Um evento tão marcante da história humana, é claro teria de causar todo tipo de repercussão. O Velho Mundo nunca mais seria o mesmo após o fenômeno das Cruzadas.
Mas o que um acontecimento de tamanha proporção trouxe ao Universo dos Mythos?
Guerras sanguinárias, conflitos em larga escala e transformaçoes sociais profundas sem dúvida operam mudanças que são sentidas mesmo pelas entidades de Cthulhu e seus abomináveis servos.
A Europa sempre foi um terreno fértil para a proliferação dos horrores ancestrais. Cultos atávicos sempre agiram nas sombras, venerando seus deuses blasfemos e realizando seus rituais profanos em altares e templos ímpios. Artefatos portentosos forjados em tempos remotos estavam perdidos, bem como ruinas de povos e civilizacoes, nem todas humanas. Textos proibidos circulavam, protegidos por cabalas de poderosos feiticeiros ciosos de seu conhecimento ssquecido.
O Oriente Médio, berço das mais antigas Civilizações também escondia uma infinidade de mistérios e segredos. Povos ancestrais tiveram contato direto com os horrores além da esfera do tempo e espaço. Eles comungaram intimamente com esses Deuses e beberam de sua sabedoria medonha. Foi ali que alguns dos mais antigos cultos se formaram e foi a partir dali que eles se espalharam carregando consigo a semente dos antigos e sua liturgia de loucura e danação.
Quando Ocidente e o Oriente se enfrentaram num conflito sanguinolento, os Mythos encontraram uma forma de espalhar, uma vez mais sua mácula.
Se por um lado, a decadência do Império Romano, que por séculos controlou o Mundo Antigo, mergulhou a Europa no obscurantismo, por outro, isso contribuiu para conter, ao menos em parte, a disseminação do Mythos.
Com um continente dividido numa colcha de retalhos de reinos e feudos, a proliferação do Mythos ficou muito mais restrita. Pequenos enclaves ainda detinham conhecimento profano, mas este raramente circulava além de suas fronteiras. A superstição que cobriu a Europa como um manto de ignorância serviu para ocultar o saber de teóricos e estudiosos do Mythos.
Numa sociedade em que o conhecimento estava ao alcance de poucos; livros, manuscritos e documentos se tornaram incrivelmente raros. As conquistas da ciência foram nubladas junto com tratados esotéricos primordiais à cerca do Mythos. O pouco que sobreviveu ficou trancafiado nas bibliotecas dos monastérios, escondido dos olhos de curiosos e da vigilância de ensores. Boa parte desse conhecimento foi lançado em fogueiras crepitantes, acesas pela Igreja Cristã que fez arder igualmente papel e carne.
É irônico como a Era Medieval através de seu obscurantismo flagrante, conseguiu reter, ao menos em parte o perigoso saber do Mythos.
Talvez esses segredos tivessem se perdido por completo, se não fossem resgatados por volta do ano 1000, quando o Al Azif, pérfido tratado escrito pelo árabe louco Abdul Al Hazred foi traduzido como o Necronomicom. As palavras escritas nesse tomo medonho circularam pela Europa contaminando todos que o leram. É certo que a Cruzada ajudou a disseminar seu conteúdo.
Mais do que um fenomeno militar e religioso, a Cruzada foi um evento que colocou frente a frente diferentes povos e permitiu a troca de experiências. Se por um lado, esse contato resultou em guerra, preconceito e genocídio, por outro despertou curiosidade e certo grau de interação entre os oponentes.
Pela primeira vez em séculos as forças adormecidas do Mythos despertaram para sondar seus arredores em busca de oportunidades. Seus tentáculos há muito retraídos, puderam, uma vez mais se lançar e tocar o que estivesse ao seu alcance.
Tamanha a importância das Cruzadas para a disseminação do Mythos que alguns teóricos se perguntam se não teria sido o conceito geral sussurrado nos ouvidos dos homens por alguma astuta entidade. Sabe-se que Nyarlathotep sempre participou, por vezes diretamente, de momentos pivotais da história humana. Imaginar o Caos Rastejante instigando religiosos a inflamar tanto nobres quanto camponeses a marchar rumo ao Oriente numa Cruzada Santa que desvirtuaria para chacina e loucura, não parece mero exercício imaginativo. Dada sua natureza caótica, Nyarlathotep poderia ser o responsável por agitar o caldeirão Medieval fazendo borbulhar o desejo pela retomada da Terra Santa.
Poderia ser o Caos Rastejante a verdadeira força motriz por traz da Cruzada? Ele, que é famoso por atuar nos bastidores poderia influenciar comandantes, generais e Papas? Quantas piadas trágicas o sardonico Nyarlathotep seria capaz de pregar na humanidade dessa maneira atroz?
Enviando visões, profecias e portentos ele tentaria a Europa a se lançar numa vã expedição.
A Cruzada movimentou milhares de pessoas, ela contagiou nobres influentes e camponeses ignorantes com igual furor religioso. Do dia para a noite, as pessoas largaram suas ocupações e se colocavam a marchar pelas estradas tortuosas da Idade Média.
O que poderiam ter encontrado a caminho dessa grande aventura?
Nos recessos ermos de florestas, em recantos inóspitos e em desertos desolados, os Cruzados transpuseram enormes distâncias e exploraram lugares até então pouco conhecidos. O que podem ter achado enquanto perambulavam pelo Leste Europeu ou pelo Oriente Médio?
Estes regiões isoladas são historicamente o lar de criaturas não humanas que ali habitam há séculos. Eles deixaram um sem numero de cidadelas e ruinas. Os Cruzados podem ter explorado tais lugares e perturbado o sono de seres imunes a passagem do tempo. Há lugarejos remotos e vilas temidas, onde a mácula do Mythos reside. Cultistas demonstravam sua devoção através de rituais profanos e camponeses carregavam em seu sangue traços de miscigenação. Certas vilas pesqueiras purulavam com híbridos de abissais, comunidades de Carniçais antropofogos viviam no subterrâneo de cemitérios assombrados e poços profundos serviam de antro para imortais Shoggoth.
Não é difícil imaginar Cruzados, com o espírito elevado adentrando esses covis, acreditando serem capazes de limpar a presença diabólica que os corrompe.
A Cruzada deixou uma marca indelével nas terras por onde passou. O contato entre culturas distintas gerou conflito, contudo é possivel que cristãos e mouros tenham em algum momento colocado suas desavenças de lado para enfrentar algo muito mais incompreensível e chocante. Diante da visão perturbadora do Mythos, preconceitos seriam relevados em favor de uma aliança contra algo que se mostrava claramente inumano.
Tanto cristãos quanto muçulmanos abominavam as práticas de magia negra e condenavam a feitiçaria como um todo. A ameaça de um bruxo ou de uma cabala de feiticeiros poderia render uma missão heroica visando desarticular tamanha infâmia.
Embora feitiçaria fosse mal vista, é inegável que muitos cavaleiros manifestavam interesse no mundo metafísico. Estavam dispostos a abraçar o misticismo e tradições ocultas. Isso se observava com mais frequência nas Sociedades Secretas e Ordens de Cavalaria que se formaram no decorrer das Cruzadas. É de se supor que esses grupos herméticos estivessem cientes da existência do Mythos e que se juntassem em um esforço para revelar, enfrentar e extirpar esse mal.
É provável que essas sociedades não tivessem plena compreensão do que eram essas forças, as interpretando como manifestações diabólicas de base judaico-cristã. Contudo não é impossível que eles tenham bebido do saber presente em livros e manuscritos encontrados em Jerusalém. A cidade foi um verdadeiro depositário de conhecimento místico e ordens como a dos Templários se estabeleceu na Cidade Santa após sua conquista. O interesse no oculto pode tê-los levado a encontrar antigos textos, tomos esotéricos e artefatos ligados ao Mythos. Compreendendo que conhecimento é poder, os Templários podem ter estudado esse material descobrindo a natureza vil dessas entidades nefastas.
Conhecendo o interesse de Ordens de Cavalaria no oculto, é razoável supor que elas também tiveram acesso a magias e rituais. Muitas Ordens tinham seus ritos particulares, mantidos em sigilo e transmitidos apenas aos membros de alto grau.
Talvez eles tenham usado esse saber como uma arma valiosa contra seitas e cultos. Podemos especular que tal conhecimento seria mal interpretado pela Igreja ou mesmo outros Cruzados se exposto publicamente. Esses textos seriam tratados como heresia. Se tal envolvimento fosse trazido à luz, as ordens e seus membros poderiam sofrer perseguições e até retaliação.
Considerando que os Mythos nunca deixaram de existir ou de exercer alguma influência sobre a humanidade é correto inferir que cultos atuavam na época das Cruzadas. Seitas devotadas aos Grandes Antigos operavam no Leste Europeu e no Oriente Médio. Sociedades secretas devotadas a Nyarlathotep naturalmente ainda agiam no Norte da África, sobretudo Egito que sempre foi o seu centro de poder. A Irmandade do Símbolo Amarelo, um secto devotado a Hastur, tinha bases na Arábia e entrava em conflito com agentes a serviço da Grande Raça de Yith. Estes coletavam dados historicos a serem compilados em suas bibliotecas na Aurira do Tempo.
Já os Servos da Chama Viva, acólitos de Cthugha, operavam na Pérsia e na Síria disfarçados em um zoroastrismo rudimentar. Da mesma forma, Yog-Sothoth tinha seguidores fiéis entre feiticeiros na Mesopotâmia. Seitas judaicas misturavam o ensinamento da Cabala com tradições arcanas "Daquele que é Tudo em um só". Isso sem falar do amplamente difundido Culto de Cthulhu cujos membros podiam ser achados da costa do Adriático até o litoral do Mar Morto. Marinheiros do mundo medieval rezavam para o Grande Cthulhu, senhor dos recessos submarinos, pedindo por uma travessia segura através do mar insondável.
O Mediterrâneo também era lar de vários sectos ancestrais estabelecidos há séculos. Na Sicília e em Creta, floresciam comunidades matriarcais dedicadas a fecundidade que serviam a Cabra Negra e seus filhos. Os romanos a conheciam como Magna Mater, mas ela sempre foi Shub-Nigurath. Nos Balcãs, o horror do Cudoviste estava presente em povoados onde sacrifícios eram comumente realizados em altares de pedra ou cavernas. A lendária Pedra Negra de Stregoikavar se erguia em algum lugar das primevas florestas da Hungria. Ela servia como local de encontro para bruxos que extraíram dela poder arcano.
Digno de nota era o sanguinário Culto do Deus Esfolado que operava nas sombras da majestosa Constantinopla. Ele foi responsável por toda sorte de perversão e reuniu em seu auge milhares de seguidores fanáticos. A Quarta Cruzada foi responsável por roubar dessa seita abominável um poderoso artefato, o Sedefkar Simulacrum, uma estátua conectada ao Mythos. Ele desapareceu da capital bizantina em meio ao saque perpetrado pelos cruzados e supostamente foi carregada para a Europa, desaparecendo em algum lugar da França.
Mas deve haver mais, muito mais... informações que se perderam no tempo.
A Cruzada foi uma trágica aventura, uma que comoveu e contagiou todo um continente. Foi o fenômeno mais importante de seu tempo e como tal trouxe mudanças significativas.
A Europa se viu num caminho que a conduziu de uma Era Medieval marcada pelo isolamento para uma série de inovações e conquistas culminando na Era Moderna.
Para o bem ou para o mal, a história de nossa civilização seria muito diferente se a Cruzada não tivesse acontecido.
Eu lembro de ter visto essas imagens do post em um financiamento coletivo para um jogo de cartas, acho que no kickstarter. Não sei se foi bem sucedido, mas era no mínimo interessante.
ResponderExcluirAliás, acho que depois da febre dos anos 2015~2020 eu tenho a impressão de que as coisas que lançam com temática lovecraftiana, bem como o kickstarter como um todo, deram uma esfriada. Você também teve essa impressão?
Eu adorei essas imagens. Já estou pensando em usá-las em adição ao Cthulhu Dark Ages.
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