"O que mais poderia ser aquele lugar esquecido por Deus, além de um cemitério? Olhei para a ilha como se, só agora a reconhecesse pelo que ela era. Agora eu tinha razão para desprezar aquelas costas curvas, a praia sórdida, o cheiro de pêssegos podres. (...) Os pobres rostos esverdeados, picados pelos peixes, os uniformes podres, as medalhas de identificação cobertas de algas. Que morte, e pior ainda, que viagem depois da morte, esquadrões de companheiros levados pelas correntes do Golfo até aquele porto horrível. Eu imaginava, os corpos daqueles soldados, sujeitos aos caprichos das marés, levados para trás e para frente no dorso das ondas, até uma perna ou um braço enganchar-se em uma rocha, deixando de ser possessão do mar. Apodrecendo pouco a pouco nas praias até serem descarnados pelas gaivotas."
terça-feira, 10 de janeiro de 2023
Ilha Cemitério - Adaptando uma ilha aterrorizante para Chamado de Cthulhu
Clive Barker
Bodes Expiatórios
Livros de Sangue - Volume 3
O conto Bodes-Expiatórios (Scape-Goats) faz parte do volume 3 da antologia de terror "Livros de Sangue", escrita por Clive Barker. Essa é uma história que sempre achei interessante, pela simplicidade e pela aura de estranheza desagradável que ela consegue passar para o leitor.
A história não se preocupa de explicar o que está acontecendo ou como se formou o lugar medonho no meio do Mar do Norte, onde um grupo de pessoas viajando à lazer num veleiro acaba naufragando. O lugar, uma ilha medonha para onde as correntes levam cadáveres afogados é um lugar de pesadelo, o típico recôndito aterrorizante que Barker cria para seus contos de horror.
Após ter escrito o artigo anterior sobre o Mar de Sargaços, li novamente Bodes Expiatórios e surgiu a ideia de adaptar na forma de um terror lovecraftiano. Ok, concordo que a pegada de Barker é outra... seus horrores são mais viscerais e "down to earth", mas nem por isso menos assustadores. Como a Ilha Cemitério poderia ser trazida para o universo de Chamado de Cthulhu?
Aqui está o resultado.
* * *
A ILHA CEMITÉRIO
Ao norte das Ilhas Britânicas, próximo do Arquipélago das Hébridas, existe um pequeno monte de terra, praticamente um torreão quase inacessível que afortunadamente se mantém oculto a maior parte do tempo. É difícil localizar essa rocha perdida em meio das águas frias e cinzentas, mas os que a avistaram ao longe a descreveram como uma ilhota triste e perdida.
Aqueles que sabem das histórias sobre ela, a evitam. Os que ignoram seus segredos macabros estão em grave risco de eles próprios se tornarem vítimas desse lugar maldito.
A Ilha não tem nome e não aparece em nenhuma carta náutica de que se tem conhecimento, mas ela está lá e ao que tudo indica, sempre esteve e sempre estará. A relação dela com os homens do mar é antiga. Os saqueadores nórdicos falavam dela, assim como os marinheiros da Era das Navegações que olhavam o horizonte temerosos de avistar essa ínsula. Eles sabem que é para lá que as correntes do Golfo carregam despojos humanos lançados no Mar do Norte.
Por alguma razão sobrenatural, os restos de marinheiros são atraídos para esse lugar remoto, carregados pela maré e lançados contra as praias de areia cinzenta recobertas de alga. A Ilha parece reivindicar para si essa carne putrefata e dela se alimenta para crescer.
Algumas embarcações que se perdem de sua rota acabam sendo atraídas para esse nexo medonho. As correntes agarram as embarcações escolhidas e as faz cruzar o denso nevoeiro que oculta a ilha. Não há como enxergar um palmo diante do nariz, o fedor nauseante parece enfiar uma mão podre pela garganta dos recém-chegados. Em tempo, os barcos acabam encalhando em algum banco de areia que os impede de prosseguir.
Suspenso o nevoeiro, a visão que se tem é de total desesperança. Algas verdes-castanhas, entrelaçadas como um denso tapete se estendem até onde a vista alcança. Algumas embarcações igualmente encalhadas nos bancos despontam aqui e ali: velhas e apodrecidas, cobertas de sal, espuma e alga. Mais adiante, se avista o litoral entrecortado, com uma praia isolada, nada mais que uma faixa estreita de sedimento granuloso. Não há vegetação nativa, exceto as algas onipresentes que a tudo cobrem e reclamam para si. O centro da ilha é um rochedo nu de pedra negra que se sobressai tal qual um totem primitivo na crista de um penhasco.
A ilha inteira tem uma aura maligna e ela não passa de um recife de cadáveres ocultos.
Na sua orla exterior mais rasa, os corpos inchados de afogados se acumulam sob as algas, oculto pela a linha d´água. Eles cercam a beira-mar com seus olhos baços e cabelos molhados, pele úmida e gelada, dentes arreganhados e ossos à mostra. A maioria veste os andrajos de seus uniformes militares da Primeira Guerra, da Segunda Guerra e de todas guerras. São aqueles mortos em navios abalroados, torpedeados e afundados em meio a dor, horror e fúria. Seus corpos desaparecidos para sempre vem dar aqui, onde a morte reina suprema.
Difícil não tropeçar neles enquanto se faz o caminho dos bancos de areia até a praia ignota tendo água até as canelas. Não há sons perceptíveis, exceto o grasnar rabugento de alguma gaivota que se refastela com a ceia fácil de carne macilenta. Os enormes caranguejos de casca manchada da cor das algas disputam alguma cartilagem solta, puxando e devorando os restos.
Na fímbria, a areia está coalhada de ossos quebradiços como giz que se desfazem sob os pés dos recém chegados. Quando sobe a maré, a água lava a costa com uma espuma suja, oferecendo mais e mais despojos carcomidos.
É justamente à noite que o perigo se revela na forma de espectros presos em seus simulacros de carne decomposta. Os mortos se erguem vagando cambaleantes, guiados por um macabro ressentimento contra os vivos. Há centenas, talvez milhares deles, afinal quantas vidas os mares clamaram? Não disse o poeta que nas profundezas oceânicas há mais ossos que conchas?
Os cadáveres podem ser especialmente perversos com os forasteiros. Aqueles que tem sorte são simplesmente agarrados pelos dedos ossudos, arrastados para as águas rasas e ali afogados. Seu fim ao menos é rápido. Contudo, os mortos podem torturar mentalmente os náufragos por dias à fio até finalmente se revelarem. Sem água, sem comida e sem esperança, é questão de tempo até a sanidade desmoronar nesse cenário niilista.
Aqueles que perecem na ilha ou nos seus arredores acabam se tornando matéria prima para ela. Os poucos que conseguem dela escapar carregam para sempre a lembrança de ter conhecido esse desterro apartado.
Nas ilhas vizinhas, há pessoas que conhecem a lenda sobre esse lugar; são habitantes das comunidades de pescadores mais afastadas. Eles alimentam a lenda da Ilha Cemitério através de histórias contadas nas tavernas quando há terra seca sob os seus pés. Tais histórias sabiamente jamais são contadas em alto mar. Alguns ilhéus mantém a tradição de oferecer sacrifícios para os residentes da Ilha Cemitério, antes de partir para águas abertas, como se essa oferta lhes desse salvo conduto dos perigos provenientes do mar.
Ideias para Usar a Ilha Cemitério em sua Mesa de Jogo:
- Esse ambiente parece perfeito para aventuras no estilo One-Shot, com os dois pés cravados no niilismo. Os personagens desembarcam nessa ilha medonha e não tem como voltar para a civilização. Cada lugar a ser explorado conduz a revelações bizarras, cenas grotescas e horrores desconcertantes. Não há fuga, não há esperança e sobreviver noite após noite, nesse ambiente insalubre é um desafio. Num ambiente como esse, dificilmente os personagens sairão vivos e sinceramente, a graça desse tipo de cenário é dar a eles uma visão do pesadelo, drenar sua sanidade e deixá-los lá para sempre: vivos, mortos ou pior...
- Os principais antagonistas e perigos no conto de Barker não eram os cadáveres mortos-vivos que se levantavam à noite, mas a perda da razão. A situação dos personagens deve se espelhar na perda maciça de sanidade em face do horror testemunhado. Os mortos-vivos (zumbis, esqueletos, horrores cobertos de alga ou gosma) estão lá, são um horror a ser explorado pelo Guardião, mas o principal horror é como lidar com uma situação limítrofe. A medida que a desesperança cresce, como irão reagir os personagens? A civilidade irá perder espaço a cada dia? Eles lutarão entre si pelos parcos recursos restantes? Eles disputarão a liderança das decisões? Eles irão formular algum plano de fuga e discutir quando ele falhar?
- Apesar de adaptar a Ilha Cemitério para Chamado de Cthulhu, prefiro resistir à tentação de transformá-la num Grande Antigo ou num Deus Ancestral. Me parece que a identidade dessa coisa, ou sua natureza fica melhor oculta e ignorada. Ninguém sabe o que ela é, de onde veio, como surgiu... pode ser que a colina rochosa, um fragmento de uma cidade submarina dedicada a Cthulhu, pode ser um farol usado pelos Abissais ou um templo medonho devotado a Dagon. Mas saber exatamente o que ela é, não é importante para a história. Trata-se de um lugar abominável e isso basta para o cenário.
- Talvez a ilha seja uma "Entidade Única", uma espécie de ser que desenvolveu consciência graças aos mortos atraídos por ela ao longo de séculos. A Ilha poderia ser o resultado de toda a energia negativa, ressentimento, terror e desesperança das pessoas que morreram em alto mar. Talvez a ilha possa se comunicar com quem veio de fora através de emanações psíquicas: oferecendo visões, fomentando paranoia e até sonhos repletos de profecias. A Ilha consciente usaria os cadáveres que a compõem como um tipo de mecanismo de defesa, vendo, ouvindo e sentindo o ambiente através deles, tudo aquilo que acontece em seus limites ela sabe.
- Eu gosto da ideia de haver ao menos um sobrevivente humano na ilha. Alguém para transmitir aos jogadores a sua experiência e mostrar o que os aguarda. Um sobrevivente insano, instável e incrivelmente perigoso parece algo bom demais para não ser usado. Talvez o sujeito tenha encontrado uma maneira de satisfazer a Ilha Cemitério e assim foi poupado. Talvez ele seja um escravo da Ilha e nessa qualidade se converteu em um fanático serviçal de seus caprichos. Posso imaginar um cara de barba comprida, olhar selvagem e comportamento homicida vivendo no porão de um barco tentando roubar suprimentos e matar quem invadir seus domínios.
- Da mesma maneira, o conto de Barker cita pequenas comunidades de pescadores que vivem isolados e que criaram seus próprios costumes. Poderiam esses homens rudes se tornar cultista da Ilha? O medo que eles sentem pode se converter em devoção? Nessa hipótese como eles fariam para louvar a Ilha Cemitério? Fariam sacrifícios para a entidade? O que receberiam em troca? E qual seria a reação deles se o seu culto fosse exposto por forasteiros?
- A ideia original é usar essa inspiração para Chamado de Cthulhu, mas é claro, nada impede que a ideia seja adaptada para outras ambientações. Eu posso imaginar perfeitamente esse cenário sendo usado em Dungeons and Dragons, para uma aventura especialmente aterrorizante na qual os heróis precisam enfrentar hordas de mortos vivos para sobreviver, até encontrar algo que habita o coração da Ilha e que apenas sua destruição permitirá sua escapatória. Para a ideia funcionar é só fazer as devidas alterações: navios à vela, mortos vivos de todos os tipos, espectros e outros terrores se encaixam perfeitamente numa história de sobrevivência em alto mar.
Bem é isso...
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Gostei bastante do conceito, acho que usarei algo semelhante adaptado para minha mesa de World of Darkness, apesar de certa dificuldade em passar a loucura para os jogadores, eu duvido muito que uma coterie de vampiros iria manter a amizade por muito tempo após uma ou duas noites sem ter o que morder.
ResponderExcluirAgradeço muito pelo conteúdo de extrema qualidade que , como sempre , me trás muita alegria em ler.
Fantástico pra qualquer ambientação
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