sábado, 2 de março de 2013

Sob a Luz do Lampião - Suplementos de Call of Cthulhu para a Era Vitoriana


A Era Vitoriana sempre despertou interesse...

Não apenas por ser um período fascinante de mudanças, descobertas e transformações sociais, mas por ser um tempo de enormes contradições. A Era Vitoriana que viu o surgimento de descobertas científicas incríveis, foi a mesma que deu ao mundo guerras, caos e destruição como nunca vistos até então. A era que aboliu a escravidão foi a mesma que abraçou o colonialismo e o imperialismo em seu auge. Se por um lado o progresso chegou rápido na forma das indústrias, por outro os céus foram tomados de fumaça negra e massas de operários explorados. E na mesma época que códigos de conduta e civilidade ditavam o comportamento de damas e cavalheiros, o mundo estarrecido testemunhou o trabalho sangrento de um dos mais brutais assassinos, Jack, o estripador.

Não foi por acaso, que essa época tão marcante atraiu a atenção dos autores do horror cósmico  Lovecraftiano e eles tiveram a sensacional ideia de adicionar a esse caldeirão em ebulição a semente do Mythos de Cthulhu. O resultado, são as três edições de Cthulhu by Gaslight. Uma reinvenção da mitologia lovecraftiana inserida em uma era que definiu a idade moderna.
    
A Chaosium (editora responsável pelo RPG Call of Cthulhu) lançou alguns livros se passando nessa era. Infelizmente não foram tantos quanto os fãs gostariam; sempre achei que Cthulhu by Gaslight merecia mais do que apenas três suplementos, sobretudo por estes livros serem tão bons. Quem sabe agora, com o sucesso da terceira Edição, as coisas possam mudar e vejamos num futuro próximo livros nesse período ou mesmo uma reimpressão de alguns destes títulos (já que todos estão fora de catálogo).

CTHULHU BY GASLIGHT (Segunda e Terceira Edição)  


A Segunda e Terceira edições do Cthulhu by Gaslight tem diferenças substanciais de conteúdo e material. Por muito tempo achei a Segunda edição um dos melhores suplementos de Call of Cthulhu, e foi uma surpresa descobrir que a terceira edição conseguia ser tão boa (talvez até melhor) que a anterior. Acho que não preciso dizer mais do que já foi dito no artigo anterior, eu apenas iria repetir os elogios a esse livro.

Comparativamente, no que a segunda edição se difere da atual. Muito pouco, a não ser pelo longo cenário intitulada "The Yorkshire Murders" estrelando ninguém menos do que Sherlock Holmes. A estória é uma típica aventura de Sherlock Holmes, uma corrida contra o tempo para evitar que o arqui-nêmesis de Holmes o Professor Moriarty (o Napoleão do Crime) consiga completar seu Plano-Mestre, usando como ferramenta nada menos do que as forças nefastas do Mythos. Existe uma química perfeita na mistura resultante de tomos blasfemos, aberrações impronunciáveis, segredos negros tipicamente lovecraftianos com as ruas cobertas de fog, os mistérios complexos e crimes "perfeitos" da obra de Conan Doyle.

É curioso mas eu nunca narrei esse cenário. Em parte pelo tamanho e complexidade da trama (50 e tantas páginas!), em parte por que ela exige um conhecimento profundo da mitologia de Sherlock Holmes e um grupo de jogadores que tenha conhecimento desse mesmo universo.

DARK DESIGNS e SACRAMENTS OF EVIL      


Não é exagero, em absoluto, colocar estes dois suplementos entre os melhores lançados pela Chaosium desde que ela começou a traduzir o Mythos para a linguagem de RPG. 

Eles são os compêndios de aventuras para que o Guardião utilize todas as informações contidas no Gaslight na prática.

Dark Designs contém três longas investigações na Londres Vitoriana, se passando nominalmente entre 1890 e 1895. Não se trata de uma campanha, estando mais para cenários stand alone dado o grau de mortalidade e dificuldade de cada cenário. Cada aventura é longa, com mais de 40 páginas e fartas descrições de acontecimentos e cenas. É o tipo de livro que descreve minuciosamente cada detalhe da trama, o que facilita muito o trabalho do Guardião.

A antologia se inicia com "Eyes for the Blind" que eu posso descrever como um cenário épico. Sem brincadeira, essa aventura envolve os planos nefastos de um cabal de feiticeiros imortais planejando uma nova era de trevas e a consequente queda da humanidade e da civilização. No meu entender essa aventura poderia render muito mais, até ser desenvolvida em uma mini-campanha tamanho a quantidade de possibilidades que ela deixa em aberto.  

O cenário intermediário é "The Menace from Sumatra" uma investigação consideravelmente "menor" a respeito de uma criatura bizarra contrabandeado para a Inglaterra direto de uma de suas colônias e que uma vez no coração do Império se vê livre para espalhar morte e pânico. Curiosamente foi a única do livro que eu cheguei a jogar, e é a menos empolgante, o que não significa que seja ruim, apenas mais convencional.    

O que nos leva a "Lord of the Dance" que funciona como uma espécie de continuação, ou melhor conclusão apocalíptica da primeira estória. Lord of the Dance se passa alguns anos depois da primeira estória, quando os investigadores acreditavam que a ameaça apresentada anteriormente havia sido contida. Obviamente no universo do Mythos as coisas nunca são tão fáceis e nessa aventura o horror retorna para um segundo round contra os investigadores.

Vale a pena tecer alguns comentários para a capa "maravilhosamente repulsiva" de Dark Designs. Lee Gibons o autor dessa bizarra obra se superou ao criar uma das mais detestáveis visões d euma aberração do Mythos. A coisa é tão nojenta que a minha esposa pediu para eu não deixar mais esse livro em cima da nossa mesa da sala. 

Sacraments of Evil é um dos livros favoritos de CoC. Não apenas por ter sido um dos primeiros livros na minha coleção, mas por ser um dos melhores suplementos de aventuras que eu já vi. Aventuras prontas sempre deixam um pouco a desejar, na maioria das vezes parece faltar alguma coisa, algum detalhe menor ou lacuna aberta que o mestre tem que suprir e pesquisar por conta própria. Em Sacraments isso não acontece. Os cenários são muito bem amarrados, extremamente bem escritos e completos.

O suplemento trás seis aventuras escritas por autores consagrados como Scott Aniolowski (um dos meus favoritos), Kevin A. Ross (o autor de Gaslight) e Penelope Love.

A antologia se inicia com "The Eyes of a Stranger" cenário que narrei semana passada no encontro do Dungeon Carioca como parte de uma mini-campanha que estou conduzindo. "Eyes" é uma das minhas aventuras favoritas envolvendo uma grande quantidade de elementos vitorianos clássicos que fazem a estória parecer uma montanha russa de citações: Jack, o estripador, conspirações maçônicas, assassinos chineses trabalhando para o Dr. Fu Manchu, sèances, artefatos estranhos, misticismo, videntes, mentes alienígenas malignas, uma invasão iminente... essa estória tem de tudo. É o tipo da estória que com um roteirista poderia trabalhar para transformar em um filme (ou pelo menos um ótimo episódio de Doctor Who).

"The Masterwork of Nicholas Forby" é o segundo cenário, que envolve a investigação do legado de um talentoso artista que após a seu falecimento teria deixado além de suas impressionantes estátuas um misterioso tesouro desaparecido. Cabe aos investigadores descobrir a veracidade dessa estória e desvendar um perigoso mistério.

"Plant Y Daear" acompanha os personagens em uma investigação no País de Gales. Ela visita conceitos definidos por Arthur Machen em algumas de suas obras mais conhecidas. Eu adoro essa aventura e ela me traz ótimas lembranças. Lembro de ter jogado ela quando ainda era moleque em um feriado prolongado, ao longo de uma sessão contínua que durou mais de 24 horas. Bons tempos! "Plant" é uma daquelas estórias sobre isolamento e segredos de família guardados a sete chaves. Construída de forma perfeita, é um dos pontos altos do livro.

"Sacraments of Evil" se passa em York e segue os passos de uma investigação sobre horríveis assassinatos de crianças por um maníaco a lá Jack, o estripador. É claro, que a explicação para esses crimes repousa em um campo mais esotérico e os Mythos estão envolvidos intimamente. É uma boa estória, ainda que ela peque um pouquinho na maneira como as coisas se resolvem. Mesmo assim, uma das cenas, aquela que ilustra a capa do livro, ainda me causa arrepios por ser incrivelmente mórbida.     

O cenário mais "fraco" do livro é "The Scutling". Não que a estória seja ruim, mas é uma daquelas aventuras em que os personagens são arrastados para a trama involuntariamente e o grupo não tem muito o que fazer para se defender. No cenario, os jogadores recebem a incumbência de escoltar secretamente um valioso objeto de arte de Nova York até Londres, sem saber que a viagem através do Atlântico será marcada por acontecimentos inexplicáveis e por uma tenebrosa criatura marinha.

O livro fecha com chave de ouro com "Signs Writ in Scarlet" uma das melhores aventuras da coleção. Mais uma vez, autores de horror recorrem ao "trabalho" de Jack, o estripador como fonte de inspiração para contar uma estória de loucura, obsessão e medo. "Signs" recorre a entidades do Mythos para explicar as ações e acontecimentos que apavoraram o East End de Londres na temporada conhecida como os "Meses de Jack sangrento". Esse é um cenário soturno e claustrofóbico, talvez um dos mais pesados que eu já tive o prazer de ler.

2 comentários:

  1. A caracterização das ambientações são show de bola! Sem falar do cuidado que os cenários foram feitos, o que possibilita os guardiões interpretarem um "q" a mais no momento da narrativa.

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  2. A era vitoriana na minha opinião é a melhor ambientação para Mythos em rpg. Cthulhu by Gaslight é genial. Gosto muito tambem do Bookhounds of London
    O interessante é notar a dualidade do termo "gaslight" que tambem se refere a uma forma de abuso psicologico que consistem em apresentar uma falsa verdade para fazer com que a vitima duvide da propria sanidade.

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