Blade Runner – The Roleplaying Game oferece um vislumbre incrivelmente pessimista de um mundo escuro, claustrofóbico e simplesmente aterrorizante. Nessa ambientação retro futurista os jogadores são confrontados com um cenário de incertezas onde até mesmo aquilo que os define como "humanos" é colocado em dúvida.
Bem vindos ao futuro, em uma Los Angeles devastada pela guerra, poluição e degradação ecológica, onde a escuridão é quebrada por anúncios de neon, promessas de um mundo melhor (para uns poucos) e a certeza de uma vida sem sentido. A existência nesse ambiente é pontilhada pela luta diária por sobrevivência na selva urbana. É nessa metrópole gigantesca que membros da força policial tentam impor a lei e a ordem em meio ao caos reinante. A maior ameaça pode assumir a forma de qualquer pessoa, pois misturados na multidão escondem-se perfeitas réplicas de seres humanos. Eles se mantem ocultos entre aqueles que foram criados para servir. Eles atendem pelo nome de Replicantes, androides mais fortes e mais rápidos que nós, que farão qualquer coisa para sobreviver. Os jogadores assumem o papel de Blade Runners, implacáveis Caçadores de Androides.
O ano nominal do jogo é 2037. A Wallace Corporation se tornou a empresa mais rica e poderosa do mundo, usando os avanços e patentes da devastada Tyrell Corporation. Num mundo de Mega Corporações interessadas em controlar cada aspecto da sociedade, ela é o jogador mais poderoso. Na cronologia do jogo, a Wallace acaba de introduzir o Nexus-9, um modelo de replicante mais avançado do que tudo criado até então. As Nações Unidas classificaram os Nexus-9 como replicantes “seguros” e concedem-lhes o estatuto de cidadãos de segunda classe com direitos limitados. Mas até que ponto eles são confiáveis e até que ponto a humanidade irá aceitá-los?
As Unidades Rep-Detect (Blade Runners) da policia são responsáveis por investigar crimes relacionados a replicantes e algumas até empregam unidades Nexus-9 em suas fileiras. Cada cenário de Blade Runner RPG apresenta uma investigação – ou Case File, no qual um pouco desse vasto submundo de intriga e sordidez vem à tona. E cabe aos personagens chafurdar nesse mar de lama e decidir expor ou não as suas entranhas.
Essa é a premissa básica de Blade Runner RPG, publicado pela Free League Press, uma das editoras mais bem sucedidas dos últimos anos, responsável por material de alta qualidade como Alien, Tales from the Loop, Forbidden Lands e vários outros títulos que tem conquistado cada vez mais destaque. Blade Runner é baseado no romance "Do the androids dream with eletrical sheep?" de Phillip K Dick, um dos marcos da literatura sci-fi, embora a inspiração maior seja a clássica versão cinematográfica de 1982 e a mais recente de 2019. Bebendo dessas fontes, Blade Runner RPG surgiu como uma ambientação cercada de enorme expectativa.
Mas o que esperar desse jogo?
O material básico de Blade Runner foi publicado em dois formatos. O primeiro mais tradicional é o Livro Básico, contendo as regras completas e os detalhes da ambientação. Ele oferece todo o pano de fundo para construir aventuras nesse universo sufocante e criar suas próprias investigações. O segundo lançamento é o Starter Set, uma caixa com material mais sucinto contendo as regras que possibilitam o jogo (sem aprofundar em detalhes), uma longa aventura introdutória e uma série de agrados como mapas, cartas, fichas, recursos do narrador, dados e tudo mais necessário para jogar.
Do ponto de vista da Editora é uma bela jogada de marketing. O Starter Set é incrível, o material é de altíssima qualidade, mas para conhecer todos os detalhes e segredos da ambientação, o ideal é ter também o Livro Básico. Ou seja, no fim das contas, quem se interessar pelo jogo vai acabar precisando ter ambos já que eles se complementam.
O Livro Básico apresenta o panorama completo desse universo, explicando como o mundo se transformou naquele inferno de alta tecnologia, estéril e impessoal. Ele oferece uma cronologia dos eventos principais e de como o surgimento dos Replicantes alterou o curso da história humana. De como nossa espécie se lançou em uma corrida rumo ao espaço onde nem todos são bem vindos e onde corporações megalomaníacas decidem o rumo da sociedade. Explica também os detalhes de um evento chamado Black-out que devastou o mundo digital e tornou tudo ainda mais difícil e confuso. Entender como o mundo de Blade Runner se degradou é essencial para mergulhar na proposta da ambientação e entender como pensam os personagens inseridos nele.
O tema central do jogo envolve investigações policiais numa pegada noir. Embora os personagens sejam essencialmente Caçadores de Replicantes, há uma vasto leque de histórias que podem ser contadas. Não são apenas aventuras envolvendo androides em fuga, há espaço para terrorismo, contrabando de armas, corrupção, espionagem industrial, combate a sindicatos de crime organizado e o que mais o mestre quiser trazer. O ambiente de Blade Runner é rico em possibilidades narrativas e na minha opinião é um dos melhores para simular procedimento policial e investigativo.
As investigações transcorrem em turnos (shifts) - um dia, é dividido em quatro turnos cada um de seis horas. Os policiais precisam realizar diligências, colher testemunhos e efetuar apreensões, e ainda encontrar tempo para descansar e escrever relatórios para seus superiores. Os jogadores são aconselhados a se dividir e seguir caminhos diferentes para maximizar a descoberta de pistas. Haverá momentos em que o grupo terá de se separar e assim cobrir uma área maior já que LA é uma metrópole gigantesca.
Um investigador sofre Stress - seja por tentar forçar o sucesso em testes que falhou, por trabalhar sem o devido descanso ou por ser confrontado com situações limítrofes. Caso eles sofram mais stress do que podem suportar, os personagens são "quebrados" e tem que lidar com limitações, medo e apreensão. Ao simular a dureza do dia a dia e as terríveis escolhas que os personagens tem que fazer durante uma investigação, o sistema se mostra bastante inovador. Um personagem "quebrado" fica comprometido mentalmente, não consegue responder ou agir, se ele for um Replicante, a coisa é ainda pior! Os androides, mesmo os avançados Nexus-9, não conseguem lidar bem com o stress mental e acabam surtando. Para ajustar essas questões, precisam passar por um teste que restaura sua condição, mas que mina seus progressos para se ajustar e se comportar como humanos.
Um investigador em Blade Runner RPG é criado de forma bem simples. Os personagens tem quatro Atributos - Força, Agilidade, Inteligência e Empatia, e treze Habilidades, três governadas por cada atributo. A décima terceira habilidade é Conduzir Automóvel, cujo atributo está ligado ao Veículo sendo dirigido. Tanto os Atributos quanto as Habilidades possuem uma letra que específica o quão capaz seu personagem é naquele pormenor. "A" significa que ele é extremamente capaz em um atributo e muito competente numa habilidade, enquanto "D" denota uma capacidade reduzida e habilidade ínfima. "B" e "C", constituem valores medianos. As letras correspondem a um tipo específico de dado que formará a parada de dados a ser usada para os testes. Um "A" se traduz em um d12, o "B" é igual a um d10, o "C" um d8 e o "D" equivale a um d6. Quanto mais alto o dado melhor.
Para realizar um teste, o jogador rola um dado equivalente a letra de seu atributo e um para a letra da Habilidade a ser testada. Por exemplo, se ele testar Armas de Fogo onde tem um "B", a Habilidade é derivada de Agilidade onde ele tem um "A". Nesse caso, ele irá rolar dois dados, um D12 e 1d10. O número alvo em qualquer rolagem de dados é 6 que simboliza um sucesso. Rolamentos de "10" ou mais se traduzem em dois sucessos. Geralmente um sucesso basta para a tarefa ser realizada, contudo, múltiplos sucessos resultam em maior competência, presteza ou resultados mais expressivos. Nos combates quanto mais sucessos obtidos, maiores os danos infligidos e maior a chance de produzir um dano crítico (e danos críticos aqui são devastadores).
Uma tarefa simples garante uma Vantagem. Nesse caso, o jogador recebe um dado adicional para o teste no valor do menor dado rolado. Por outro lado, uma tarefa especialmente difícil impõe uma desvantagem que remove o dado mais baixo. Se os dados não ajudarem, o personagem pode Forçar o teste e tentar novamente, sabendo que receberá um ponto de Stress e um adicional por qualquer resultado "1" que obtiver na segunda tentativa. Um humano pode Forçar o teste uma única vez, já um Replicante pode fazer isso duas vezes.
Além disso, os investigadores possuem Especialidades que são façanhas específicas que os personagens realizam e que estão associadas aos Arquétipos escolhidos no momento de sua criação. Esses Arquétipos - que funcionam grosso modo como classes, definem quem é seu investigador e qual função ele desempenha na Força Policial de Los Angeles. Entre os Arquétipos disponíveis temos o Inspetor, que é o Detetive por excelência, o Analista Pericial que processa as pistas, o Porta Voz versado em lidar com o público, o Enforcer que é basicamente um matador de androides, o Fixer especializado em agir no submundo e conseguir itens clandestinos e o Skimmer, um tira corrupto que opera à margem da lei. Além disso, temos o Doxie, um arquétipo usado apenas por Replicantes treinados como policiais.
O sistema de Blade Runner RPG é um derivado direto dos engines da Free League. Quem já jogou qualquer um dos títulos da editora, vai reconhecer elementos comuns nesse sistema com outros, especialmente Alien e Tales from the Loop. A principal diferença é que em Blade Runner há o uso de outros dados além do d6. Em essência, o sistema é bem similar e fácil de compreender, assim como todas variantes do Year Zero original.
A ficha de personagem é complementada por outros dois elementos importantes. O primeiro deles é uma Memória Chave que pode ser usada uma vez por sessão de jogo para auxiliar em um teste importante. Além disso, os personagens possuem Relações Chave, pessoas importantes que os ajudam a superar o Stress sofrido e se recompor mais rápido. Usar esses recursos em jogo também se traduz em ganhar pontos de Humanidade no final da sessão que podem ser gastos para melhorar suas habilidades. Por fim há Pontos de Promoção, que ajudam seu personagem a progredir dentro da Força Policial de Los Angeles, mas que podem ser queimados para obter favores, contatos e equipamento no decorrer de um caso. No final de uma Investigação os jogadores ganham pontos de Promoção dependendo do seu sucesso. Eles também podem ser trocados por avanços na sua ficha como um tipo de Experiência (XP).
Mecanicamente, Blade Runner RPG é bastante simples e intuitivo. Não vou tentar dissecar cada aspecto e pormenor das regras nessa resenha, mas posso dizer que os jogadores e o mestre não encontrarão muita dificuldade em fazer com que o jogo role sem grandes imprevistos no que diz respeito a mecânica do sistema. Aliás, esse é um grande ponto a favor do jogo, manter as regras leves para permitir uma melhor descrição e interpretação.
Vou fazer só um adendo a dois elementos específicos presentes nas regras que precisam ser salientados.
O primeiro é o sistema de Perseguições (Chases) que oferece uma mecânica para simular esse tipo de situação muito corriqueira em cenários policiais. Blade Runner tem uma forma de emular as perseguições policiais, seja a pé ou usando veículos, de uma forma bastante simples. Através de rolamentos de dados e comparações de resultado em tabelas as perseguições pelas ruas apinhadas de civis ou pelos céus da cidade à bordo de Spinners (os carros voadores). Estas perseguições podem ser bem empolgantes e trazer resultados imprevisíveis. Geralmente não sou muito fã desse tipo de regra. Em Chamado de Cthulhu, por exemplo, eu sequer utilizo, mas aqui achei bem interessante e proveitoso.
O segundo elemento que merece destaque nas regras é a forma como se dá a resolução dos combates. Acredite em mim que você não vai querer lutar nesse jogo. Isso porque, em Blade Runner, o combate é rápido e potencialmente letal para todos envolvidos. A Iniciativa é decidida através de cartas e as ações se traduzem em movimentos, golpes desferidos ou tiros disparados. Até aí nada demais, certo?
O grande diferencial é que sucessos em um teste para acertar o oponente resultam em dano crítico com incrível facilidade. Para que um ataque se torne crítico, só é necessário acumular dois ou mais sucessos o que não é tão difícil dependendo dos dados usados. Os acertos críticos por sua vez, são devastadores não apenas causando mais dano, mas abrindo um leque de possibilidades que englobam ferimentos debilitantes e letais. Um acerto crítico em um tiro pode ser mortal se acertar na cabeça ou perfurar um órgão interno. Mesmo áreas não vitais atingidas em um rolamento crítico podem gerar graves desvantagens e minar a capacidade de continuar lutando. Como resultado, ouso dizer que Blade Runner talvez tenha o sistema de combate mais mortal dentro os jogos da Free League. Aqueles que entrarem em um combate de forma displicente arriscam perder o personagem muito rápido. Isso sem dúvida incentiva os jogadores a tomar cuidado e buscar maneiras criativas de lidar com as situações, sem descambar para a troca de sopapos ou tiros. A violência dos combates é um fator bastante significativo no sistema e que torna qualquer resolução imprevisível ao extremo.
O Livro Básico traz mais detalhes sobre o funcionamento do Departamento de Polícia de Los Angeles onde os investigadores estão baseados. Ele lista alguns dos recursos disponíveis e como funcionam as instalações que auxiliam os investigadores enquanto estes tentam elucidar o Caso. A "Torre", a sede do Departamento, fornece uma estrutura auxiliar para alavancar a análise de pistas e a proteção de suas fontes. Esse capítulo é bem útil para o Narrador pois discute o funcionamento do sistema e como coordenar a dinâmica dos Casos.
O equipamento tecnológico disponível é abordado no Capítulo "Ferramentas do Negócio" que inclui a utilização de itens como a Máquina Voight-Kampff e o Teste Base Pós-Traumático, empregados em interrogatório para descobrir replicantes ocultos. As traquitanas tecnológicas também merecem destaque com uma fartura de itens que podem ser requisitados para ajudar na investigação. Além disso, temos uma lista de armas e veículos, incluindo a famosa Pistola PK-D Blaster, além do clássico LAPD Spinner – Modelo de Detetive, o Carro voador visto nos filmes. O trabalho de adaptação dos itens presentes no filme é excelente e denota que os autores pesquisaram o material original e extraíram dele tudo o que podiam.
Infelizmente, o Livro Básico não inclui uma aventura pronta para mostrar ao Narrador o caminho das pedras. O Starter Set, por outro lado, possui uma aventura longa e bem intrincada. O Arquivo do Caso tem como título Electric Dreams. Na verdade, ele é a primeira parte de um arco de campanha chamado ‘The Immortal Game’, que a Free League pretende lançar em seus próximos suplementos. Electric Dreams se inicia com uma cena clássica quase exatamente como a da introdução de Deckard em Blade Runner. É um toque genial, que conecta os jogadores a fonte de inspiração do RPG - por sinal, aconselho a narradores e jogadores assistir os filmes para se familiarizar com termos e elementos.
A investigação envolve um Replicante desaparecido, que trabalha para a Unidade Rep-Detect. Os investigadores são designados para descobrir seu paradeiro. A investigação é apoiada por uma série de recursos de alta qualidade para os jogadores manipularem, uma contagem regressiva de eventos para o narrador desencadear, eventos de tempo por inatividade para tornar a vida do Investigador mais interessante e descrições de pistas, locais e NPCs. Há conselhos sobre como conduzir a história com um, dois ou três investigadores e sobre como substituir personagens perdidos ou afastados. O cenário é bastante complexo e provavelmente levará várias sessões para um grupo chegar ao fim dele, já que os Investigadores precisam se dividir para cobrir múltiplas trilhas de pistas. A conclusão potencialmente levará a escolhas questionáveis à medida que mais e mais mistério são revelados e os Investigadores têm de escolher qual o melhor curso a seguir. Os fãs de Blade Runner irão certamente gostar, pois a trama visita diversos locais familiares e introduz personagens vistos nos filmes.
Fisicamente, Blade Runner – Roleplaying Game é muito bem produzido e realizado. Tanto o Starter Set quanto o Livro Básico contém material de primeira qualidade, o texto é distribuído em caixas ao longo das páginas em fundos predominantemente escuros. A arte é excelente, lembrando muito o estilo visto em Alien RPG, com cenas evocando a aura sufocante de uma cidade escura e assustadora - super povoada, suja e repleta de sombras e luzes de neon. Eu gostei muito dessa arte e de como ela contribui para construir a atmosfera geral da ambientação. O projeto de cartografia é ótimo, sobretudo no imenso mapa que acompanha o Starter Set e que mostra os detalhes da conturbada geografia urbana da Los Angeles de 2037. O material que acompanha o Starter Set é incrível, incluindo as cartas que agilizam iniciativa e as cenas de perseguição, passando por Recursos do Narrador incríveis com folhas de jornais e capas de revistas, além de um conjunto de dados personalizados. É um prazer abrir uma caixa contendo material de tamanha qualidade e esmero.
Blade Runner – The Roleplaying Game é um excelente acréscimo a linha de produtos da Free League e uma demonstração de como essa empresa sueca está rapidamente se transformando em uma das principais criadoras de jogos na atualidade, Com material muito bem produzido e temáticas excitantes a Free League se coloca como um dos nomes mais quentes do mercado, capaz de atrair mais e mais jogadores a cada anúncio feito.
O material irá atrair agradar os fãs dos filmes Blade Runner, bem como os entusiastas de ficção científica, do gênero cyberpunk e de neo-noir, mas também irá agradar aqueles que gostam de investigação e procedimento policial. Ainda não há previsão de uma editora trazer esse jogo para o Brasil, mas não duvido que isso aconteça dentro em breve. Quem conseguir colocar as mãos nele terá um belo material.
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