Os séculos XVIII e XIX trouxeram consigo uma explosão de interesse pelas ciências e pela forma como o mundo e o corpo humano funcionavam. Esta foi uma época de conhecimento, com uma enxurrada de novas descobertas no campo da biologia, física, química e medicina. A humanidade começava a compreender o seu papel na natureza e desvendava segredos muito bem guardados desde a criação. Segredos estes que mudariam para sempre a maneira como víamos o mundo no qual estávamos inseridos.
Um dos maiores avanços foi quanto ao funcionamento do corpo humano, dos organismos vivos como um todo e do mundo natural que está à nossa volta. Os pesquisadores estavam apenas começando a entender o conceito de como as doenças se espalhavam, como a eletricidade funcionava e como os elementos químicos interagiam. Isso deu origem a uma área que estava começando a ser examinada pelos cientistas: O Reino da Morte.
Um dos maiores temores do homem sempre foi a morte. O que haveria quando a vida se encerrava? O que a pessoa experimenta? Há uma alma imortal que se solta do corpo quando esse morre? Um dos sonhos do homem sempre foi se perpetuar eternamente, mas para isso, ele teria de ir contra a única certeza que se tem ao longo da vida: morrer.
Vencer a morte constitui o maior dos desafios e houve um tempo em que os cientistas que se debruçavam sobre o assunto acreditavam piamente que o segredo para a ressurreição residia nas inconstantes forças da Eletricidade.
O pós-morte era uma questão há muito ponderadas pela humanidade, um debate teológico e filosófico que já vinha de séculos. Contudo, foi apenas no século XVIII que as pessoas começaram a tentar encarar essa pergunta de forma científica. Na época, surgiram novas teorias sobre a natureza da morte, e uma delas era a noção de que, na verdade havia duas classificações de morte chamadas de "incompleta" e "absoluta".
Pensava-se que, desde que o corpo não estivesse putrefato ou decomposto demais, a morte seria "incompleta" e que a pessoa poderia ser ressuscitada. Uma morte "absoluta" significava simplesmente que o corpo físico havia decaído a tal ponto que não seria mais funcional e, portanto, incapaz de ser trazido de volta à vida. Foi essa ideia generalizada de que os organismos vivos poderiam ser trazidos de volta que levou os cientistas da época a tentar descobrir como fazê-lo.
Uma das primeiras tentativas de buscar a ressuscitação dos mortos coube à Sociedade para a Recuperação de Pessoas Aparentemente Afogadas de Londres na década de 1770, que mais tarde se tornaria a Royal Humane Society. Estabelecido por dois médicos chamados William Hawes e Thomas Cogan, a sociedade buscava criar métodos para trazer vítimas de afogamento de volta dos mortos. Para tanto, empregava uma variedade de metodologias e dispositivos, alguns bastante peculiares. A sociedade reivindicou muitas histórias de sucesso, que deixaram o público fascinado. Alguns destes métodos envolviam entre outras coisas banhos quentes para ressuscitação, inserir uma mangueira na boca do indivíduo para drenar água ou ainda remover seus pulmões e trocá-los por balões de ar.
Essas tentativas inspiraram outros cientistas da época a tentarem suas próprias maneiras de trazer os mortos de volta, o que nos leva a um dos movimentos mais estranhos e macabros de que se tem notícia, envolvendo descargas maciças de eletricidade que supostamente teriam o poder de ressuscitar os falecidos.
Na época, a natureza da eletricidade ainda era pouco compreendida e, em muitos aspectos, era vista quase como uma espécie de força mágica e mística. Em 1780, o médico, físico, biólogo e filósofo italiano Luigi Galvani observou como as pernas de um sapo morto se contorceriam quando atingidas por uma faísca elétrica acidentalmente durante um experimento não relacionado, e isso despertou nele um fascínio pela ideia de que a eletricidade poderia ser usada para efetivamente reanimar o tecido morto. Galvani teorizou que havia algo que ele chamou de "eletricidade animal", que ele postulou ser a Força Vital que animava toda matéria orgânica. O princípio era que, se a quantidade de energia correta fosse ministrada os mortos poderiam ser reanimados.
Galvani começou uma série de experimentos nos quais encostava eletrodos de metal de latão conectados à medula espinhal do sapo e a uma placa de ferro para fazer os músculos do animal morto convulsionarem e se moverem como se estivessem vivos. Ele perseguiu obsessivamente ao longo de onze anos de pesquisa e experimentação o assunto, que culminou em seu livro sobre "eletricidade animal" de 1791. Suas pesquisas conduziriam ao termo "Galvanismo" que em sua homenagem passou a designar a corrente elétrica gerada pelos organismos biológicos e a contração ou convulsão dos tecidos em contato com uma corrente elétrica.
Quando Galvani morreu em 1798, seu sobrinho Giovanni Aldini continuaria seu trabalho e também se graduaria para novos níveis de morbidez empregando suas descobertas em cadáveres humanos em vez de animais. Ele faria uma demonstração pública de eletroestimulação no cadáver de um criminoso executado chamado George Foster, sobre o qual um observador chocado escreveria:
"Na primeira aplicação do processo no rosto, as mandíbulas do criminoso falecido começaram a tremer, e os músculos adjacentes foram terrivelmente contorcidos, e um olho se abriu piscando nervosamente. Na parte subsequente do processo, a mão direita se levantou e fechou, enquanto as pernas e coxa se moveram."
Embora hoje possa parecer antiético fazer isso, na época, a Inglaterra havia aprovado o Murder Act, que basicamente permitia que os cadáveres de assassinos condenados fossem usados para experimentos científicos. Com as descobertas de Galvani, esses cadáveres foram cada vez mais procurados à medida que outros cientistas precisavam de cobaias. Um dos mais notórios experimentos com galvanismo foi realizado pelo químico escocês Andrew Ure em 1818. Em novembro daquele ano, ele reuniu uma plateia de estudantes, anatomistas e médicos da Universidade de Glasgow, que se sentaram para ver Ure apresentar o cadáver de um assassino que acabara de ser enforcado. Em suas mãos, o cientista segurava duas hastes de metal ligadas a uma bateria voltaica, que ele então começou a tocar em diferentes nervos expostos no cadáver, cada vez induzindo o assassino a convulsionar, estremecer e sacudir, para grande fascínio, repulsa e horror do público.
Ure descreveria o que aconteceu com o cadáver nos seguintes termos:
"Quando uma única haste foi aplicada à leve incisão na ponta do dedo indicador, este se estendeu instantaneamente; e pela agitação convulsiva do braço foi possível apontar para os diferentes espectadores, alguns dos quais pensavam que ele havia ressuscitado. Os dedos moviam-se com agilidade, como os de um violinista. Cada músculo em seu semblante foi simultaneamente lançado em ação temerosa; raiva, horror, desespero, angústia e sorrisos medonhos uniram sua expressão hedionda no rosto do assassino, superando em muito as representações mais selvagens de um Fuseli ou um Kean. Nesse período, vários espectadores foram forçados a deixar o local por terror ou náusea, e um cavalheiro presente desmaiou."
Embora o corpo não tenha sido reanimado, Ure atribuiria essa falha ao fato de o homem ter morrido de lesão corporal grave durante a execução. Ele insistiria que o método em si teria funcionado com um cadáver que não estivesse tão danificado. Na verdade, Ure passou a dar palestras extensas sobre suas ideias e publicar um panfleto sobre o assunto, embora a maioria da comunidade científica dominante o visse como um charlatão. No entanto, a ideia de usar a eletricidade para trazer os mortos de volta era tão atraente que as pessoas não paravam de falar sobre isso.
Outros experimentos se seguiram , por vezes resultando em espetáculos macabros nos quais os cadáveres se incendiavam, desmanchavam ou derretiam mediante um choque poderoso. Há relatos de experimentos públicos nos quais a descarga elétrica se espalhou atingindo curiosos que estavam mais próximos que foram fulminados. Em outro experimento, em Devon, um incêndio causou pânico e deixou feridos. Isso levou as autoridades sanitárias a restringir a presença de pessoas aos "espetáculos de ressurreição", como ficaram conhecidos esses experimentos.
À despeito das falhas sucessivas, alguns cientistas respeitados como Sir Humphry Davy, um químico da Cornualha, acreditava que era questão de tempo obter o sucesso. Ele diria sobre esse misterioso e novo reino:
"A composição da atmosfera e as propriedades dos gases foram determinadas; os fenômenos da eletricidade foram desenvolvidos; os relâmpagos foram tirados das nuvens; e, finalmente, uma nova influência foi descoberta, que permitiu ao homem produzir a partir de combinações de matéria morta efeitos que antes eram ocasionados apenas por órgãos animais. A reanimação não será apenas conquistada, é questão de tempo até ela ficar à nossa mercê".
Curiosamente, no mesmo ano em que Ure realizou seu experimento macabro, Mary Shelley publicou seu clássico de terror gótico Frankenstein, que foi profundamente influenciado pelo galvanismo e tem alguns paralelos assustadores com esses experimentos.
Shelley escreveria no seu imortal clássico de reanimação:
"Talvez um cadáver pudesse ser reanimado; o galvanismo havia dado sinal de tais coisas: talvez as partes componentes de uma criatura então pudessem ser fabricadas, reunidas e dotadas de calor vital."
A essa altura, havia muita discussão ética sobre a eletricidade, uma percepção de que ela talvez fosse uma espécie de "faísca da vida", não apenas útil para trazer os mortos de volta, mas também capaz de criar vida do nada; processo conhecido como abiogênese. Os defensores dessa teoria acreditavam que a eletricidade era o componente vital para iniciar a vida o que gerou ainda maior debate, com cientistas sendo acusados (ou afirmando categoricamente) ter ao seu alcance uma faculdade única, até então exclusiva de Deus.
O uso da eletricidade estava se ramificando em outras maneiras de afetar o corpo humano, como o uso de choque elétrico para curar a insanidade, agora conhecido como terapia eletroconvulsiva, e uma vasta gama de outras condições médicas. A eletricidade se consolidava cada vez mais como um meio através do qual tudo era alcançável.
Embora ninguém tenha sido trazido de volta dos mortos com galvanismo, o uso da eletricidade abriu o caminho para a aplicação moderna de eletricidade ao corpo humano para fins médicos e o estudo das propriedades elétricas de células e tecidos biológicos, chamados eletro fisiologia. Ao mesmo tempo, ampliou nosso conhecimento das vias neurais e ao monitoramento da atividade elétrica do coração, dos músculos e até do cérebro. Os teóricos afinal não estavam inteiramente errados, a eletricidade era partícula essencial para a vida.
Ainda que a eletricidade nunca tenha reanimado um cadáver, o trabalho de Galvani e até de Ure estabeleceu um legado duradouro na medicina e no campo da neurociência moderna. E tudo teve início de forma muito estranha na história da ciência médica, um olhar sombrio sobre o desejo da humanidade de mergulhar em reinos que não entendemos, e talvez não sejamos feitos para entender.
O século XIX foi um dos mais interessantes em termos de descobertas científicas. Dá muito pano para manga para escrever aventuras de RPG e contos, principalmente de estilo gótico!
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