quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Senhor da Caça - Tsul 'Kalu o sangrento Grande espírito do Povo Cherokee


De todas as lendas registradas nas crenças tradicionais do sudeste dos Estados Unidos, uma das mais interessantes envolve Tsul 'Kalu, o lendário Senhor da Caça entre os nativos Cherokee.

De modo geral, os nativos americanos não veneram Deuses, mas sim, espíritos que incorporam grandes realizações e que passam a ser intimamente associados a estas façanhas. Alguns destes espíritos em vida foram grandes guerreiros, caçadores ou feiticeiros, cuja importância se manteve mesmo após a morte. Na forma de espíritos a lembrança deles foi mantida e eles ganharam influência como personagens lembrados e celebrados.

Tsul 'Kalu, no entanto é algo diferente. 

Embora respeitado e invocado para garantir uma caçada proveitosa, esse espírito era igualmente temido pelos nativos. Considerado quase que uma ameaça a ser respeitada e satisfeita com sacrifícios e devoção. 

Tsul 'Kalu era frequentemente invocado antes do início das caçadas por conta de sua associação com búfalos, gamos, veados e outros animais que eram presas dos antigos Cherokee que dependiam deles para seu sustento. A maioria dos relatos descreve o espírito como um homem grande, essencialmente um gigante, embora algumas tradições o tenham retratado como uma espécie de "entidade" insubstancial. O nome do gigante se traduz como "ele cuja visão tudo controla", título que se refere ao poder magnético de seus olhos, capazes de paralisar e controlar aqueles que o encaram.


Relatos colhidos por exploradores europeus remontam às primeiras décadas do século XIX. Entre as lendas mais populares estava a versão registrada pelo antropólogo James Mooney, que conta como Tsul ‘Kalu se aproximou de uma aldeia e passou a  vigiá-la. O gigante gostou de uma garota e por ela se afeiçoou a ponto de sequestrá-la. Na lenda ele a levou para uma caverna no alto das montanhas a oeste onde pretendia mantê-la.

Após o rapto, o irmão da garota, um bravo guerreiro chamado It'ruil partiu ao resgate e acabou encontrando a morada do gigante. Tsul 'Kalu sentiu a aproximação do rapaz e armou uma emboscada nas montanhas. Quando ele passava por um despenhadeiro, o gigante gritou como um trovão e provocou um desmoronamento. Preso sob as rochas, It'ruil pediu ajuda a outros espíritos e esses responderam mostrando onde ele deveria cavar para se ver livre. O jovem foi então instruído a viajar até a cidade perdida de Kanuga, que ficava no coração da montanha e lá jejuar por sete dias. Nesse período ele experimentou visões que mostraram como vencer Tsul 'Kanlu.

Munido de uma lança especialmente forjada para a tarefa, It'ruil conseguiu entrar nos domínios do Deus da Caça e com uma estocada certeira o feriu em seu ponto fraco. A lenda se encerra dizendo que o ferimento provocado não foi fatal. Se o espírito tivesse sido destruído, o povo Cherokee seria afetado para sempre e não teria quem intercedesse em suas caçadas. Mesmo assim, a tribo amargou vinte anos de caça esparsa, período em que tiveram de aprender a plantar. Eventualmente o espírito se recuperou do ferimento e voltou a abençoar os caçadores. 

O domínio terreno de Tsul ‘Kalu tinha o nome Tsunegun’yi e era um lugar sagrado que supostamente se encontra nas montanhas que dividem a Carolina do Norte e o Tennessee. O território cujo nome se traduz como "Terra de caça do controlador" é uma espécie de intercessão entre o mundo real e o espiritual. Aqueles que viajam até esse lugar místico recebem visões, são abençoados ou amaldiçoados pelos espíritos e passam a ser tratados como indivíduos tocados pelo além. 


As lendas associam o Tsunegun'vi a regiões que só podem ser acessadas mediante o oferecimento de sacrifícios. No passado, havia rituais nos quais o pleiteante precisava caçar e matar um animal de grande porte, um búfalo ou cervo, comer seu coração arrancado do peito ainda quente. Uma vez realizando essa tarefa e clamando pelo Grande Espírito seu acesso era garantido.  

Em Deep Creek, no condado de Swain, Carolina do Norte há uma vale isolado que os antigos Cherokee relacionam com essa lenda. O local, cujo nome nativo pode ser traduzido como "onde está a pegada", se refere aos petróglifos que adornam as pedras ancestrais. Apenas os xamãs da tribo além de alguns bravos guerreiros e caçadores tinham permissão de entrar nesse vale e ver as pedras sagradas. Os escolhidos ouviam as histórias sobre Tsul 'Kalu, realizavam ritos de passagem e recebiam as bênçãos. Imersos em danças e cânticos sagrados, inebriados por peyote (uma bebida alucinatória), os caçadores jejuavam e ouviam as palavras dos espíritos. Saiam de lá com um pacto firmado, sentindo uma conexão com o mundo sobrenatural que os tornava caçadores completos.   

Indiscutivelmente, o local mais famoso associado ao mito de Tsul ‘Kalu chama-se Judaculla Rock, uma grande pedra de esteatita próxima de Cullowhee, Carolina do Norte. Coberto de petróglifos de proveniência desconhecida, as lendas dizem que os espíritos possuíram os xamãs e fizeram com que eles cobrissem as pedras com aqueles símbolos. O nome, Judaculla, representa uma corrupção da palavra Cherokee para Tsul 'Kalu e segundo a lenda foi do alto da montanha que o gigante saltou, caindo sobre essa pedra. Ao fazê-lo, diz-se que Tsul ‘Kalu deixou uma grande marca de seus pés e de sua mão direita na rocha. 

Lendas sobre gigantes entre os mitos Cherokee são relativamente comuns. Mooney coletou histórias relevantes envolvendo Tsul 'Kalu. Algumas delas foram obtidas com um tal James Wafford, que viveu entre os Cherokee em meados de 1806. De acordo com Wafford:

“…os velhos Cherokee conheciam os gigantes que viviam no mundo espiritual. Estes cruzaram o portão para o mundo dos homens usando cavernas muito profundas que chegavam ao coração da montanha. Os gigantes eram quase duas vezes mais altos que os homens e tinham olhos estranhos, grandes e brilhantes. O maior dentre eles era conhecido como Tsul'kalu e ele era seu líder. Ele escolheu habitar a fronteira entre seu reino e o mundo dos homens, e se tornou um caçador de todas as bestas”.


Mooney acreditava que os Cherokee compartilhavam dessa mesmas lendas passadas oralmente de pai para filho por gerações.

Os mitos sobre Tsul 'Kalu fazem menção clara à sua estatura gigantesca. Para todos os padrões ele era um gigante de corpo musculoso com mais de três metros de altura. Seus braços e pernas eram longos e cabeludos, adornados com manchas escuras que formavam padrões geométricos muito usados pelos xamãs. Apesar de sua estatura avantajada, Tsul 'Kalu se movia com a graça de um puma e com a desenvoltura de um gamo, sem fazer som e sem deixar pegadas por onde passava. 

Uma das suas características principais dizia respeito aos seus olhos. Eles seriam grandes e escuros, ainda assim, brilhantes à noite, como olhos dos felinos da montanha. Seu brilho podia ser visto, refletido na luz das tochas. Mesmo quando escolhia ficar invisível, os olhos podiam ser vistos fulgurando como duas brasas. Aqueles que encaravam esses grandes olhos ficavam paralisados e estupefatos. Não conseguiam se mover uma vez que sentiam estar na presença de um poderoso espírito. Os covardes se colocavam de joelhos aos seus pés em desespero, mas os valentes eram aceitos. 

A entidade sempre carregava uma lança em sua mão direita. O mito afirmava que essa arma legendária havia matado pelo menos um espécime de cada animal da criação e que por isso sempre era representada escorrendo sangue escuro de sua ponta afiada. Aqueles que se portavam de maneira indigna diante de Tsul 'Kalu e que despertavam sua ira eram lançados do alto da montanha para a morte certa nas profundezas de uma ravina. Seus ossos jamais seriam encontrados e seus espíritos vagariam eternamente em vergonha.

Tsul 'Kalu era um deus colérico e furioso, que bebia sangue e se deliciava com o massacre. Ele sempre era descrito acompanhado da carcaça de dezenas, senão centenas de animais trucidados pela sua lança, suas garras e presas. Os homens admiravam sua força, sua determinação e seu poder, não por acaso ele era considerado uma entidade de vigor masculino, um símbolo de agressividade e potência sexual. 


Quando os homens iam sair em uma caçada, especialmente se essa fosse por um lugar perigoso, era tradicional oferecer a Tsul 'Kalu um sacrifício. Em geral, a primeira caça abatida era consagrada para a entidade que então, caso ficasse satisfeita atrairia outras presas para os caçadores. Os caçadores por vezes bebiam o sangue dos animais e o usavam para pintar símbolos nos corpos.

É provável que o favor de Tsul 'Kalu tenha sido invocado para favorecer também guerreiros que estivessem caçando fugitivos. Os Cherokee acreditavam em diversos rituais, sendo que um deles envolvia libertar prisioneiros para que estes fossem perseguidos implacavelmente pelas pradarias. Os caçadores dedicavam a perseguição a Tsul 'Kalu. Há relatos desse ritual de caça ter sido realizado com prisioneiros de tribos rivais e também com colonos brancos capturados. Quando o fugitivo era apanhado, ele era morto e estripado com uma faca afiada ritualística de silex. Seu coração era então arrancado do peito e o sangue quente ainda gotejando sorvido como um símbolo da caçada.

No final do século XIX, as tribos Cherokee foram empurradas cada vez mais para o interior. Os nativos também perderam boa parte de seus costumes ancestrais. Aos poucos a crença em Tsul 'Kalu começou a perder força até desaparecer praticamente por inteiro no século seguinte. Ainda assim, o Grande Espírito Cherokee da caça permanece como um item de fascínio até os tempos modernos.

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