sábado, 11 de março de 2023

Descanso Interrompido - Os corpos mumificados de Portugal


"A grande ironia humana é que 
o maior mistério de nossas vida se inicia com nossa morte

Há falta de espaço para cemitérios e sepulturas em Portugal… isso não é exatamente uma novidade, mas a causa tem pouco a ver com a superpopulação e o aumento de mortes entre os vivos. Portugal tem cadáveres se acumulando nas morgues porque os que já estão mortos estão se transformando em múmias. É isso mesmo, os corpos não estão se decompondo da maneira esperada. 

Se isto soa como uma nova reviravolta no apocalipse zombie ou na crença católica de que os corpos de alguns santos não se decompõem, os investigadores estão abertos a sugestões, pois não têm ideia da razão pela qual os mortos se mumificam misteriosamente em Portugal. E isso está causando sérios problemas para cemitérios, necrotérios e famílias dos falecidos.

"Isso tem um impacto social, o que é muito importante para a sociedade portuguesa."

“Isso”, segundo Ângela Silva Bessa, antropóloga forense da Universidade de Coimbra que faz pesquisas sobre os cemitérios portugueses, é uma combinação de fatores, a começar pela falta de espaços funerários no país, que se tornou tão grave no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 que uma prática chamada “levantar os ossos” foi introduzida em 1962. Como a maioria dos outros países europeus, os portugueses há muito enterravam seus mortos em pequenos cemitérios de igreja e os paroquianos tinham um entendimento - quando novos corpos eram adicionados a um lote familiar, os antigos eram removidos e colocados em um ossuário ou túmulo comum. Antigamente, podiam se passar décadas antes que surgisse a necessidade de exumar, mas a escassez de espaços tornou-se tão grave que, igrejas e cemitérios foram autorizados a tratar sepulturas como temporárias, com um limite de ocupação de 3 a 5 anos. Transcorrido esse prazo, os restos eram removidos automaticamente para o ossuário comum – que podia ser um nicho nas paredes do cemitério ou cremados, prática menos comum em Portugal. Mórbido sim, mas a sociedade aceitou tal coisa e a prática de “levantar os ossos” deu certo... até que a procura por espaços ficou ainda maior. Isso levou a outro impacto social mais mórbido.

Uma pesquisa nos cemitérios do Porto, a segunda maior cidade de Portugal, constatou que entre 55% e 64% dos corpos enterrados entre 2006 e 2015 não foram totalmente decompostos após a primeira exumação.


Quanto menos tempo um cadáver passa em uma cova, menos tempo ele tem para se decompor. Como as famílias são notificadas para que possam estar presentes quando os membros da família são exumados e transferidos, eles podem ver os restos mortais de entes queridos quase em perfeito estado. A prática se torna emocionalmente desgastante para os familiares. Com os corpos nesse estado é impossível transferir os restos e a solução é esperar mais algum tempo...  

"É surpreendente. Na mesma seção do cemitério, tem-se múmias quase perfeitas e que não apresnetam quase nenhuma deterioração", surpreende-se a especialista em sepulturas.

Imagine ir ao túmulo de um parente próximo para realizar uma exumação e transferência e encontrá-lo completamente preservado muitos anos após sua morte. Isso não é exatamente “incorruptibilidade” – a crença católica de que os corpos de algumas pessoas santas não se decompõem por causa de um milagre da intervenção divina. É algo totalmente diferente e que vem interferindo na rotação dos espaços funerários.

Especialistas apontam que o estado dos cadáveres em nada se assemelha à mumificação intencional praticada no antigo Egito – um processo complexo que demandava vários estágios. No entanto, o tipo de mumificação ocorrido em Portugal encontra semelhanças ao que ocorre no Peru e em outros países da América do Sul, onde o ar seco das montanhas desidrata rapidamente os corpos de forma natural os deixando preservados. No entanto, o curioso é que o fenômeno é algo novo!

Não há nada assim registrado na história de Portugal e não se sabe as razões para estar acontecendo nesse momento em particular. 

"Os corpos estão mumificando total ou parcialmente, e em taxas diferentes no mesmo ambiente. Não há um padrão que tenhamos reconhecido ou razões que tenhamos detectado. Sinceramente, imaginei que encontraria uma relação entre as propriedades do solo e o estado da composição dos corpos. E nem isso encontrei.". Explicou Ângela Bessa.


A decomposição do corpo humano já foi muito estudada, mas ainda é um processo intrigante. Os quatro estágios de decomposição são aceitos como autólise ou autodigestão (as células se quebram e o rigor mortis se instala), inchaço, decomposição ativa e esqueletização. No entanto, o cronograma para que isso aconteça pode variar em certos casos. 

Tristan Krap, professor de ciências forenses na Universidade de Maastricht, na Holanda, aponta que três anos não é tempo suficiente para a decomposição completa até o estágio esquelético. Ele também observa que muitos estudos são feitos por cientistas forenses com foco nos corpos de vítimas de crimes ou em fazendas de decomposição onde os corpos se decompõem acima do solo. "Sabemos relativamente pouco sobre como os corpos se decompõem no subsolo – especialmente porque existem tantas práticas funerárias diferentes em todo o mundo.

Uma das suposições levantadas por Krap sobre a situação em Portugal é que corpos estão mumificando por conta de variações de tamanho, massa muscular e teor de gordura. Outra possibilidade poderia ser as variações no complexo ecossistema que está no solo em diferentes locais em um cemitério (sob as árvores; em uma colina ensolarada; em uma área de drenagem pobre) e entre diferentes cemitérios. Por fim, o estilo de vida das pessoas, que pode ter apressado a morte, também pode influenciar no pós-morte – a decomposição e a mumificação podem estar relacionadas ao que a pessoa comeu, se fumou ou tomou certas medicações.

"A continuar essa situação, nós estaremos diante de um quadro grave dentre 5 e 10 anos", analisa Ângela Bessa com ares de preocupação.
 
Sim, a cremação definitivamente resolveria o problema do espaço e acabaria com o mistério da mumificação. Contudo, embora o número de crematórios tenha aumentado em Portugal nas últimas décadas de quatro para 38, o enterro ainda é o método preferido dos portugueses para cuidar de seus mortos.

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