo repetidamente usado para os possuídos) em algum lugar. À contra gosto, os irmãos topam arrastar o pobre diabo até a caminhonete e dirigir até uma área deserta e inóspita onde podem descartar a criatura.
No início é difícil entender como funcionam as superstições locais sobre entidades diabólicas e o que elas representam, mas esse estranhamento ajuda a criar uma sensação esquisita que permeia o filme inteiro. Não se sabe se aquilo é mera superstição, folclore ou se os personagens acreditam nessas coisas. De uma forma ou de outra, há várias crenças e regras sobre como se deve lidar com um possesso, sendo que uma delas deixa claro que ele sob hipótese alguma ele deve ser morto, pois isso acaba espalhando a praga.
Aparentemente, mover o "podre" também acaba sendo uma péssima ideia. O objetivo deles é simplesmente transferir o problema adiante. De qualquer forma, depois de terem dirigido o suficiente, os homens descobrem que sua carga desagradável se perdeu no caminho e que o problema continua. Coisas cada vez mais terríveis começam a acontecer ao seu redor e os irmãos decidem fugir o mais rápido possível para tentar escapar da mácula que liberaram na terra. Durante a fuga, os dois tentam avisar a ex-mulher de Pedro (Virginia Garofalo) e os filhos. A continuação da fuga eventualmente leva à contratação de outro exorcista, mas a essa altura, a força demoníaca pode estar em qualquer lugar habitando qualquer um, pois é capaz de reanimar cadáveres, controlar animais e manipular os vivos através de ilusões.
As situações grotescas vão se acumulando umas sobre as outras em uma sucessão de cenas viscerais e extremamente sangrentas. E é aí que o filme se sobressai! O roteiro costura as cenas de horror de forma a encadear os sustos e tirar o espectador de sua zona de conforto. A coisa vai piorando, mais e mais até o gorefest final quando o paradeiro do possesso - e seu plano diabólico - são descobertos.
"Quando chega a Escuridão" tem um desenvolvimento muito bem feito e em termos de escala, é bem mais ambicioso do que Aterrorizados, transferindo a ação para uma fronteira maior. Enquanto o primeiro se limitava a uma casa e bairro assombrados, aqui temos um território muito mais amplo. Outro mérito da história é que os objetivos da entidade permanecem obscuros, praticamente insondáveis aos mortais. Ele é o mal em estado puro, uma força de caos implacável que existe apenas para atormentar os vivos e fazer com que eles sejam pervertidos. Curiosamente, não se trata de algo que pode ser combatido por crenças ou rituais religiosos, mesmo o trabalho dos "exorcistas" se desprende de inclinação teológica. O engajamento se dá através de crendices e rumores - por exemplo, a regra de não usar luz elétrica pois o espírito surge nas sombras criadas por lâmpadas.
Acompanhar os personagens em sua fuga desesperada, tentando se distanciar da área de influência da entidade, é uma agonia. Onde quer que eles vão, a presença dessa sombra maldita já parece ter chegado, não poupando ninguém - nem estranhos, nem amigos, sequer parentes. Uma das virtudes do filme é ser imprevisível e se recusar a dar trégua aos protagonistas (e por tabela ao público). Apesar de se recusar a amarrar as pontas soltas ou mesmo explicar o que se passa, o roteiro não frustra as expectativas, abrindo o apetite para episódios futuros, onde essas preocupações provavelmente serão abordadas. Nesse ponto, "Quando espreita a escuridão" pode ser o ponta-pé inicial de uma nova franquia.
O elenco é afiado e sua a camisa com personagens frequentemente espinhosos e irritantes, sempre retratados de modo convincente, permitindo-nos engolir a insistência do roteiro de que quase todos ali aceitam a realidade de uma invasão demoníaca com pouco ceticismo ou protesto. A atmosfera ajuda a imprimir um ritmo que altera momentos de contemplação com outros de ação vertiginosa. Já os efeitos visuais, todos eles práticos, estão ali para auxiliar a violência e fazer com que ela pareça sempre chocante. Em termos de impacto, o filme possui duas ou três cenas de cair o queixo. Sério mesmo, uma delas me pegou de surpresa de tal forma que eu dei um pulo do sofá.
"Quando chega a escuridão" pode ser confuso e quase arbitrário em alguns momentos, mas inegavelmente é um conceito inovador. Ele introduz um elemento diferente aos filmes de possessão concedendo novidade e frescor onde antes reinava a mesmice estéril. É uma façanha que ninguém havia ousado tentar. Se vai ser o bastante para renovar o tema, é cedo para dizer, mas com certeza é uma viagem estimulante de pavor.
Trailer:
Poster Oficial:
Esse filme foi uma grata surpresa! O cinema argentino é ousado genial.
ResponderExcluirO roteiro tem algumas conveniências, mas ainda assim é um grande filme. Certamente um dos destaques dentro do gênero.
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